Cortando pernas para economizar sapatos

Ronaldo Bicalho

No momento em que desembarca no setor elétrico estatal uma nova leva de gestores focados no curto-prazismo do mercado, enxugando custos indiscriminadamente, privilegiando a otimização dos recursos no curto prazo e destruindo a capacidade desse setor atuar de forma estratégica na garantia do abastecimento elétrico do país, cabe uma reflexão sobre esse tipo de liderança corporativa. Para isso, recorro a um texto de um velho amigo, cuja atualidade é lamentavelmente constrangedora; principalmente, para um setor no qual a prioridade pelo curto prazo gera desastres anunciados e de proporções ferroviárias.

ZÉ: UMA HISTÓRIA DE SUCESSO

Uma fábula sobre o sucesso no mundo corporativo

Por Vicente Ferreira (*)

Meu amigo Zé sempre foi um grande sujeito. Desde os tempos de escola, sua sagacidade e capacidade de trabalho eram notadas por todos que tiveram a oportunidade de com ele conviver. Sua vocação sempre foi a de resolver problemas. Durante os tempos de faculdade, todos os professores admiravam sua velocidade de raciocínio e sua capacidade em se comunicar. Para ele não existia “saia justa”; sempre tinha uma resposta para qualquer questão que lhe fosse colocada e, ainda que seus argumentos não estivessem absolutamente corretos, seu magnetismo pessoal se incumbia de convencer a maioria das pessoas da correção de suas opiniões.

Terminada a faculdade, onde se graduou com louvor, diferentemente da maioria de nós que saímos em campo no mercado de trabalho, o Zé resolveu se especializar. Foi cursar uma escola de negócios de renome, dessas frequentadas pelos filhos de burguesia ascendente. Lá, mais uma vez, sua estrela brilhou. Mesmo aqueles que, num primeiro momento, viam uma certa arrogância em sua forma de se expressar, simpatizavam com ele ao perceber sua disponibilidade em ajudar todos de forma abnegada. Fez muitos amigos e ótimos contatos e acabou, ao terminar o curso, por ser contratado para gerenciar uma unidade de negócios de um grupo empresarial familiar.

Quando assumiu o cargo seu entusiasmo e assertividade chamavam a atenção de pares e superiores. Sua unidade de negócios era uma dentre muitas na diretoria industrial. Atuando em um mercado competitivo, seus resultados financeiros oscilavam com as marés da economia. O patriarca da família controladora da empresa, antevendo que uma possível crise de sucessão, quando do seu afastamento, poderia levar a empresa ao mesmo destino infeliz de tantas outras ex-grandes empresas familiares, acabara de contratar uma consultoria para lançar as bases da “profissionalização da administração”. Uma das primeiras medidas desta consultoria foi revisar os sistemas de remuneração de executivos, aumentando a pressão por resultados e premiando aqueles que levassem ao acionista aquilo que ele desejava: retorno sobre os seus ativos.

A ótima formação obtida pelo Zé na escola de negócios tornou fácil para ele, muito mais que para seus pares, entender o que era esperado de sua gestão. A linguagem dos consultores também havia sido aprendida por ele na pós-graduação. Para obter um maior retorno sobre os ativos de sua unidade de negócios, só havia um caminho: era preciso “fazer mais, com menos”. Este slogan passou a ser repetido por ele em todas as reuniões com seus subordinados. Não havia dúvida. A ordem era procurar em todos os processos daquela unidade onde estavam as “oportunidades de melhoria”. Zé sabia que isto só poderia ser feito, de forma eficiente, por quem tivesse a capacidade de “enxergar de fora” as rotinas seguidas por sua unidade, alguém que não estivesse “ancorado” ao modus operandi vigente. Resolveu convidar um velho colega de faculdade: João. Ao fazer o convite Zé disse: “O trabalho não será fácil. Precisamos refazer toda a engenharia dos processos, como se os estivéssemos criando de novo. Acho que esta é a única forma de obtermos um resultado realmente bom”. João, que estava desempregado, aceitou o convite. Um pequeno grupo de técnicos foi destacado para o auxiliar e os trabalhos foram realizados envoltos em um certo sigilo, para não interferir com o dia-a-dia das operações da unidade de negócios.

