A reforma elétrica e a sua visão simplória do mercado elétrico – Artigo

Por Ronaldo Bicalho (*)

A nova reforma do setor elétrico brasileiro proposta pelo Governo está delineada em uma nota técnica do Ministério de Minas e Energia que consta de um processo de consulta pública atualmente em curso.

No cerne dessa proposta encontra-se a aposta na liberalização do mercado elétrico brasileiro de maneira a permitir a operação plena dos mecanismos de preço e o exercício da gestão individual dos riscos. Para viabilizar essa virada em direção ao mercado livre e a descentralização das decisões, garantindo a sustentabilidade da expansão do sistema elétrico, recorre-se à introdução de uma separação entre lastro e energia de forma a compatibilizar competição e confiabilidade; um dos grandes problemas desse tipo de reforma.

Sob a singela opção pelo mercado, a proposta esconde a enorme complexidade envolvida nesse tipo de política setorial mediante o recurso a uma retórica primária plena de platitudes e clichês, fruto de um tecnocratismo infantil e de um oportunismo irresponsável. Combinação explosiva quando se reconhece que a natureza do jogo ganha-perde no setor elétrico apresenta características muito peculiares nas quais a vitória baseada em uma desestruturação sistêmica gera uma situação que arrasta todos os jogadores para o buraco; inclusive os vencedores iniciais. É miopia típica daqueles que confundem desastres com janelas de oportunidades e acreditam na sandice de que a estratégia de sacar mais rápido garante a sobrevivência no longo prazo em um setor marcado pela brutal interdependência técnica, econômica e política entre os elementos que compõem esse espaço econômico pleno de especificidades.

Face a isso, é necessário colocar a discussão em seus termos reais de forma a reter o mínimo de sensatez em um tema no qual o reconhecimento da sua complexidade é substituído, em geral, pela utilização dessa mesma complexidade para ocultar os reais interesses em disputa.

Nesse sentido, o mínimo que se exige para começar uma discussão honesta é definir o significado de alguns elementos básicos que fazem parte dessa discussão. Em particular, o papel da introdução da concorrência no mercado elétrico no debate sobre a política energética no mundo hoje. E aqui não é necessário nem mesmo incorporar as especificidades do setor elétrico brasileiro, basta ficar no modelo térmico padrão para identificar a complexidade desse debate e fugir das platitudes e dos clichês imbecilizantes.

Em 1978, uma lei federal, o Public Utility Regulatory Policy Act (PURPA), aprovou a venda de eletricidade por agentes que não eram empresas elétricas tradicionais (utilities) nos Estados Unidos.

Dessa maneira, depois de décadas do exercício do monopólio verticalizado no mercado elétrico, abriu-se, por razões diversas, um processo de liberalização que marcou fortemente a evolução desse mercado nas décadas seguintes.

Portanto, pode-se afirmar que, grosso modo, a experiência de liberalização dos mercados elétricos ao redor do mundo já conta com, aproximadamente, quarenta anos.

Se existe uma lição sobre essa experiência, em torno da qual possa se estabelecer alguma convergência, é aquela que chama a atenção sobre as enormes dificuldades envolvidas na introdução da concorrência no mercado elétrico. Concorrência esta que, em tese, permitiria o pleno funcionamento dos mecanismos de preço e da gestão dos riscos por parte dos agentes e a viabilização do livre exercício das autonomias estratégicas individuais. No entanto, as restrições a esse exercício, colocadas por fatores intrínsecos ao funcionamento e à expansão do mercado elétrico, se demonstraram extremamente rígidas.

Da ideia simplista de uma regulação temporária leve e passageira presente nos primórdios da reforma elétrica inglesa nos anos 1980s aos sofisticados mecanismos de capacidade da atual tentativa reformista nas terras de Sua Majestade, passando por crises dramáticas como a californiana e a brasileira do início dos 2000s, a reforma liberal tem percorrido um caminho muito mais difícil do que aquele imaginado pelos primeiros reformistas de quarenta anos atrás.

Portanto, quando se fala sobre caminhar na direção de um mercado no qual prevaleçam os sinais de preço e a gestão individual dos riscos está se falando de uma estratégia setorial de extrema dificuldade tanto em termos de elaboração quando de execução. Em outras palavras, caminhar na direção do mercado é uma ação de política energética setorial altamente complexa. Subestimar essas dificuldades e complexidades inerentes às características do produto eletricidade e de seus processos, depois de quarenta anos de um duro processo de aprendizado, é um equívoco expressivo, irresponsável e acima de tudo, inaceitável.

Um traço essencial do mercado elétrico – e fundamental para não perder o pé em uma discussão de tamanha complexidade – é o fato desse mercado ser uma construção institucional. Para funcionar, o mercado elétrico necessita de regras pré-estabelecidas sem as quais sua existência é simplesmente impossível. Não se trata aqui de sancionar (ou não) institucionalmente relações já pré-existentes entre os agentes (como acontece geralmente com outros mercados), mas de concebê-las inicialmente na prancheta, implementá-las no mundo real, e então avaliar sua eficácia. Portanto, o que se tem sempre é um mercado projetado, desenhado, arquitetado que pode funcionar ou não; que está funcionando ou não. Portanto, o mercado elétrico é um mercado “fake”, um simulacro de mercado. Pode ser uma imitação de um mercado monopolista (como na solução tradicional) ou uma imitação de um mercado competitivo (como na solução reformista).

