Aos meus leitores da Carta Aberta – Artigo

Pontos negativos do modelo proposto para privatização da Eletrobras

É obrigação do cidadão participar da vida pública do seu país na medida da sua capacidade e oportunidade. Neste sentido, tendo reagido publicamente ao modelo de privatização proposto para Eletrobras, aponto algumas das fragilidades que, na minha visão, ele apresenta, visando contribuir não digo para o seu aperfeiçoamento, mas para a sua total substituição por algo mais adequado e melhor estudado.

  • Desconsiderar a tendência de evolução tecnológica

Existe a mais absoluta unanimidade nas políticas energéticas de todos os países que elas devam ser desenvolvidas tendo em mente um futuro mais sustentável para o planeta. Isso implica na presença cada vez maior de fontes de geração descentralizadas, com o mix de produção de energia mais adequado a cada região. Pelas dimensões continentais brasileiras é de se esperar que venham a existir mais eólicas e solares no Nordeste ou mais gás natural no Sudeste (associado ao pré-sal). É esperado também um maior peso da autoprodução, da redução dos custos dos painéis solares e melhoria da eficiência e custo das baterias de acumulação, o que hoje limita o uso dos painéis fotovoltaicos. A expansão das redes inteligentes transformará os consumidores em prosumidores ou seja.  Eles podem tanto receber quanto fornecer energia da rede pública. As empresas devem se acomodar a estas geografias de produção diferenciadas. A era das grandes usinas e extensas linhas de transmissão acabou. A decisão de fazer Itaipu- por exemplo –  foi tomada quando a capacidade instalada do Brasil era inferior à da Usina (12 GW comparáveis aos 12,6 GW originais de Itaipu). Mesmo prevendo crescimento do mercado de uma forma conservadora, daqui a 20 anos Itaipu estará atendendo a menos da metade da carga da Região Sul, se tornará um recurso local.

O sistema elétrico nacional tem que ser pensado em torno de umas 6 ou 8 macrorregiões elétricas, tão autossuficientes quando possíveis, evidentemente interligadas, mas não da forma pensada no passado, quando se construía linhas de transmissão para escoar a energia da usina para centros de carga distantes. Estas mudanças da natureza da carga (mercado) e da topologia do sistema elétrico, recomendam que a transmissão seja estruturada em sistemas regionalizados, que possuam padronização, uniformidade e responsabilidade técnica integrada na fase de operação e manutenção, acabando com esta licitação de um trecho de linha aqui, de uma subestação acolá, cada uma com um grupo investidor diverso, com fornecedores diferentes, criando inumeráveis problemas para a fase posterior à implantação.

Somando estas duas tendências da geração e transmissão vemos que a boa competição sugere unidades regionais distintas tanto de geração e transmissão.

Concentrar tudo numa empresa – Eletrobras – contraria esta tendência, limita a velocidade da evolução tecnológica e não favorece a busca da  competitividade, como aliás já se observa na teimosia em desenvolver usinas na Amazônia, construir linhas de transmissão de 2.400 km de extensão até o Sudeste e outras concepções hoje , a meu ver, injustificáveis podendo até estas linhas de transmissão virem a ficar  subcarregadas antes de serem amortizadas, gerando um sobrecusto gravoso para os consumidores.

  • Desconsiderar a adequada gestão ambiental

É imperdoável, num contexto onde 194 países conseguem se pôr de acordo e assinar compromissos em relação ao meio-ambiente global, um país do tamanho e da importância do Brasil, com as reservas naturais que possui, com o sistema hídrico que possui, desconsiderar esse fato ao desenhar uma proposta de modernização do seu sistema elétrico, um sistema que provoca enormes impactos ambientais. A gestão adequada por bacias não pode ser tratada como se fosse uma questão de pagamento de um certo valor durante uns tantos anos para recuperar nascentes de afluentes do São Francisco.

Só para dar uma ideia o Projeto de Lei menciona pagar 350 milhões por ano para este programa de benefício do ambiente e do Nordeste a serem fiscalizados pela ANEEL. Fiscalizar quem? A CODEVASF ou quem mais? Primeiro não compete a ANEEL fazer este tipo de fiscalização, talvez à ANA.

Segundo, face o valor da energia gerada pela atual capacidade instalada do Grupo Eletrobras o valor proposto a ser pago nos primeiros anos (depois é ainda menor e se extingue) representa um centésimo do valor da energia gerada pelo Grupo Eletrobras (estimado de forma conservadora). Qual é o verdadeiro compromisso que se quer em relação ao ambiente? Os reservatórios do Nordeste estão vazios decorrência de uma superexploração na tentativa de manter tarifas mais baixas. As tarifas não baixaram, mas os reservatórios e a vazão do São Francisco….

A constituição de uma nova Eletrobras, uma megaempresa integrada não atende às diversidades ambientais e sociais do nosso país.

  • Desvaloriza o patrimônio público

– Hoje é ponto pacifico na avaliação das empresas que uma parte crescente do seu valor se apresenta sob a forma de capital intangível. Sua marca, suas patentes, sua reputação, sua capacidade de atuar nos contextos onde atua em suma, na sua cultura empresarial. As empresas da Eletrobras, neste aspecto são profundamente diferentes entre si, como não podia deixar de ser, atuando em regiões tão diversificadas. Mesmo assim ainda tropeçam em dificuldades sejam ambientais, sejam tecnológicas, seja no próprio cumprimento da legislação. Esta empresa tem sido procurada por todos investidores nacionais ou estrangeiros para parcerias de investimento mercê este grau de conhecimento. Não é à toa que a Eletrobras participava de 174 diferentes Sociedades de Propósito especifico, que atuavam na geração ou na distribuição. O modelo proposto de diluição do capital, fazendo que os 49 % a serem detidos pela Eletrobras não pesem mais do que 10% em termos de voto, representa uma devastadora destruição destas importantes culturas técnicas, comerciais e institucionais diferenciadas, construídas ao longo de 70 anos em alguns casos.

