Da superfície para as profundezas: Um modelo com defeitos genéticos – Artigo que tenta explicar a crise.

O artigo abaixo foi escrito em 2013 e republicado em 2016. O que é inacreditável é que todos os argumentos continuam válidos e proféticos. Apesar disso a sociedade brasileira, iludida entre forças políticas “aparentemente” adversárias, nada fez para mudar o que viria causar o óbvio. Há sempre a desculpa de que há uma complexidade técnica que impede uma reação. Será que essa inviabilidade no entendimento de questões numéricas não é exatamente a principal armadilha que estão nos armando? Republico para quem tiver paciência e vontade de entender MESMO.

Roberto Pereira D’Araujo


O presente artigo pretende reunir em um só texto todos os argumentos, gráficos, tabelas que temos usado para fazer uma análise crítica do que vem ocorrendo no setor elétrico. 

O que consta nesse artigo?

1 – Introdução – Defende a tese de que há um problema na modelagem do setor além de erros de política energética.

2 –  A situação atual – Propõe analisar a situação atual para identificar se há realmente uma circunstância especial que explique a crise.

3 – A questão da reserva estratégica – Examina as alterações físicas que vêm ocorrendo no sistema e que parecem ter sido esquecidas.

4 – O consumo de energia – Analisa o que vem ocorrendo com a carga de energia elétrica.

5 – A questão hidrológica – Analisa as séries hidrológicas das regiões brasileiras.

6 – A complementariedade das eólicas – Mostra a promissora complementação das usinas eólicas no sistema brasileiro.

7 – A inacreditável desvalorização das usinas a fio d’água. – Analisa a atual situação dos reservatórios e porque, agora, as usinas sem reservatórios seriam muito úteis.

8 – Tudo está em tudo e reciprocamente – Mostra que há indicações de que a atual crise pode ter motivações tarifárias.

9 – O modelo mercantil mimetizado – Mostra algumas características do modelo comparadas ao mundo real.

10 – Não é física quântica – Mostra a complexidade, a virtualidade e, consequentemente, os riscos do modelo vigente.

11 – Sua majestade, o CMO – Discute a impressionante importância que uma variável aleatória tem na modelagem mercantil brasileiro.

12 – As consequências do modelo – Mostra algumas situações onde ficam evidentes os problemas da modelagem.

13 –  Mercado livre, um mistério – Discute, com dados, algumas características que permanecem misteriosas, dado o caráter secreto dos contratos do mercado livre.

14 – Um mercado de diferenças e de transferências – Analisa a história do nosso mercado livre e demonstra que déficits atuais estão correlacionados a superávits anteriores.

15 – Energias renováveis, mas tarifas incontroláveis. Analisa o histórico tarifário brasileiro desde a reforma de 1995 apontando algumas causas do aumento.

16 – A obsessão por redução tarifária a qualquer custo. Analisa o histórico e a origem da medida provisória que interviu nas tarifas de energia elétrica.

17 – Uma conta ao inverso. Analisa os indícios de que a intervenção , na realidade, pode ter sido feita numa conta reversa.

18 – Valor Novo de Reposição, um conceito semelhante ao da FIESP. – Analisa as semelhanças entre as propostas da FIESP e a metodologia adotada pelo governo na intervenção tarifária de 2012.

19 – A redução tarifária via custos de operação e manutenção. – Analisa os valores definidos para as usinas antigas brasileiras em comparação a dados internacionais.

20 – Como conseguir tarifas mais baixas sem intervenções. Demonstra como diversos estados americanos conseguem capturar a vantagem das amortizações sem intervenções tarifárias.

21 – Conclusão.


 

1 – Introdução.

O texto a seguir tem a pretensão de demonstrar que os problemas do nosso setor elétrico estão relacionados a uma espécie de ideologia dita “modernizante” que foi moda na década de noventa. Apesar de todos os indícios físicos contrários à modelagem vigente, uma verdadeira lavagem cerebral tomou conta dos formuladores de política desde 1990. Por incrível que pareça, se for interpretado como um projeto político, o atual sistema é um produto de sigla PSDB & PT. Isso não quer dizer que haja um viés político ideológico na análise. Significa apenas que o projeto imaginado pelo governo do PSDB foi continuado pelos governos do PTO leitor irá notar que todas as afirmações estão apoiadas em dados. Não somos os donos da verdade, mas, para contestar a análise é preciso apresentar novos números que sustentem o oposto.

O texto foi escrito em 2015, portanto, é preciso lembrar disso ao lê-lo. Outras informações serão acrescentadas com o decorrer dos acontecimentos. É um texto longo, mas tem a vantagem de condensar muitas das informações veiculadas no site e que estão espalhadas em diversos lugares.

2 – A situação atual

Será que é possível que um leigo consiga entender o que realmente ocorre na confusão do setor elétrico? Será que temos apenas a adoção de políticas equivocadas ou há um defeito “genético” no nosso modelo?

Certamente, os consumidores estão se perguntando: Porque esvaziamos os reservatórios? Estamos consumindo muito? É verdade que a hidrologia é uma desgraça energética? Porque as térmicas contratadas em leilão não ajudaram a preservar a reserva de água? Porque a tarifa brasileira é tão cara, já que temos a predominância de energia renovável? Porque a redução tarifária de 2012 de nada adiantou para conter as tarifas?

Várias matérias jornalísticas enfatizam que o verão de 2014 foi o mais quente e seco da história. Seguramente, essa anomalia atingiu duplamente o setor elétrico. Gastamos mais energia com refrigeração e estamos recebendo menos água nos rios. O ILUMINA não quer negar esse fato.

