As contas oclusas do setor elétrico

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/contas-oclusas-do-setor-eletrico.ghtml

Roberto Pereira D´Araujo (*)

Exaltando o fim da bandeira da escassez, é hora de refletir profundamente sobre números do setor elétrico. A tarifa é hoje uma das mais caras do planeta em relação à renda média. Um pouco de curiosidade revela misteriosos valores.

Começando pelas nossas tomadas, o Brasil fez uma mudança exigindo um padrão inédito. Adotamos conectores embutidos e até um terceiro pino para aterramento, o “pino nada”, pois a maioria dos consumidores não tem a fiação para essa função. Bolaram um padrão para 20 e 10 Amperes ao invés de apenas um. Ora, a transmissão da corrente depende da área de contato dos pinos. O de 10 A tem 4 mm de diâmetro, mas o de 20 A não tem 8 mm, mas 4,8, apenas 20% a mais. Evidente que bastaria apenas um formato para atender à exigência de segurança. Mas, para a alegria dos fabricantes e irritação dos consumidores, os adaptadores deram um jeito.

A bandeira da escassez soa módica noticiada para cada 100 kWh. Quando se usa a unidade praticada no planeta, o MWh (1000 kWh), começam a surgir comparações bizarras. O que significa pagar R$ 142/MWh em relação a outros valores do setor? Os leilões A-3 e A-4 de 2021 mostram investidores assegurando vender energia eólica e solar por menos de R$ 130/MWh. Ou seja, a bandeira de escassez está pagando previamente valores da energia de novas usinas. Se isso não é um indício de que não está havendo investimento suficiente, estamos mal de entender sintomas.

A “escassez”, ecoa como uma tragédia e, geralmente, São Pedro leva a culpa, pois isentam-se todos os outros fatores que podem esvaziar reservatórios e fica mais fácil cobrar do consumidor. Mas essa escassez é inédita? Claro que não! Ela foi pior do que a do racionamento de 2001, mas no registro histórico de 91 anos das vazões, quando comparada ao “período crítico”, de 1949 a 1956, os anos 2014 – 2021 são apenas 0,4% mais secos. (Ver gráfico). Sequer há a desculpa de esquecer essa seca do século passado porque ela é parte essencial do modelo. Apesar de óbvio, tenho que repetir que reservatórios também se esvaziam se não há investimento adequado para a evolução do consumo.

Outra conta oclusa é o tal do risco hidrológico que ganhou um nome em inglês GSF (Generation Scaling Factor). Significa uma espécie de “azar” hidrológico que cada gerador tem que assumir por não conseguir gerar uma quantidade de energia fixa definida por um modelo matemático. Ora, o gráfico mostra que, em clima tropical, as vazões têm grande variância. Sendo o sistema interligado, esse risco deveria ser assumido coletivamente, mas, a menos de uma precária conta chamada MRE, por incrível que seja, individualizamos o risco!

O impercebido é que, assim como há o “azar” de não ter água para gerar, há também o inverso. De 2004 até 2012 as hidráulicas tiveram a “sorte” de gerar 270 GW médios acima de seus certificados de garantia física. Não é pouca energia! É análogo a 5 anos de consumo! Só que no exótico modelo brasileiro, a “sorte” não paga o “azar”. É como ganhar na megasena, mas o prêmio é tão irrisório que não consegue pagar as dívidas do “azar”. Pior! As usinas atingidas pela MP 579, que, apesar do garrote de preços, não conseguiu reduzir tarifas, passam o risco para o consumidor cativo. Mas, nos períodos de “sorte”, quem se aproveita é o mítico mercado livre que, hoje, representa cerca de 30% do consumo.

Essa é a parte mais complexa e alvo de críticas a quem tenta indicar que a “liberdade” desse mercado é peculiar. De 2003 até 2012 o PLD médio esteve abaixo de R$ 55/MWh. Como não há transparência e o PLD é a referência desse mercado, a pergunta que continua sem resposta é: Qual foi a contratação de expansão da oferta nesse período? Se não houve a expansão que justifique o crescimento desse mercado, como essa omissão afetou os outros consumidores?

Chegamos ao cerne da celeuma capital privado x capital público com a ajuda de outros cálculos oclusos. A evolução do consumo de energia elétrica no Brasil tem uma característica duradoura. O consumo cresce a cerca de 1550 MW médios a cada ano, o que exige por volta de novos 2500 MW por ano.

Basta analisar a evolução da capacidade instalada brasileira para perceber que a pujança do capital privado no setor elétrico foi decepcionante. De 1973 até 1990, período estatal, em média, acrescentamos 2400 MW a cada ano, um déficit anual de 100 MW (4%). Mas, de 1991 até 2001 o aumento anual foi de 1930 MW. Portanto, um déficit de 570 MW/ano (23%)!

Qual foi o anúncio mais fundamental dessa época? A privatização de todo o sistema da Eletrobras, que só resultou numa venda parcial por conta do racionamento de 2001. Sob um cenário de transferência de propriedade, o capital não investiu em novas usinas e nem a Eletrobras, pois seria privatizada. Examinando as nossas hidráulicas, constata-se que cerca de 16% delas foram adquiridas prontas pelo setor privado, 22% foram construídas em parceria com estatais e apenas 8 % das usinas é privada na origem! Parece que não aprendemos e vamos repetir a frustrante experiência!

A cara solução para essa decepção explica grande parte da nossa tarifa recorde: Usinas térmicas fósseis! De 1999 até 2007 essas térmicas saltaram de 8 GW para 18 GW. Depois do período de preços baixos no mercado livre, cresceram de 18 até 30 GW. Eólicas e solares, apesar de subsidiadas no mercado, ainda estão muito abaixo da potencialidade do nosso território.

Números oclusos são a base para a desinformação e, sem informação, não haverá saída para a nossa cara energia.

(*) Diretor do Instituto Ilumina roberto@ilumina.org.br

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