A VERDADE SOBRE O AJUSTE DO SETOR ELÉTRICO PELA QUITAÇÃO DAS CRC’S (1993) – Artigo

Eng. José Antonio Feijó de Melo

Recife, dezembro de 2017

 

Quando se discutem os recorrentes problemas que têm afetado o setor elétrico brasileiro já há mais de vinte anos, quase sempre surge alguém afirmando que no início dos anos noventa do século passado o governo federal, através da Lei 8.631, teria transferido às empresas concessionárias do setor importância da ordem de US$ 26 bilhões, a fim de resolver a situação caótica de inadimplência generalizada em que tais empresas estariam então mergulhadas.

Esta balela tem sido mencionada inúmeras vezes, na maioria dos casos com o intuito de denegrir as empresas estatais do setor elétrico que à época, mesmo sem constituirem um monopólio institucional que nunca houve no Brasil, de fato controlavam cerca de 99 % do setor.

Na verdade, o governo jamais transferiu esse dinheiro para as empresas do setor elétrico. Caso se pretenda falar em alguma transferência de valores, de fato ela havia ocorrido ao longo dos 15 anos anteriores a 1993, mas do setor público (empresas estatais federais e estaduais do setor elétrico) para o setor privado, através da correção pelo poder concedente (leia-se Ministérios da área econômica) das tarifas de energia elétrica sempre abaixo dos índices inflacionários, assim reduzindo os seus valores reais, na tentativa vã de com isto contribuir para o controle da inflação galopante daquele período. Entretanto, na prática, isto apenas reduzia a rentabilidade das concessionárias abaixo do limite mínimo legal, levando-as a um processo de descapitalização que acabou se traduzindo em uma inadimplência intra-setorial generalizada.

A continuidade desse processo por tão longo tempo, quase levou todo o setor à bancarrota, pois, se o setor vivia “o conforto da remuneração garantida”, como se alegava, em contrapartida também por imposição legal tinha a sua tarifa fixada pelo custo. E se as tarifas, por estarem manipuladas para baixo, não cobriam sequer os custos do serviço, diga-se que contabilmente fiscalizados e controlados pelo poder concedente (DNAEE), um dia isto teria de parar, mesmo porque a legislação vigente possuía o mecanismo adequado para tal fim.

Assim, os déficits na rentabilidade mínima legal das empresas, criados pela manipulação das tarifas, estavam todos devidamente contabilizados na chamada Conta de Resultados a Compensar – CRC de cada concessionária, constituindo-se legalmente em crédito junto ao poder concedente. Para quem não é do ramo, esclarecemos que esta conta existia regularmente e era fiscalizada pelo poder concedente, pois funcionava nos dois sentidos, isto é, se houvesse rentabilidade acima da legal, no ano seguinte a concessionária recebia tarifas menores para compensar o excesso de receita auferido, ou vice-versa.

Pois bem, teria de haver um limite para aquele descompasso e, num primeiro momento, esse limite chegou na hora do fechamento dos balanços do ano de 1989, quando se apurou que havia empresas com rentabilidades tão comprometidas que chegariam a percentuais negativos da ordem de 7,0%, os quais elevariam ainda mais os déficits das respectivas CRC’s. Era o final do governo Sarney com inflação nas alturas.

Então, com base no Decreto Lei 2.432, de 17/05/1988, que procurando melhorar a situação geral do setor introduzira várias alterações na regulamentação vigente e, no seu artigo 8º, já previra a solução para o problema das CRC’s, conferindo poderes ao Ministro da Fazenda para este fim, no dia 07/03/1990 o Ministro autorizou formalmente a compensação retroativa ao exercício de 1989 de créditos das CRC’s das concessionárias com débitos da Eletrobras junto à União, através de encontro de contas meramente contábil, não envolvendo valores financeiros.

Assim, tudo se passava como se a União pagasse às concessionárias pelos créditos das suas respectivas CRC’s com “títulos” de sua emissão, as concessionárias quitassem os débitos entre si (faturas de suprimento de energia das geradoras para as distribuidoras) com o repasse de parte desses “títulos” e, com o restante, todas elas quitassem os seus débitos para com a Eletrobras, oriundos de prestações de empréstimos não honradas e valores de diversos encargos devidos. E finalmente, com todos esses “títulos” recebidos, fechando o círculo, a Eletrobras quitasse os seus débitos com a União, tudo conforme estabelecido no artigo 8º do citado Decreto Lei 2.432.

Desse modo, Tesouro Federal, concessionárias e Eletrobras acertaram suas contas sem que tivesse havido circulação de dinheiro vivo nem “transferência” efetiva de recursos do governo para as concessionárias, apenas com “papel” passando de mão em mão e finalmente retornando à origem.

Registre-se que essa primeira compensação não foi suficiente para zerar os saldos das CRC’s de todas as concessionárias, embora tenha representado uma sensível melhoria nos respectivos balanços, associada também ao começo de uma recuperação tarifária. No entanto, como se sabe, os desequilíbrios da economia não foram solucionados pelo governo que tomou posse em 1990. A inflação persistiu e os seus efeitos negativos continuaram a se refletir nos reajustes tarifários, impactando ainda mais as CRC’s, de modo que já no governo Itamar Franco, em 1993, quando então se procurava corrigir os rumos da economia e já se preparava as empresas elétricas para o processo de privatização, fez-se necessário o equacionamento definitivo da pendência referente às CRC’s.

Assim nasceu a Lei 8.631, de 04/03/1993, que revogando o DL 2.432/88 promoveu grandes alterações nas regulamentações do setor elétrico, entre outras providências extinguindo a remuneração garantida e a própria CRC e, pelo seu artigo 7° e seus muitos parágrafos, praticamente idênticos ao artigo 8º e parágrafos do DL 2.432, determinou a realização de uma nova e definitiva compensação dos saldos das CRC’s nos mesmos moldes da anterior, isto é, através de um encontro de contas sem envolver a transferência de recursos financeiros. Num detalhe, esta lei determinou um desconto de 25% nos saldos das CRC’s das concessionárias, o que para elas representou um prejuízo significativo.

Na época, apenas para dar uma imagem da dimensão que o processo atingira, calculava-se que o montante global desse encontro de contas chegava a cerca de US$ 20 bilhões. Mais adiante, outros calcularam o montante em torno de US$ 26 bilhões, mas apenas como valor de referência, pois de fato não houve repasse de dinheiro algum.

Portanto, e em resumo, esta é a verdade sobre o processo de inadimplência generalizada que de fato ocorreu entre as empresas do setor elétrico brasileiro, com seu auge durante a chamada década perdida (anos 1980), e o encaminhamento da respectiva solução legal via quitação pelo governo das Contas de Resultados a Compensar, as conhecidas CRC’s, então pendentes. Se alguém duvidar, basta consultar os documentos da época, cujos principais estão citados acima.

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