Contudo, dependendo de como a informação é passada, é bem possível que muitos consumidores e até mesmo alguns analistas achem perfeitamente desculpável que estejamos passando por uma repentina crise e que seja absolutamente normal ter que pagar uma dívida bilionária por geração térmica. Porém, se a questão do setor elétrico brasileiro for analisada apenas sob esse ângulo, corremos o risco de não percebermos que, mesmo ocorrendo hidrologias mais favoráveis, nós já estaríamos no caminho de gastos bilionários.

Como podemos afirmar isso? Apesar desses argumentos já terem sido mostrados em outros artigos nesse site, vamos concentrar essas informações aqui para deixar mais claro essa visão do problema.

3 – A questão da reserva estratégica.

O sistema interligado brasileiro é composto de diversas usinas que contam com reservatórios. A grande parte foi construída nas décadas de 70 e 80 e é base de um sistema cuja capacidade é uma das maiores do planeta. Quando se comparam setores elétricos entre diferentes países, a tendência é de se fixar na predominância hídrica na matriz, mas o aspecto que mais nos diferencia do resto do mundo é o volume dos nossos reservatórios.

Gráfico 1 -Sistemas de armazenamento em alguns setores elétricos.

O gráfico acima mostra que não basta ser hidroelétrico. Nós temos a segunda capacidade de armazenagem de água do planeta, perdendo apenas para o Canadá.  Mas, esse segundo lugar é, na realidade, a liderança, porque o Canadá não tem todo o seu sistema interligado e, portanto, esses “armazéns” de energia não servem a todas as províncias. Os Estados Unidos também têm grandes reservatórios, mas a hidroeletricidade significa apenas 8% da matriz elétrica americana.

Portanto, a nossa reserva é o grande diferencial e a “joia da coroa” do nosso sistema. Evidentemente, seu valor depende do seu uso. Como existe essa reserva, podemos gerar mais ou menos do que recebemos dos rios. Se, em função das hidráulicas terem custos mais baixos, a responsabilidade por gerar energia ficar desproporcional em relação a outras fontes, e muitas vezes acima da energia afluente, corremos o risco de esvaziar rapidamente nossos reservatórios. O problema é que, sob o atual modelo, foi exatamente isso o que ocorreu.

Gráfico 2 – Reserva máxima em relação à carga.

O gráfico acima mostra o que chamamos de reserva estratégica. É a capacidade máxima de todos os reservatórios dividida pela carga total de cada mês desde 2004. Ela vem decrescendo paulatinamente (curva preta que oscila em função da variação da carga). Nesses oito anos do gráfico, perdemos o equivalente a um mês da carga, caindo de 6 para 5 meses de armazenamento. Em sentido figurado, para melhor compreender o que isso significa, se os rios brasileiros secassem, os nossos reservatórios cheios garantiriam nosso consumo por 5 meses.

A curva vermelha é a que se obtém diminuindo-se a geração térmica da carga. Seria a carga “vista” pelas hidráulicas. Como se vê, a atuação das térmicas é insensível a essa redução, pois as duas linhas de tendência são paralelas.

Por que isso é importante? Porque mostra que a complementação de outras fontes, principalmente térmicas, não aliviou um metro cúbico da reserva estratégica. Ou seja, assistimos passivamente a diminuição da nossa capacidade de regularização, desprezando o que deveria ser entendido como uma questão crucial na antevisão de problemas. Fazendo uma analogia simplória, tudo se passa como se a caixa d’água de uma família diminuísse a cada ano. Basta estender essa tendência para descobrir sérios problemas à frente.

Alguns diriam que a solução é construir novos reservatórios. Bem, se quiséssemos recuperar os 6 meses de carga que tínhamos em 2004, teríamos que aumentar em aproximadamente 6/5  (120%) a nossa capacidade de reserva. Isso significa construir novos reservatórios com capacidade equivalente a todo o Rio S. Francisco. Se fosse possível, quando estivessem prontos, já teríamos que repetir a dose. Portanto, sem descartar essa alternativa, a estratégia não vai solucionar o problema.

Gráfico 3 : Evolução recente da capacidade e energia hidráulica

O gráfico acima demonstra claramente o resultado da política adotada. Apesar do percentual de MW (potência) hidráulico cair no total, o percentual de MWh (energia) hidráulico permaneceu praticamente constante. Cada MW hidráulico foi obrigado a gerar mais energia a cada ano. Ora, se as hidráulicas são mais exigidas, elas esvaziam mais rápido. Mais tarde vamos tentar entender porque isso ocorreu. Portanto, apesar da surpresa do quente verão ou do mau humor de São Pedro, a antevisão da crise já estava delineada há anos. 

4 – O consumo de energia.

O consumo surpreendentemente alto também não é confirmado quando se analisam os dados.

 

Gráfico 4 : Evolução da carga do sistema interligado.

Pela simples aparência, não se pode classificar o gráfico acima (carga total do sistema interligado) como imprevisível. Percebem-se, além das repetitivas subidas dos meses de março, ajustes negativos da carga em 2001 (racionamento) e 2009 (crise financeira mundial). É como se os consumidores estivessem dando uma “freada de arrumação” que só fez ajudar o equilíbrio entre oferta e demanda. Igualmente, fica difícil justificar surpresas com o comportamento da ponta do sistema no gráfico abaixo.

Gráfico 5: Pontas máximas mensais do sistema interligado.

 

5 – A questão hidrológica.