Logo os primeiros resultados dos levantamentos mostraram que a ideia do Zé estava correta. Pequenas mudanças nos processos agregavam significativas economias. Cada processo que era “re-engenheirado” (neologismo criado dentro do grupo coordenado pelo João) apontava para a conveniência de fazer o mesmo naqueles processos que com ele se interligavam. Como Zé previra, o trabalho era hercúleo, mas a motivação da equipe era grande e ninguém mais se importava em seguir o exemplo do Zé e trabalhar, em média, 16 horas por dia, inclusive aos sábados. Aliás, era nos fins-de-semana e feriados que o trabalho mais rendia.

Uma das descobertas mais importantes da equipe de reengenharia foi que, em alguns casos, os empregados não tinham muito clara a interligação de suas tarefas com o sucesso da organização ou, como muito bem foi sintetizado pelo Zé, “não entendem como suas atividades rotineiras contribuem para a satisfação dos interesses dos acionistas. Falta-lhes uma visão do todo. E é dever de um bom gestor propiciar-lhes esta visão por meio do enriquecimento de suas tarefas”. Assim, pessoas que desempenhavam uma atividade, tiveram suas atribuições “enriquecidas” e passaram também a responder pelas atividades que precediam e sucediam a sua nos processos. O impacto disto foi enorme na motivação das pessoas; aqueles que, burocraticamente, vinham ocupando suas oito horas diárias com uma simples tarefa passaram, ao assumir novas responsabilidades, a dedicar dez e até doze horas por dia de trabalho para realizar, com qualidade, suas novas atribuições. Alguns chegavam a suspender suas férias para não deixar de contribuir para os objetivos da organização. É verdade que não sobrava muito tempo para treinamento, mas as pessoas estavam tão motivadas que o melhor tipo de treinamento era o on the job.

A boa e moderna gestão do Zé logo fez surgir seus melhores resultados: as economias decorrentes da reengenharia elevaram em um salto o retorno sobre os ativos. A maior dedicação dos empregados, decorrente do enriquecimento das tarefas, permitiu que alguns outros que, por estarem com os salários um pouco “fora da realidade do mercado” e, portanto, consumiam muito mais recursos da organização para gerar os mesmos resultados, fossem buscar novas posições no mercado de trabalho. Alguns críticos, à boca pequena, comentavam que a unidade estava perdendo seus empregados mais antigos e, com eles, a sua memória. Mas a unidade de negócios havia se transformado e, nesta nova realidade, aquele conhecimento não agregava mais valor. Este movimento de ajuste do tamanho do quadro de empregados foi chamado de “redução de tamanho” ou ainda, como sugeriu o Zé: downsizing.

A redução da disponibilidade de tempo para treinamentos acabou, não intencionalmente, melhorando ainda mais os indicadores de resultado daquela unidade de negócios, dado que uma despesa a menos se realizava, maior era o resultado. Mas isto não significou a estagnação da organização. O próprio Zé sempre se mostrou um crente nos benefícios que o auto desenvolvimento trazia para seus empregados. Desta forma, por conta própria e fora do horário normal de trabalho, muitos empregados foram buscar seu desenvolvimento pessoal. De qualquer forma, sempre que se identificava que uma nova habilidade e um novo conhecimento eram capazes de contribuir para a melhor realização de uma dada tarefa, caso o atual ocupante daquela posição não a possuísse, sempre se poderia buscar no mercado de trabalho alguém que, pela mesma remuneração (e em muitos casos por uma remuneração menor), já se agregasse ao quadro de colaboradores da unidade de negócios trazendo em sua bagagem o conhecimento pretendido. Havia ainda, segundo o Zé, a vantagem de que esta rotatividade de pessoal cuidaria de manter a unidade de negócios sempre “oxigenada”.

Os resultados eram cada vez mais expressivos e o Zé sabia que ainda havia uma série de “oportunidades de melhoria” para se explorar. O enriquecimento de tarefas, quando aplicado aos níveis gerenciais, reduziu drasticamente os problemas de comunicação. A capacidade de supervisão melhorada dos gerentes, por meio de comunicações mais eficientes, permitiu que as atividades de front office se aproximassem do topo da organização, pela eliminação dos níveis de gerência intermediária. Menos formalidades, maior autonomia, maior responsabilidade, maior eficiência, menos custos, melhores resultados e equipes cada vez mais motivadas e dedicadas ao sucesso da organização.