Por isso, a opção por uma solução de mercado, no setor elétrico, per se, não diz nada. Sem os fundamentos, os mecanismos e as hipóteses de funcionamento e de resultados esperados do projeto de mercado em tela, o que se tem é uma proposta vazia e uma retórica de intenções. Aceitar a opção de avançar na liberalização, a priori, e deixar o seu detalhamento para uma fase posterior, como está na proposta de reforma, é inaceitável tanto em termos de método quanto em termos éticos. A premência da crise não pode ser invocada para coonestar uma estratégia que a longa experiência reformista vivenciada nas últimas décadas aponta como sendo completamente inadequada e só pode ser encarada como um escárnio às exigências mínimas de um debate setorial de qualidade e responsabilidade.

Os projetos reformistas iniciais da década de oitenta eram muito primários, fruto de uma subestimação das especificidades do mercado elétrico que culminou em desastres como a crise da Califórnia. Os reveses do início dos anos 2000s fizeram com que o produto reforma voltasse para a prancheta e se inaugurasse a nova e naturalmente interminável fase das “reformas das reformas”.

É nesse momento que surgem mecanismos como o de capacidade que buscam dotar o produto de características que possam de alguma maneira superar as deficiências do modelo competitivo anterior; principalmente no que diz respeito à adequação da expansão da capacidade para evitar apagões e racionamentos, que têm o dom de fragilizar enormemente a proposta reformista.

Estes mecanismos de segunda geração visam lidar com um risco inerente à reforma, que é a possibilidade do mercado não entregar aquilo que estava projetado para ele entregar. Portanto, não se trata de um instrumento para fazer face ao risco de mercado tradicional, mas de um mecanismo para fazer face ao risco do mercado. Mas qual mercado? Justamente aquele mercado que foi projetado. Em outras palavras, é um mecanismo de mitigação do risco de projeto de mercado; um seguro contra a falha institucional do processo de construção do mercado.

Afinal, em tempos de market designers é razoável se precaver dos resultados de um processo que muitas vezes se assemelha mais a uma decoração de interiores de ambientes competitivos do que a uma efetiva arquitetura de mercados competitivos.

O problema não é a atividade de desenhar mercados em si – atividade que faz parte da própria natureza do setor desde o seu início -, mas a simplificação indevida dessa atividade; da ocultação da sua complexidade tanto em termos da elaboração do projeto de mercado quanto da sua execução.

A consequência mais relevante do tipo de solução “arquitetônica” adotada na segunda geração das reformas – a construção de um “puxadinho” do mercado de energia que é o mercado de capacidade – é justamente fortalecer a dimensão institucional do processo; principalmente um viés mais intervencionista e administrativo, em detrimento de uma pegada mais de mercado puro como pleiteavam os reformistas tradicionais.

No entanto, não foi a possibilidade de acelerar as reformas que deu força a esses mecanismos de nova geração, mas a introdução das energias renováveis. A necessidade de remunerar o back-up das novas fontes de energia intermitentes colocou na roda os mecanismos de capacidade; empurrados muito mais por imperativos de política energética ligados ao trade-off segurança de suprimento e mudança climática do que aos velhos ditames da introdução da competição dos anos noventa.

São justamente esses imperativos de política energética que formatam a discussão em torno do debate sobre o atual momento do setor elétrico no mundo. Essa formatação é claramente identificada no atual debate sobre a recente reforma inglesa; com o claro incômodo dos reformistas tradicionais com a atual “pegada intervencionista” do Estado inglês. Seja lá o que isso signifique.

Dessa forma, sem ter a clareza sobre os rumos (ou a falta deles) no debate sobre o setor elétrico no mundo, a discussão brasileira já começa completamente sem referências mínimas. Sem situar o debate brasileiro no contexto do debate mundial sobre o setor elétrico não é possível avançar em uma agenda estruturante. Em outras palavras, são necessárias algumas definições mínimas para ter uma discussão construtiva sobre os problemas do setor elétrico brasileiro. Quando nem mesmo o contexto internacional do setor elétrico – marcado por radicais transformações em sua base técnica, econômica e institucional – é entendido, a possibilidade de sucesso de qualquer intervenção reformista se torna muito pequena.

No entanto, essas preocupações não estão presentes no debate brasileiro sobre a atual reforma. A Nota Técnica do MME constitui um esboço inicial de uma proposta a ser posteriormente detalhada; um rascunho precário,consolidado a marretadas, que explicita um momento difícil do setor elétrico brasileiro de muitas perguntas e poucas respostas. Se somarmos a isso a fragmentação dos interesses e a destruição das instituições setoriais (e as do país), o quadro que se desenha é extremamente perigoso.

Diante desse contexto, aconselha-se prudência e maturidade nas ações. Quando não se sabe o que se está fazendo é melhor fazê-lo devagar. Balançar o barco em busca de vantagens passageiras pode jogar todos na água. Os últimos quarenta anos estão cheios desses eventos. Bom senso e água benta não fazem mal a ninguém. É melhor baixar a bola, porque os desastres no setor elétrico, quando despontam no horizonte, adquirem uma dinâmica própria difícil de ser contida. Não se iludam, senhores. No setor elétrico, os desastres anunciados, em geral, se realizam. Ou se preferirem, em linguagem mais direta, no setor elétrico quando é pra dar M…, dá M….

 

(*) Pesquisador do Grupo de Economia da Energia do IE-UFRJ e Diretor do ILUMINA

 

 

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