Nossos reservatórios são capazes guardar o equivalente a aproximadamente 220 TWh de afluências transformadas em energia. Em termos de média mensal, as afluências dos rios brasileiros representam aproximadamente 38 TWh. Assim, é possível guardar o equivalente a cinco meses de energia dos rios nos reservatórios. Isso significa que nada ocorre de repente no setor. Uma hidrologia ruim não causa surpresas se o sistema é bem gerido. Faz parte da técnica de gestão do nosso sistema a antecipação de problemas.

Como se pode ver no gráfico abaixo, já não é segredo que a hidrologia do Nordeste (18% da reserva) tem seguidamente apresentado comportamento abaixo da média de longo termo (MLT). Desde a década de 80, o Rio S. Francisco não é mais o mesmo.

Apenas um parêntese: Imagine o problema do nosso modelo mercantil que determina um valor fixo de energia (garantia física) por usina baseado num histórico que parece não se repetir. Para não cair num otimismo irresponsável, as autoridades do setor teriam que adotar duas medidas urgentes: Estabelecer um plano de ação imediato para saber por que o Rio São Francisco está diminuindo seu fluxo e rever as garantias físicas de usinas afetadas por essa hidrologia mais baixa. Como se verá depois, dada a interdependência do nosso sistema, não são apenas as hidráulicas que seriam afetadas. Esse é apenas um dos problemas oclusos do nosso confuso modelo que será tratado mais tarde.

Todas as regiões somadas: quadro geral para o sistema interligado (as quatro regiões).

Gráfico 10 : Hidrologia Sistema Interligado.

Caso haja alguma dúvida sobre a gravidade da situação hidrológica comparada ao período do governo FHC, seria interessante olhar a análise do link abaixo:

http://ilumina.org.br/apagao-domina-debate-entre-assessores-na-area-de-energia-valor/

Como se pode perceber, o baixo desempenho da região Nordeste conseguiu mudar ligeiramente o ano de 2013 do integrado que ficou 5% abaixo da média. Mas, para sistemas que contam com acumulação de água, o gráfico não mostra nenhuma desgraça hidrológica.  Essa antecipação de problemas se faz com economia de água e o uso de geração complementar às hidráulicas na hora certa. Como pode ser visto no gráfico abaixo, tal cuidado não ocorreu, pois, de 2003 até setembro de 2012, a complementação, que inclui as térmicas, só cuidou de aproximadamente 9% da carga. A geração das eólicas está incluída no gráfico, mas representa cerca de 1% da geração total.

Gráfico 11 : Evolução da relação geração térmica em relação à carga.

Como o sistema é capaz de armazenar até 220 TWh, ou cinco meses de energia natural média, é no mínimo estranho que, repentinamente, após setembro de 2012, a política de complementação térmica passe para mais do dobro do que era poucos meses atrás. Tal mudança de comportamento não é nem financeiramente justificável, pois cada MWh térmico não utilizado antes de setembro de 2012 teve que ser compensado por um MWh térmico muito mais caro após essa data. Poderia ser uma mudança brusca da hidrologia apenas em setembro? Será que a reação foi “na hora certa”?

Gráfico 12 : Energia Natural e política de despacho térmico em 2011 e 2012

O gráfico acima mostra que também essa desculpa não pode ser confirmada por dados. A curva azul, eixo esquerdo, mostra que o padrão do chuvoso ano de 2011 não iria se repetir em 2012. Em fevereiro de 2012 os dados já evidenciavam que seria necessária complementação térmica para preservar a reserva. Entretanto, surpreendendo a lógica, as barras laranja mostram uma geração térmica (eixo direito) que diminui!

Por que após setembro de 2012, mês do anúncio da medida provisória 579, que prometeu redução tarifária baseada em suposições e parâmetros muito discutíveis, disparam-se as térmicas? É preciso compreender que o nosso sistema, por ter reservatórios, tem memória. De certo modo, térmicas mais baratas que não foram acionadas nos anos de 2011 e 2012 deixaram um déficit bem mais caro no futuro.

Apenas para mostrar a nossa singularidade, imagine que o uso de térmicas tivesse sido um pouco acima no período 2008 – 2012 como mostra a curva pontilhada do quadro abaixo. O custo não seria muito maior porque não atingiria as térmicas mais caras. Toda essa energia incremental significaria cerca de 46 TWh e estaria armazenada nos reservatórios provocando uma folga de 20% nos níveis de 2012. Com os reservatórios mais cheios, a subida repentina de energia térmica não seria adotada e, com grande probabilidade, agora não estaríamos sob a ameaça de racionamento. É importante chamar a atenção de que, sendo a curva a expressão de um quociente, a carga está no denominador. Portanto, qualquer política de diminuição de perdas ou eficiência energética teriam o mesmo efeito.

 

Gráfico 13 : Um suposto despacho alternativo de térmicas entre 2009 e 2014.

Esse pequeno exercício serve para mostrar que o sistema de preços adotado pode estar profundamente equivocado. Um dos parâmetros que formam o preço que decide o despacho de geração térmica é o desconhecido “custo do déficit”. É difícil encontrar um custo tão subjetivo. Para a indústria eletro-intensiva é muito alto, para a agricultura o valor pode ser bem menor. Uma curva semelhante à pontilhada poderia ser obtida se o custo do déficit fosse um pouco maior do que o atual (R$3.100/MWh). Para provocar alguma reflexão, esse parâmetro valia cerca de R$ 1440/MWh em 2000. Aos preços de 2012, chegaria a quase R$ 2.900/MWh. A pergunta que deveríamos fazer é: Será que apenas R$ 200 a mais representam toda a importância adicional que a energia elétrica tem na economia brasileira nesse período?

Isso dá uma ideia do grau de subjetividade do nosso modelo que será examinado com mais detalhe adiante.