Sobre este último item não posso, na qualidade de narrador, me furtar de fazer alguns comentários. Era muito comum, dado à felicidade com que as pessoas trabalhavam por 12, 14 e, esporadicamente, até 16 horas por dia, entender que um trabalho motivador e desafiante fosse capaz de suprir outras necessidades como lazer, convívio com a família e vida social. Unidos como um time, os colegas de trabalho se confundiam com irmãos; disputando a atenção do superior, fazendo alianças para não ser pegos em traquinagens e, naquelas vezes que melhor expressavam os laços familiares, traindo tais alianças. Este clima reforçava ainda mais o trabalho em times multifuncionais, e estruturas matriciais garantiam que as pessoas pudessem contribuir ao máximo para o sucesso da unidade de negócios.

Todo este sucesso não conseguiu embotar a visão do Zé. Sua modéstia cognitiva o fazia duvidar se estava ou não agindo da melhor forma possível. Resolveu que precisava aprender mais. Passou a buscar melhores práticas administrativas onde quer que elas estivessem. Queria saber como as melhores empresas do mundo faziam. Como gerenciavam, como compravam, como planejavam, etc. Ele sabia que, no longo prazo, somente os melhores iriam sobreviver e, por isto, iniciou um processo que ficou conhecido como benchmark. Benchmarkear – outro neologismo – levou a estudar as mais diferentes etapas dos processos administrativos de outras empresas. Nem sempre as empresas estudadas tinham as mesmas dimensões, atuavam nos mesmos mercados, com os mesmos clientes ou na mesma economia que sua unidade de negócios, mas isto não era necessariamente um problema. Para o Zé estava claro que as melhores práticas seriam, mais cedo ou mais tarde, adotadas por todos. E as economias menos desenvolvidas logo evoluiriam e chegariam aos padrões daquelas mais desenvolvidas.

A esta altura dos acontecimentos, os resultados obtidos pelo Zé em sua unidade de negócios reluziam no painel de controle de indicadores na mesa do executivo chefe da empresa e patriarca da família controladora. Tamanho era o contentamento do acionista com aqueles números que aconteceu a primeira promoção significativa do Zé. A partir daquele momento ele passou a responder por um grupo de unidades de negócios que atuava em um outro mercado, reportando-se, agora, diretamente ao presidente da empresa.

Não demorou e os impactos da gestão adotada pelo Zé se fizeram sentir nos negócios que ele agora comandava. Com base em suas experiências em sua antiga função ele sabia exatamente o que fazer. Trouxe consigo uma pequena equipe de colaboradores. Pequena, mas com uma incrível capacidade de trabalho, sua equipe rapidamente conseguiu “reengenheirar” todos os processos, enriquecer ao máximo as tarefas, promover o donwsizing e aplicar as melhores práticas já identificadas. O resultado foi um salto no retorno sobre os ativos daquelas unidades de negócios.

Infelizmente, enquanto aquelas unidades que passaram a ter o Zé como gestor despontavam com os melhores resultados de sua história, aquela que ele, pouco tempo antes, havia deixado, começou a registrar quedas constantes em seus indicadores de resultado. Embora o substituto do Zé (Pedro) argumentasse que as pessoas estavam cansadas, destreinadas, desmotivadas, estressadas (o número de acidentes na área operacional e de enfartos entre os executivos era enorme) e que não havia memória dos processos, não era ouvido. Nem mesmo quando argumentou estar perdendo vendas, porque os processos de análise de crédito, benchmarkeados de um banco, o estavam impedindo de conquistar novos clientes, encontrou interlocutores. Para o executivo chefe da empresa a verdade era clara: a diferença era o Zé. Quando ele assumiu a unidade de negócios ela melhorou, quando ele saiu, ela perdeu a força da locomotiva humana que a puxava ladeira acima e, por isto, passou a andar para trás. Prova de que isto era verdade eram os gráficos com os resultados das unidades que ele agora gerenciava.

Deste modo, o Zé se transformou na resposta que a família controladora buscava: quem poderia substituir o patriarca e garantir a riqueza de todos? O Zé. O processo de sucessão não foi tão simples. Muitos herdeiros tinham dúvidas se o Zé teria a mesma capacidade do patriarca em atender suas necessidades de recursos financeiros para o padrão de vida que mereciam ter. Como não podia deixar de ser nesta nossa história, a resposta quem deu foi o Zé. Ele entendia que aquilo de que os herdeiros precisavam era ter certeza de que o Zé lhes daria dinheiro suficiente. Assim ele propôs o seguinte: considerando que o patrimônio dos herdeiros era o investimento que ele iria gerenciar, quanto mais recursos financeiros o Zé fizesse chegar às suas mãos, maior estaria sendo a rentabilidade gerada. Assim, o Zé passou a ser cobrado pelo volume de recursos financeiros que a empresa gerava. Este volume, porém, deveria ser mensurado de uma forma muito séria: pela contabilidade oficial da empresa, que mediria o seu “fluxo de caixa”. Para demonstrar seu comprometimento com os interesses da família, o Zé assinou um contrato que atrelava sua remuneração ao fluxo de caixa gerado; quanto maior o fluxo, maiores os seus bônus.

