Conflitos com o sol – Artigo no Valor

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Roberto Pereira D’Araujo (*)

É inacreditável, mas, o Brasil, com seu confuso, caro e conflituoso modelo mercantil do setor elétrico, está prestes a dificultar a energia solar nos seus telhados! Além de gerar energia limpa, as placas refrescam os tetos desse quente Brasil. O lamentável é que quem está liderando essa tese retrógrada é a própria agência reguladora.

A impressão que se tem é que a ANEEL esqueceu que, desde a inauguração desse modelo em 1995, um ano antes da data de nascimento da agência, a tarifa só encareceu e, evidentemente, os consumidores procuram alternativas. A ANEEL só disponibiliza esse dado essencial para anos posteriores a 2003, apesar de já terem constado no seu site. Quem os coletou, antes do inexplicado desaparecimento, pode verificar aumentos de mais de 60% acima da inflação para o setor residencial e mais de 100% para o industrial.

Sendo assim, considerada a fantástica e benéfica mudança tecnológica adotada no mundo todo, como não prever que os telhados brasileiros instalariam fotovoltaicas? Quem quer pagar a 3ª tarifa mais alta do planeta, o dobro da média mundial, segundo a Agência Internacional de Energia (https://www.iea.org/statistics/prices/)?

A impressão que se tem é que a agência sequer compreende o funcionamento do singular sistema brasileiro. Argumenta que há “subsídios” doados pelos consumidores sem fotovoltaicas para os com fotovoltaicas. Quem não conhece o setor imagina que a instalação foi subsidiada com descontos em impostos de importação, mas nenhuma vantagem desse tipo foi concedida.

Todo o argumento da agência está concentrado num pequeno pedaço da rede, a distribuição. A regra vigente é que os custos de distribuição são cobrados proporcionalmente ao consumo, ou seja, paga mais quem consome mais. Evidentemente, as residências com telhados fotovoltaicos, reduzem seu consumo, pois parte da energia está sendo gerada internamente. Para o sistema tudo funciona como se o consumidor economizasse energia durante o dia desligando seus eletrodomésticos. Reparem que, se a tese da agência for vitoriosa, podemos chegar ao absurdo de cobrar mais de quem consome menos!!

A agência tem uma visão parcial do problema. Vejam os aspectos não considerados:

  1. Em sistema de suprimento de energia que monitora reservatórios e compensa variações de estoque com energia térmica, reduções de consumo podem resultar em contenção de custos para todos, pois, afinal, bandeiras tarifárias acionadas chegam a sobretaxar em até 20% o kWh consumido. O consumidor solar alivia o sistema e, mesmo assim, paga bandeiras como todo mundo. Nenhuma palavra sobre isso.
  2. Devido ao aumento no uso de ar condicionado, o horário no qual o consumo atinge seu máximo está ocorrendo às 15 hs ao invés das 19 hs de 10 anos atrás. Portanto, a geração solar alivia o carregamento da rede de distribuição justamente na hora do “pico”. Nada sobre isso.
  3. Nem todos os telhados solares geram “saldos” de energia que, segundo uma equivocada regra, poderiam ser consumidos em até 5 anos. Portanto, a maioria dos consumidores de energia solar residencial apenas reduzem seu consumo. A ANEEL trata todos como se fossem “exportadores” de energia “malvados” que não querem pagar pelo uso da rede de distribuição. Grande equívoco!
  4. Esses “saldos” não são armazenados na rede de distribuição, como parece ser o argumento da agência. No sistema brasileiro, quem pode fazer o papel de “bateria” são os reservatórios, vantagem que poucos países dispõem. Evidentemente essa energia armazenada não dura 5 anos, pois se evaporaria e, aí está um brutal erro.

Na realidade, a situação das distribuidoras brasileiras está complicada não pelos telhados, mas sim pelos defeitos do modelo.

  1. As distribuidoras são as únicas contratantes de longo prazo. Toda a expansão da oferta está suportada pela demanda das distribuidoras. E, por acaso, os telhados solares são a única incerteza dessa demanda futura? Claro que não! O mercado livre de energia, esse sim, com subsídios, tornou o futuro das distribuidoras um verdadeiro suspense.
  2. Esse mesmo consumidor que “se livra” da distribuidora, por peculiaridades físicas do mercado brasileiro, deixa de investir no longo prazo. Para um país que necessita 2.200 MW médios novos a cada ano, o equivalente a duas usinas de Itumbiara, simplesmente a 9ª maior usina hidroelétrica brasileira, essa é a grande incerteza dominante. Até hoje não se sabe o que fazer e as propostas só aumentam a complexidade.
  3. Ao contrário do que as pessoas pensam, a “desordem” dos postes urbanos trazem perdas elétricas, elevam os custos de manutenção e também facilitam os gatos. Essas “ineficiências” e piratarias de energia são pagas pelos outros consumidores, essa sim, um subsídio ocluso admitido pela ANEEL.

Soluções existem, mas dada a fragmentação de responsabilidades institucionais entre os muitos órgãos do setor, (ANEEL, ONS, EPE, CCEE) parece que ninguém enxerga o todo.

Nessa celeuma, há inclusive um discurso de que o Brasil é “inocente” na questão ambiental e, por isso, não deveria ser pressionado como outros países cuja base energética é fóssil. Ledo engano, pois, quando se verifica a quantidade de emissão de CO2 por US$ de PIB, o Brasil é simplesmente o 5º maior poluidor do planeta. Ou seja, nossa economia, até por ser frágil, emite muito mais do que muitos países desenvolvidos por unidade de renda. Portanto, o simples desprezo dos efeitos benéficos na questão climática é, no mínimo, grotesco.

Por fim, imaginem o inverso. Uma política proativa sobre energia solar reconhecendo seus benefícios e possibilitando que a classe baixa brasileira possa pagar sua conta de luz sem “pirataria”. Infelizmente, ainda é um sonho de uma noite quente de verão.

(*) Diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético ILUMINA

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