6 – A óbvia complementariedade das eólicas.

Parece evidente que:

  • A capacidade de regularização hidráulica está se reduzindo em função do aumento da carga e da impossibilidade de agregar novos reservatórios no mesmo ritmo do consumo.
  • Essa regularização, essencial para a segurança e estabilização dos preços de liquidação de diferenças, só pode ser recomposta com complementação de outra fonte energética.

As eólicas, se pudessem alcançar cifras pelo menos 10 vezes maiores, poderiam fazer uma grande diferença. O gráfico abaixo mostra dados reais de energia gerada (GWh) por elas (linha amarela, eixo esquerdo) comparadas com a energia natural dos rios (linha azul, eixo direito). Os dados de anos anteriores a 2013 foram “inflados” para que a média fosse igual ao ano de 2013. É como se tivéssemos o mesmo parque de 2013 funcionando desde 2007. O que interessa mostrar aqui é o padrão complementar hidro-eólico. Como se pode verificar visualmente, se tivéssemos dez vezes mais eólicas, elas poderiam exercer um padrão semelhante à complementação térmica. O único problema é ainda o baixo percentual na matriz. Apesar dessa característica média, as eólicas não são valorizadas por essa complementação.

Gráfico 14 : Padrão complementar entre hidrologia e geração eólica

Infelizmente, por fundamentalismo ideológico, o governo manteve a ideia de realizar leilões genéricos decididos por um discutível índice de custo benefício e as eólicas não foram valorizadas nem pelo efeito ilustrado no gráfico. Certamente não teríamos decuplicado nosso parque, mas alguma ajuda já seria sentida se não tivéssemos perdido tanto tempo. É importante também lembrar que o país precisa dominar essas tecnologias para não se transformar num mero montador de usinas importadas. Vejam como é importante a política industrial e de pesquisa para que tenhamos uma agenda coerente.

7 – A inacreditável desvalorização das usinas a fio d’água.

No debate sobre a atual situação parece que todos se preocupam com o fundo dos reservatórios. Como explicado anteriormente, alguns defendem a construção de novos reservatórios como se uma ou duas novas usinas fossem resolver o defeito estrutural do sistema. Estranhamente ninguém parece se preocupar com o outro limite dos reservatórios, o seu topo. Ora, o atingimento da reserva máxima nos parece ser também um indicador de como o sistema está sendo gerido. O gráfico abaixo mostra que, além de estarmos esvaziando os reservatórios, não estávamos conseguindo enchê-los.

Gráfico 15 : Energia Natural e percentual de vertimento.

O dado de vertimento (barra azul, eixo direito) mostra exatamente esse efeito. Como há descargas obrigatórias à jusante, os percentuais mostrados tornam evidente a sistemática impossibilidade de reencher os reservatórios. O ano de 2011 registrou uma energia natural 20% acima da média e, nem assim, registramos vertimentos compatíveis com recuperação completa dos reservatórios.

O que isso tem a ver com usinas a fio d’água (sem reservatórios)? Tudo. Essas usinas, por exemplo, as Pequenas Centrais Hidráulicas, só são inúteis quando o sistema atinge na maioria das vezes a reserva máxima. Isso não está ocorrendo há anos. Nessa situação, uma usina a fio d’água funciona como uma nova captação de afluências que poderiam minorar as baixas hidrologias. No caso das PCH’s, há um potencial significativo ( cerca de 9 GW) que, além de melhorar esse indicador, ainda alivia a demanda na hora da ponta, pois essas usinas não estão localizadas tão longe dos centros de carga. Que metodologia é essa que não percebe coisas tão óbvias?

8 – Tudo está em tudo e reciprocamente.

Se não expandimos o sistema com outras fontes (eólicas, PCH), sobram as térmicas, que, de 2001 até 2010 se expandiram de 14% até 25% da capacidade instalada. Com tantas usinas, porque tanta relutância em usá-las evitando colocar os reservatórios numa perigosa trajetória? A resposta está na formação de preços do Operador Nacional do Sistema, um assunto complexo, que depende de parâmetros altamente subjetivos. Mas, antes de entrarmos no emaranhado do modelo, é preciso considerar onde estava o custo do kWh na tarifa brasileira antes da crise de 2012.

Gráfico 16 : Estrutura tarifária de uma conta média em 2011 – ANEEL

A ilustração acima mostra a estrutura tarifária média brasileira em 2011, antes da intervenção da medida provisória, que reduziu drasticamente os preços da energia gerada pelas usinas ditas amortizadas. Reparem que, o “peso” do kWh na conta total é 31%. Como essa proporção se compara a de outros países?

Gráfico 17 : Peso do kWh nas contas médias de diversos países

Como se pode constatar, a estrutura brasileira não indica um grande problema quanto ao preço do kWh. Muitos países mostrados no gráfico poderiam ter um maior sucesso com políticas intervencionistas no preço de geração do que o Brasil. Considerando que apenas 20% das usinas estavam em final de concessão e que o peso do kWh na conta não passa de 31%, o efeito final supondo que a energia fosse entregue gratuitamente não passaria de 6,2%.

Agora talvez possamos entender a relutância em usar as usinas térmicas para amenizar o efeito da redução da reserva estratégica. Qualquer aumento na parcela de preço da energia, para não causar um aumento tarifário, teria que ser compensada nas outras duas mais importantes. Na distribuição, está o setor privado. Nos impostos, a eterna deficitária situação fiscal do estado brasileiro. Será que o governo teria a coragem para enfrentar esses dois mitos? Mais grave ainda: será que poderemos ter uma matriz hidrotérmica com maior peso das térmicas sem fazer pelo menos uma reforma tributária?