– É ponto pacifico no mundo empresarial e no mercado de capitais que aquele que paga mais por uma empresa (reconhece maior valor) é o chamado acionista estratégico. Há mesmo uma gradação em Bolsa de Valores do tipo de investidores. O especulador compra barato e sai quando tem um ganho compensador, na maioria das vezes rápido. Sair significa vender para um aplicador mais estável, um Fundo de Investimento, que manterá uma certa quantidade de ações na sua carteira e as irá trocando na medida das suas necessidades e do seu potencial de valorização. Este por sua vez sai – desinveste – vendendo para um Fundo de Pensão, que tem mais ou menos as mesmas necessidades, mas em geral pode manter a ação mais tempo em carteira, desde que sua performance seja boa. E este por sua vez, no devido tempo de honrar resgates dos seus planos de previdência, vende a ação para um investidor estratégico, assim chamado por ser uma empresa do mesmo setor, que se torna dona, quer o controle, retira mais valor da operação eficiente e não pretende se desfazer das ações e sim remunerar-se com dividendos.

Ora conforme inúmeras declarações de representantes do Governo, o modelo proposto no Projeto de Lei, denominado Corporation, visa “vender a Eletrobras para investidores financeiros como forma de democratizar o capital”. Assim, fora o abusivo uso da palavra democratização, como explicado acima, além de se perder os prêmios de controle vendendo a ação para o primeiro grau de investidor acima do que já lá está ( pois só especuladores manteriam ações numa empresa que estava notoriamente falida e – ressalto- não quero com isso depreciar de forma alguma a importância do especulador na dinâmica do mercado de capitais onde ele tem seu papel) amplia-se, no  caso específico, a possibilidade do Governo estar promovendo a criação de uma outra OI ( como a da Telefonia) onde uma dívida imensa faz “pendant” com uma implacável disputa entre grupos de acionistas.

-Vinculado ao ponto acima está a total impropriedade de se ter acionistas de curto prazo num negócio de longuíssimo prazo e de permanentes responsabilidades ambientais. Há lições como as do desastre de Mariana a se ter em mente. Hoje a Vale honra seu compromisso histórico com o Vale do Rio Doce que lhe deu o nome e procura uma solução para os problemas causados pela Samarco, uma empresa da qual participava do controle. E se ela fosse uma Corporation de acionistas eventuais?  Certamente estes levariam o investimento à perda e desapareceriam nas brumas de longas ações judiciais.

– A criação de uma Golden-Sare é outro ponto absolutamente negativo na visão do mercado de capitais. Desvaloriza a companhia.  Para que? Para nomear um Conselheiro Presidente e ter uns poderes de veto em matérias meio obscuras, poderes estes cerceados por imposições que podem não vir a ser razoáveis por parte do Governo?

  • Promove-se a venda num contexto de incertezas setoriais absoluto

Há que reconhecer o importante esforço de proposição de soluções, ainda que por vezes estranhas, audiências e consultas públicas, melhorias operacionais na Eletrobras e outros aspectos destes 20 meses do Governo. Mas as grandes definições setoriais restam em aberto: passivos de GSF, passivos e futuro do programa nuclear, passivos das empresas do Amazonas com a Petrobras e Eletrobras, valores de CDE questionados pela ANEEL, dividas das distribuidoras, Impairments em balanços, investigações de corrupção em curso e outras muitas, escondidas atrás de siglas enigmáticas para a maioria das pessoas. A quanto monta este total? Quanto dele vai recair na Eletrobras ou na União? Qual será a arte de faze-los aterrissar no bolso dos consumidores? São pontos importantes a serem resolvidos já, ou pelo menos perfeitamente balizadas as suas consequências sobre a Eletrobras, onde me parece grande parte recairá.

E há ainda este espectro da data marcada para vender por uma necessidade que não é a do setor elétrico ou do bom futuro do pais.  O Brasil necessita um setor eficiente, competitivo, com baixo risco regulatório para amparar a desejada retomada de investimento que todos queremos. Essa retomada só se conseguirá com boa parte dos ativos da Eletrobras privatizados – não há dúvida –  e de algumas de suas empresas controladas. Mas existem outras como as nucleares e Itaipu onde isto não é possível constitucionalmente. Há o caso de uma geradora como a Chesf, que eu particularmente não considero privatizável face os usos múltiplos da escassa água da sua bacia, onde sua atuação transcende a sua responsabilidade setorial no campo da eletricidade, para ser a grande fonte de água para 30 por cento da população brasileira. Lembro aqui que esta empresa e seus negócios deverão vir a ser profundamente afetados por eventual – e provável ao que parece –  transposição de águas da bacia do Rio Tocantins.

Não quero deixar de registrar por fim, mas não menos importante, que nunca se pensou em privatizar o conjunto da Telebrás, da Portobras, da Siderbras etc e outras holdings criadas num momento de concentração autoritária dos poderes no governo federal.  Teve-se em mente o esforço de Roosevelt em quebrar monopólios e incentivar a forte competição que leva ao progresso. Essa privatização objeto do Projeto de Lei, feita de forma integrada, a meu juízo, além de todos estes fatores já mencionados, pode se constituir numa grande ameaça à própria democracia brasileira.

A rota da privatização deve ser outra. Pretendo vir a sugeri-la para análise e consideração pública em outro texto.

Em 22 de janeiro de 2018

José Luiz Alquéres

 

 

 

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