Não havia dúvidas de que isto era bom para todos e a transição foi feita. Quando o primeiro relatório financeiro da gestão do Zé à frente do grupo empresarial foi repassado aos acionistas, não havia quem conseguisse esconder o próprio contentamento. Nunca aquela empresa havia gerado tanto. Nem mesmo nas épocas douradas as coisas haviam ido tão bem. E assim a empresa conheceu os melhores resultados de sua história.

É bem verdade que tais resultados não foram conseguidos sem esforço; em certas ocasiões, mesmo a contragosto, o Zé foi forçado a adiar alguns investimentos na modernização das fábricas, ou no aprimoramento do seu processo de logística, para não frustrar as justas expectativas dos acionistas. Tamanho era o sucesso que a empresa experimentava que o mercado logo quis saber o que havia mudado. A resposta era evidente: o novo executivo chefe era o Zé.

Não tardou que um headhunter fizesse ao Zé a oferta de um desafio profissional irrecusável: passar a administrar um outro grande grupo empresarial. A proposta de remuneração era tão vultosa que os próprios herdeiros entenderam que não havia como manter o Zé. Ademais, a empresa estava forte como nunca e um outro executivo mais barato poderia dar continuidade ao brilhante trabalho realizado pelo Zé.

A nova empresa era muito maior, e maiores eram as oportunidades de melhoria e a visibilidade que o Zé adquiriu no mercado de trabalho de executivos. Ainda mais quando, supostamente por um problema referente a desatualização e obsolescência do seu parque fabril, sua antiga empresa perdeu competitividade e acabou tendo que pedir concordata. Enquanto a empresa antiga se deteriorava, a nova crescia a taxas inimagináveis. A conclusão já é nossa conhecida: o Zé era quem fazia a diferença.

Meu amigo Zé tornou-se um executivo dos mais famosos. De empresa em empresa, obtendo resultados e remunerações cada vez mais expressivos, acabou por se tornar em um mito. Muitos viam nele um guru e queriam aprender as coisas que ele sabia. Ninguém podia mais sobreviver sem uma forte formação em negócios. As escolas de negócios se multiplicaram para ensinar a linguagem do Zé. Quase arrisco a dizer que criou-se uma escola Zediana de administração em torno de suas práticas. Frases a ele atribuídas como: “fazer mais com menos”, “custos são como unhas: devemos cortar toda semana”, “agregar valor ao acionista” etc. Viraram bordões das rodas de negócios.

O Zé se aposentou com uma situação financeira confortável, mas isto não foi o fim. Passou a fazer palestras pelo mundo, explicando que seu sucesso era fruto de longas jornadas de trabalho e estudo. Escreveu um livro (acho que o título era: O Zé Pelo Zé). Seus ensinamentos encontraram diversos seguidores. Milhares de novos Zés surgiram e fizeram empresas crescer integrando mercados, reduzindo barreiras, dando maior fluidez aos recursos para que tivessem alocações mais eficientes etc.

A economia cresceu. Todos estavam satisfeitos quando uma crise começou. Por algum motivo, aqueles que haviam deixado de agregar valor pararam de consumir. Ou aconteceu algum tipo de desconfiança no futuro, ou qualquer uma dessas gripes que dizimam as formigas lunares. Alguém viu que os resultados não seriam bons, os acionistas iam ficar tristes, os bônus não chegariam no Natal. Mas era possível fraudar a Contabilidade.

“Isto é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, lugares, situações, práticas administrativas e resultados terá sido mera coincidência.”

(*) Vicente Ferreira é professor do Instituto COPPEAD da UFRJ e este texto foi escrito em 2004.

Uma última observação: A fábula do meu velho amigo me faz lembrar uma história que o meu pai contava. Certa vez, uma senhora encontrou um porquinho com quatro pernas de pau. Tocada, perguntou à pessoa ao seu lado quem era o dono do animalzinho que, movido por um sentimento tão elevado, havia mandado fazer as próteses de madeira para diminuir o infortúnio do pobre bichinho. O vizinho respondeu: Sentimento elevado? Qual nada. Ele está comendo o porquinho aos poucos….

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