Isso desmonta o mito de que não há relação entre a MP 579 e a presente crise. Assim chegamos ao núcleo do problema. Como se valorizam as opções energéticas no sistema? O que comanda o acionamento das usinas térmicas? Que modelo é este que adotamos no Brasil?

9 – O modelo mercantil mimetizado.

Esse é o assunto que, pela sua complexidade, já deveria causar um espanto capaz de rever todas as certezas implantadas desde 1995. Infelizmente, parece que esse enredamento não é suficiente para que a sociedade brasileira perceba que há algo errado.

Podemos começar pela principal hipótese adotada na reforma institucional de 1995; a de que é possível se implantar um modelo competitivo por energia num sistema cujas características exigem a geração cooperativa.

As gerações reais das usinas brasileiras são muito variáveis e nada têm a ver com os contratos comerciais. Isso é um problema para os fundamentalistas do mercado por energia. Num sistema térmico, as usinas têm uma capacidade de fornecimento dada por suas características técnicas e pelo combustível que usam. Nesse sistema a geração das usinas está ligada umbilicalmente à sua comercialização. Se uma usina não tem o preço do mercado, não é acionada.

A inconstância da geração hidráulica de uma usina no Brasil é um estorvo para quem quer mimetizar um sistema térmico, pois a produção física é uma decisão do operador do sistema que age monopolisticamente e não tem conhecimento dos contratos comerciais. Mas, apesar do Brasil poder implantar um mercado de potência (que será explicado mais tarde), a ideologia foi mais forte e inventou um valor fixo de energia, um certificado que pudesse “emular” o padrão térmico, a “garantia física”, um conceito que só existe aqui.

Os gráficos abaixo mostram a geração real de algumas usinas hidroelétricas nos anos 2004 a 2012 (curvas coloridas, uma para cada ano).

Gráfico 18, 19 e 20 : Geração real e Garantia Física de algumas usinas.

Como se vê, a geração física é extremamente variável e essa dispersão não se dá apenas a nível mensal. Há anos onde se nota que uma usina gera bem mais do que em outros anos.

O que são as linhas pontilhadas? Elas são as Garantias Físicas (GF) das usinas. É um número que não consta nem nos manuais das turbinas nem do gerador. Elas são valores de escritório calculados por um complexo método que atribui a essas usinas um valor fixo que é a sua “importância” no sistema como um todo e, consequentemente,  a sua capacidade de venda de energia. Esse é o número que faz a “ponte” entre o mundo real e o mundo comercial. Já que a geração real é tão variável e comandada pelo Operador Nacional do Sistema, essa GF foi o nosso “jeitinho” para imitar um sistema de base térmica. Como vamos perceber, essa ponte “balança” bastante, pois há diferenças da ordem de 70% entre a geração real e a GF.

Atenção! A GF não é a energia média, como pode parecer. Por exemplo, Vejam abaixo o caso de Jupiá.

Gráfico 21 : Geração real e garantia física de Jupiá

Assim começa a jabuticaba brasileira. Para tentar implantar um mercado de energia (kWh) a partir do nosso sistema, tão diferente dos outros, a GF é uma avaliação da parcela da energia total que o sistema produz atribuído a cada usina. A variabilidade da geração, a grande vantagem do sistema brasileiro sob o comando de um operador que age monopolisticamente e retira o máximo de energia do sistema, se transforma num mundo comercial virtual complexo e instável. Toda essa complicada manobra foi imaginada apenas para pode imitar sistemas totalmente diversos do nosso.

A metodologia é extremamente complexa e de credibilidade relativa. Ela envolve a simulação da operação por um período futuro. Essa dependência do porvir é justamente um dos problemas desse certificado, pois, uma vez definido o valor, se algumas usinas não se concretizarem, todos os certificados seriam afetados, pois a operação simulada deveria ser alterada. Isso não sendo feito, os erros se acumulam.

10 – Atenção! Não é física quântica!

Ao contrário dos outros sistemas que, para calcular a capacidade de atendimento de uma demanda somam-se as capacidades individuais das usinas, no Brasil, faz-se ao contrário. Primeiro determina-se a capacidade do sistema e depois se divide o resultado pelas usinas.

Para todo esse processo usa-se um software feito para a operação do sistema, o NEWAVE. Ele é que determina todos os parâmetros que vão definir as grandezas comerciais. Como o histórico de energias afluentes está limitado a 80 anos, é usada uma série sintética estendida de 2.000 anos para os cálculos mostrados a seguir [1].

Como é que se garante que o sistema atende uma determinada demanda? Quando, nas simulações utilizadas, o custo médio de operar o sistema (cmo médio) é igual ao custo médio de construir uma nova usina. Vejam o que diz o documento oficial do governo (CNPE Comitê Nacional de Política Energética).

“Seguindo os critérios de garantia de suprimento estabelecido pelo CNPE, o processo é considerado convergido quando, no mínimo, um subsistema de cada sistema regional atende ao critério de igualdade entre o custo marginal de operação médio anual – CMO e o custo marginal de expansão – CME, admitida uma tolerância.” Assim fica definida a capacidade total do sistema em atender uma Carga Crítica (ccrítica na fórmula).

Essas equações abaixo fazem parte da metodologia de determinação da garantia física.

  • s = subsistema
  • nss = número de subsistemas
  • FH = fator hidrelétrico
  • i = mês
  • j = ano
  • k = série
  • t = usina térmica
  • gh = geração hidráulica total (controlável + fio d’água + vazão mínima)
  • gt = geração térmica total (inflexibilidade + geração flexível)
  • cmo = custo marginal de operação
  • nt(s) = número de térmicas do subsistema s
  • FT(t,s) = fator térmico de cada usina termelétrica t

 

A ideia por trás desse complicado formulário é atribuir ao bloco hidráulico e ao bloco térmico a sua importância para o sistema. EH e ET são as variáveis que determinam essa relevância.

