A privatização da Eletrobras deveria ser revista? SIM ou NÃO – Folha de SP

Debate publicado na Folha de São Paulo https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/tendenciasdebates/

Sim

Capacidade técnica foi reduzida a índices jamais vistos entre gigantes do setor

Roberto Pereira D´Araujo

Engenheiro Eletricista – M. Sc. Engenharia de Sistemas – Ex membro do conselho de administração de Furnas.

O Brasil aborda esse tema como se fosse a venda de uma estatal qualquer esquecendo a impressionante singularidade do sistema elétrico brasileiro. Transferir o controle da Eletrobras para o capital privado envolve geografia, rios, lagos, água, sol, meio ambiente e clima. Não se trata apenas de um prédio com escritórios. 

Países cuja eletricidade provém significativamente de hidroelétricas não privatizam suas empresas. Canadá, Suécia, Noruega, Índia, Rússia e China estão nessa lista. Os Estados Unidos, apesar da menor proporção, têm suas hidroelétricas ligadas ao exército. O Brasil, apesar da maior vinculação com a energia dos rios, é o único fora desse seleto clube.

Apenas 8% das nossas hidroelétricas foram projetadas e construídas pelo setor privado. As que hoje estão sob o controle do capital, ou foram compradas prontas ou erigidas em parceria. A recente expansão de quase 17 GW, mais do que Itaipu, só foi viabilizada através das parcerias onde a Eletrobras é minoritária. Vamos abrir mão dessa última instância?

Enganam-se os que acham que a era das hidroelétricas acabou. Só elas podem responder às súbitas variações de geração das novas renováveis, como eólicas e solares. Vamos depender de muita coordenação.

É inconcebível que se aceite que a Eletrobras tenha sido privatizada por pouco mais de R$ 33 bilhões. A americana Duke Energy, com a mesma capacidade de geração do mesmo produto, o kWh, tem um valor de mercado de US$ 82 bilhões. A Eletrobras não pode valer menos de 1/10 disso. Com aprovação de regras estranhas ao mercado, caso a União seja obrigada a reassumir o controle, seria forçada a pagar triplo do valor de mercado das ações vendidas, um ardil capaz de gerar prêmio aos grupos que privatizaram. A possibilidade de dano é real, eis que o risco do contrato é flagrante. Tal ato lesivo é inadmissível e proibido por lei.

A regulamentação limitando o poder de voto a 10% no conselho administrativo da Eletrobras é incapaz de evitar acordos não explícitos entre acionistas. Evidentemente, ela foi imaginada apenas para que o estado, com cerca de 40%, não consiga pautar projetos de interesse público nessa “capitalização”.

A lei das estatais criada para evitar a influência política despreza o fato de que o atual presidente foi indicação política do presidente Temer em 2016, tendo atuado na Eletrobras até 2021 e se retirado imediatamente para outra empresa de energia, a Vibra. Após a privatização, retorna à Eletrobras revelando que interesses privados não seguem regras imaginadas para o estado. Tal prática é proibida em empresas públicas de países republicanos, onde quarentenas mínimas tentam resguardar conflitos de interesse.

Falhas do modelo mercantil e privado, que só encareceu a tarifa sem sequer um diagnóstico, exigiram outros sacrifícios da Eletrobras. Na realidade, através de doses excessivas de um princípio básico das hidroelétricas, a amortização de investimentos, a estatal foi a única responsável por tentar amenizar esse encarecimento.

A Eletrobras precisa ser reconstruída. Sua capacidade técnica foi reduzida a índices nunca vistos em empresas semelhantes. O número de funcionários por capacidade de geração (MW), atingiu 1/6 da média das grandes empresas internacionais. A competência está na experiência acumulada por mais de 50 anos de existência e não nos prédios.


NÃO

Recuo transformaria companhia em nova presa para o oportunismo político

Joisa Dutra

Professora e diretora do FGV Ceri (Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas), foi diretora da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) entre 2005 e 2009

Em 2017 estive nestas mesmas páginas defendendo a privatização da Eletrobras. À época, o então ministro Fernando Coelho Filho (Minas e Energia) apontava que o alto endividamento limitava a capacidade de investir da empresa. As consequências da medida provisória 579/2012 e o direcionamento excessivamente político erodiam seu valor. Concordava com sua visão e hoje, depois da privatização, renovo minha confiança na decisão e rejeito clamores por sua revisão.

O caminho não foi fácil. O processo, demorado, passou por intenso escrutínio da sociedade e dos órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU). Ao fim, a arrecadação foi de R$ 67,6 bilhões

—(muito) mais do que a previsão inicial, de R$ 20 bilhões. A capitalização reverteu a destruição de valor.

Mesmo vendida, o Estado permaneceu com direitos especiais, como ações de classe “golden share” e cláusulas de tipo “poison pills”, adotadas para mitigar riscos de concentração de mercado. Princípios de boa governança estão garantidos por cláusulas para proteger direitos de acionistas minoritários e resguardar a continuidade do modelo adotado e da democratização de seu capital social. Virava-se a página da subótima administração, com proteção de direitos de todos os stakeholders [partes interessadas].

A lei aprovada para permitir a desestatização foi criticada por estabelecer compromissos de aplicação de recursos. Alguns meritórios, como revitalização de bacias hidrográficas, redução de custos de geração de energia na Amazônia Legal —onde a produção de eletricidade ainda usa muito os combustíveis fósseis— e investimentos em hidrovias. Há outros questionáveis, como as redes de gás natural a serem implantadas em regiões onde o mercado não justifica o investimento. Mas não dá para confundir destinação da renda —uma decisão do Congresso— com ganhos de eficiência da operação sob controle privado.

Outra crítica é que os ativos da Eletrobras são estratégicos para o país e deveriam permanecer sob controle estatal. Mas isso ocorreu. No modelo escolhido, uma reestruturação societária manteve a Eletronuclear e a Itaipu Binacional sob o controle direto ou indireto da União, por meio da recém-criada ENBPar.

Mesmo privatizadas, companhias ainda podem gerar valor para a sociedade. A Engie, ex-Gerasul, subsidiária da Eletrobras privatizada em 1998, investiu e se expandiu. Hoje, gera mais de 8.000 MW. Em 20 anos, aumentou de 5% para 70% do valor de mercado da Eletrobras. Em vez da atuação direta nos negócios, o Estado exerce a regulação setorial, ambiental, do mercado de capital etc. e colhe os benefícios do seu crescimento.

Seria um enorme retrocesso rever a desestatização da companhia, com grande prejuízo à segurança jurídica. Drenaria recursos para transformar a empresa em nova presa para o oportunismo político.

Capitalizada e bem gerida, ela tem mais agilidade para contratar recursos para crescer (inclusive humanos), reestruturar dívidas e reduzir seu custo de capital. Combinada com boa regulação e governança, a gestão privada apresenta melhor desempenho. Hora de reforçar —e não atacar— o modelo de agências reguladoras independentes.

Permaneço fiel ao que falei há cinco anos. O controle privado da Eletrobras continua sendo a melhor forma de conferir agilidade para a companhia produzir riquezas de modo sustentável, aqui e em outros mercados, com enormes ganhos para a sociedade. A privatização não deve ser revista. Em termos de participação estatal, neste caso, menos é mais.

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