Reparem que, uma vez determinada a carga crítica, usam-se as  fórmulas onde aparecem os termos gh, gt e cmo . O que essas equações fazem é uma média ponderada das gerações gh e gt pelo cmo.

Por exemplo, quando há muita água, a geração hidráulica gh aumenta, mas o cmo se reduz. De uma maneira geral, as gerações mais altas das hidráulicas valem menos. No sentido contrário, a geração térmica gt, quando aumenta, é multiplicada por um cmo mais alto. Ou seja, na maioria do tempo a geração térmica é mais rara, mas, quando acionada vale mais. Se usinas térmicas são obrigadas a gerar mesmo quando o cmo está baixo, por exemplo, usinas com inflexibilidade, a sua geração também vale pouco. Vejam a importância da formação dessa variável cmo.

Esse procedimento está correto, mas é preciso entender que essa “divisão” da garantia entre térmicas e hidráulicas depende desse número mágico, o cmo, que muda em função de critérios de operação, e, se eles se alteram, a garantia física de todas as usinas deveria se alterar. Esse é o detalhe que o governo não comenta porque isso afetaria as rendas de todos os agentes. A redução da reserva estratégica, já mostrada, é um dos fatores que acarretará mudanças no critério de operação.

A equação (5) é a que divide a Garantia Física do Bloco Hidráulico entre as usinas. Uma única observação é importante. Para fazer essa distribuição é usado o conceito de Energia Firme, que é baseado num método totalmente desconectado do vigente na simulação da operação. Ou seja, até a definição da “divisão” entre térmicas e hidráulicas, vale o método de otimização da operação buscando o mínimo custo total, mas, para definir a participação de cada usina hidráulica, o método é baseado em outras premissas. Subjetividades que sempre existiram no setor, mas, dada a influência em questões comerciais, as escolhas podem ser inconvenientes.

Não é necessário compreender tudo. O importante é perceber que os valores que regem a comercialização no Brasil são calculados de cima para baixo e por um programa de computador feito para a operação do sistema e que nunca foi imaginado para exercer esse papel. Ou seja, enquanto nos sistemas de base térmica o todo é construído das partes, aqui, primeiro é definido o todo, depois as partes.

11- Sua majestade, o CMO.

Essa variável cmo, não deixa de ser uma variável aleatória, pois ela é uma resposta de um software a uma genuína variável aleatória, a energia afluente aos rios brasileiros. Uma variável aleatória pode ser descrita por sua distribuição de probabilidades. Reparem que a distribuição é a que define a importância dos blocos hidráulicos e térmicos. Quando o sistema está em equilíbrio, ou seja, quando o cmo médio estiver no nível do cme, como já explicado. A figura abaixo mostra essa distribuição [2] (o gráfico está interrompido em R$ 1,040/MWh, mas valores maiores são atingidos)

 
Gráfico 22 : Distribuição do CMO para um sistema em equilíbrio (Plano 2016)
 
Como se sabe, o nosso histórico de vazões não ultrapassa 90 anos. A primeira observação provocativa de reflexão seria: O que seria do nível de significância desse parâmetro não fosse a amostra estendida de 2.000 anos da energia natural?

Distribuição de probabilidades da série de CMO’s médios anuais constantes no PDE 2016: Moda: ~ R$40/MWh (valor mais provável) Média: ~ R$130/MWh (supostamente equivalente ao CME) Kurtosis: – 59 ( alta prob em torno da moda) Skewness:  + 4,8 (cauda para a direita) Alta assimetria: ~ 75% das ocorrências abaixo da média  Algumas curiosidades sobre essa variável tão importante no modelo.

  • Não é exatamente um “custo marginal”, dado que assume valores superiores à custos unitários de produção.
  • É dependente de parâmetros “subjetivos”: Custo do déficit e Taxa de desconto do futuro. Quanto mais baixa a reserva, maior a influência do custo do déficit.Quanto maior o custo do déficit, obedecidas as regras vigentes, menor o risco de déficit e mais caro o sistema.
  • É dependente do futuro, uma vez que é uma simulação da operação para uma configuração planejada, que pode não se confirmar.
  • É a variável que determina a “carga crítica”, a capacidade de suprimento seguro do sistema. (CMOmed = CME)
  • É o fator de ponderação para determinar a capacidade de contratação das usinas.
  • É fator mais importante na formação de um “índice custo benefício” usado nos leilões.
  • É o fator determinante da frequencia da geração térmica no plano.
  • É o indicador mais importante da operação do sistema.
  • É preço referência no mercado livre.

Que outros sistemas no mundo têm uma variável aleatória com tanta importância? Esta dependência já não seria um motivo para se repensar o modelo?

Mas, indo adiante no exame das entranhas do modelo, a distribuição acima mostra que, sem dúvida, quando o sistema está equilibrado, a ocorrência de valores baixos no cmo é bem mais provável do que cmo’s altos. Como esse parâmetro é o fator que decide a geração de uma usina e, como já mencionado, o proprietário da usina não comercializa a sua geração, as diferenças entre o MWh real e o virtual são “liquidadas” no mercado pelo Preço de Liquidação de Diferenças (PLD) que, nada mais é do que o cmo.

Por que o cmo acaba sendo o preço do mercado livre? Imagine que todos os agentes, tanto consumidores quanto geradores vão a esse sistema checar sua grandeza virtual com os números reais. Muitos geradores que geraram abaixo de sua garantias físicas (principalmente térmicas), têm o direito de “liquidar” o complemento de sua geração até o seu certificado pelo PLD. Como o PLD é o próprio cmo e a probabilidade dele estar abaixo da média é alta, cria-se uma enorme oportunidade de transferência desse direito a outros. Por exemplo, se uma térmica tem parte da sua garantia física não contratada no longo prazo, ela pode transferir o seu direito de liquidação por PLD + X%, o que será, na maioria do tempo, uma pechincha.

12 – As consequencias do modelo.

Abaixo, o histórico do PLD, onde se percebe diferenças de preços da ordem de dezenas de vezes. Nesse gráfico, o atual valor de R$ 822 foi estendido durante o ano de 2014 para provocar uma simples pergunta: Como um mercado que liquida energia por quase nada e, alguns meses depois, cobra preços recordes no mundo pode ser considerado um ambiente saudável ou justo?

Gráfico 23 : Evolução histórica do PLD da região sudeste.

Abaixo, uma comparação do mercado brasileiro (Região Sudeste) com o NORDPOOL, mercado existente entre Noruega, Suécia, Finlândia e Dinamarca com ambos os valores em Euros.

Gráfico 24 : PLD e Spot do NORDPOOL em euros.

O gráfico resultante dos valores de PLD comparados aos do NORDPOOL é ainda mais impressionante. Como a Noruega e Suécia têm matrizes com grande participação hidroelétrica, o processo de produção da energia é fisicamente o mesmo. Portanto, que estranhos mecanismos fariam o MWh no nosso mercado oscilar desde 7% do preço do NORDPOOL para 1200 %? 

 
Gráfico 25 : Relação entre PLD e ELSPOT
 
O problema é que, apesar de ser um mercado hidrotérmico, o NORDPOOL não é um sistema de reservatórios. Lá a geração hidráulica compete no mercado sem o dilema de que a geração de hoje é a perda de reserva de amanhã, como ocorre aqui. Lá o preço é determinado por curvas de oferta e demanda. Aqui o preço é determinado por uma avaliação subjetiva do valor da água reservada dada as expectativas de afluências e demandas futuras. Pior! Aqui o preço é determinado por um ente que não participa do mercado, e assiste passivamente esse valor se transformar no paradigma de trocas de certificados virtuais de energia determinados antecipadamente e com critérios que podem ser distintos dos seus.
 

13 – Mercado Livre, um mistério

É importante entender o que se passa no mundo físico quando um consumidor se torna livre.

  • Num sistema térmico, uma indústria pode fazer um contrato com uma usina que, por alguma razão, tem um preço atrativo. A vantagem pode ser, por exemplo, ter uma eficiência acima de seus concorrentes. Nesse momento o gerador injeta sua energia na rede que é paga pela indústria sua cliente. A relação comercial e física é quase biunívoca.
  • No sistema brasileiro, como o contrato é feito com base num certificado de energia que é “parte” do todo e apenas estando atribuído a uma usina, quando uma indústria se torna livre não há alterações físicas na rede. Tudo se passa como o momento anterior à entrada no mercado livre. O que altera é o custo, que, para ser atrativo, deve ser obrigatoriamente mais baixo.

O ILUMINA tem insistido junto à CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica) que sejam divulgados pelo menos os perfis dos contratos no mercado livre. Entendemos que esses preços possam ser considerados estratégicos, mas, dada a singularidade brasileira, é importante que a sociedade saiba que prazos têm esses contratos e que volumes de energia são negociados. Apenas recentemente a CCEE divulga esses perfis. Nos gráficos a seguir os perfis quanto ao número de contratos e prazos e volumes de energia e prazos.

Gráfico 26: Perfil de mercado em março de 2013

Nesse exemplo de março de 2013 a maioria dos contratos (77%) tinham duração de 6 meses a 1 ano. Mas, em volume, 42% são contratos acima de 4 anos. Observe-se o pequeno percentual de contratos mensais, tanto em termos de número (1,4%) quanto em termos de volume (2,5%).  Em março de 2013 o PLD apontava para um valor 3 vezes maior do que o custo marginal de expansão. R$ 339/MWh. Isso provoca uma curiosidade: Como variam esses perfis quando outros valores de PLD ocorrem?  Com muita dificuldade, conseguimos os valores de 2011 da CCEE. Os anos anteriores estão indisponíveis. O gráfico abaixo mostra a situação dos 36 meses de janeiro de 2011 até dezembro de 2013. O eixo horizontal mostra o valor do PLD e o vertical a proporção de contratos de prazo mensal, que, no exemplo acima era muito baixo.

Gráfico 27 : Relação entre PLD e número de contratos mensais

Como se pode observar, quando o PLD se reduz, o perfil de contratos se altera. Cerca de 25 a 30% dos contratos “giraram” no mensal. Quando o PLD se eleva, com raras exceções a proporção se reduz a menos de 3%. As ocorrências de PLD baixo foram verificadas em 2011, quando a energia natural esteve a 120% da média histórica.  

Para um mercado cujo preço é de “Liquidação de Diferenças”, poderia ser muito natural que pequenas diferenças entre o real e o virtual estivessem sendo liquidadas. Mas, quando se plota o mesmo gráfico em termos de volume de energia, o comportamento surpreende.

Gráfico 28 : Relação entre PLD e volume de contratos mensais..

Como se pode notar, cerca de 25% do volume de energia negociado no mercado livre “girou” no mensal sob PLD baixo. Como ali se negocia aproximadamente ¼ da carga total do sistema, chega-se a conclusão de que 6,2 % da carga total foi negociada mês a mês em 2011. Talvez isso explique a grande resistência na adoção das determinações da Portaria do MME 455/12 que exige o registro ex-ante dos contratos de curto prazo. Tal determinação deveria ser implantada em junho, mas medidas judiciais de agentes comercializadores estão mantendo a vantagem extra de registrar contratos depois do consumo de energia.

Que outra razão, além do PLD muito baixo, levaria a essa mudança de comportamento? Se lembrarmos que o PLD nada mais é do que o CMO e que, estando o sistema em equilíbrio (CMOmed = CME), a distribuição de probabilidades é a mostrada no gráfico 22. Tendo a maioria dos valores abaixo da média, nada mais justificável do que o comportamento observado nos dados da CCEE. Entretanto, o que significa isso em termos do sistema como um todo?  

14 – Um mercado de diferenças e de transferências  

O mercado livre de energia elétrica é um ambiente de estratégias empresariais. Muitos setores precisam administrar o uso de energia para poder competir até em mercados internacionais. Portanto, sob essa ótica, é natural que não se conheçam quem são os compradores, de quem compram, por que preço e prazo. O ILUMINA não contesta essa necessidade.  

Mas, é preciso também reconhecer que o mercado livre brasileiro apresenta características muito incomuns, como foi mostrado nos itens 12 e 13. Sendo um ambiente que vive do mesmo e único sistema interligado, o que ocorre nesse mercado tem consequências externas a ele. A primeira situação que merece destaque é a que está surgindo agora com a “exposição” das hidráulicas. Há estimativas de que o déficit de geração para a garantia física das hidráulicas possa atingir R$ 20 bilhões. Basta observar o gráfico 29 abaixo para entender que há uma enorme assimetria “gravada” no modelo vigente.

Gráfico 29 – Assimetria de situações entre 2011 e 2014.

Em 2011, segundo dados da CCEE, sob uma hidrologia 120% da média histórica, as hidráulicas liquidaram sua geração acima da garantia física por um PLD no entorno de R$ 40/MWh. Passados 3 anos, a situação se inverte e elas serão obrigadas a pagar 20 vezes mais pelos MWh que faltam para sua garantia física. Porque esse quadro não tem nenhum sentido lógico?

  1. Não há exemplos no mundo onde seja justificável assimetria dessa ordem de grandeza.
  2. O sistema brasileiro tem reservatórios capazes de estocar MWh. Portanto, alguns MWh gerados pelas hidráulicas poderiam estar estocados caso a operação fosse distinta.
  3. A operação não é uma escolha das usinas. Portanto, a exposição também pode ser interpretada como “involuntária”.
  4. Essa situação estranha tem rebatimento direto e indireto sobre os consumidores e contribuintes.

Como será examinado adiante, a geração das usinas atingidas pela MP 579 de 2012 estão “cotizadas” entre as distribuidoras. Portanto, aproximadamente 15% do total de MW instalado de usinas hidroelétricas, não estão sujeitas a esse dilema, pois não precisam cobrir sua garantia física. Entretanto, o problema físico permanece, pois esse “risco hidrológico” é transferido para as distribuidoras (leia-se consumidores).

Assim, hoje, parte da exposição das distribuidoras não se deve a ausência de contratos, mas sim ao próprio modelo. A configuração adotada, num sistema onde a garantia física é uma estimativa sujeita a mudanças, terminou por implantar dois regimes de usinas totalmente distintos dividindo o mesmo sistema físico. Num regime, se a hidrologia é exuberante, como na maioria das vezes é num clima tropical, a vantagem é capturada no mercado livre por preços irrisórios. Se ao contrário a hidrologia é desfavorável, o “risco hidrológico” pode criar dívidas bilionárias sem memória das benesses de outras situações. No outro regime, o risco é transferido ao consumidor sem proveito de diversidades que atenuem o problema e também sem compensações dos períodos de exuberância. 

15 – Energias renováveis, mas tarifas incontroláveis. 

Apesar de termos uma agência reguladora que, além de tratar da regulamentação do setor, deveria prestar contas dos resultados das suas atuações, hoje conhecemos menos sobre política tarifária do que há 20 anos passados. Os dados mostrados aqui irão até 2012, pois, tanto a política de despacho térmico atrasada até setembro do mesmo ano, como a ocorrência de meses secos em 2014, transformaram o ambiente tarifário num verdadeiro tsunami confuso e que só mostrará seus efeitos ao longo dos próximos anos.

Gráfico 30 – Evolução da tarifa residencial 1995 – 2012

Gráfico 31 – Evolução da tarifa industrial (mercado cativo)1995 – 2012.

Como mostram os gráficos, de 1995 até 2012 a tarifa cresceu em termos reais, sendo que é possível notar uma alteração de política por volta de 2005, quando houve alguma contenção de reajustes para o setor residencial, mas com uma “transferência” de peso para a indústria do mercado cativo.

A descontratação das usinas hidroelétricas das estatais sob um mercado que havia se reduzido em aproximadamente 15% (Gráfico 4), criou um verdadeiro festival de PLD’s muito reduzidos. Evidentemente, de modo um tanto “ocluso”, implantou-se um incentivo à migração para o mercado livre. Basta mencionar que em 2002 menos de uma dezena de consumidores estava no mercado livre. Em 2008, esse número já ultrapassava 700.

Hoje, aproximadamente 50% da indústria brasileira e parte do comércio estão no mercado livre. Como a CCEE não divulga preços médios, podemos afirmar que, hoje, o Brasil não sabe qual é a política tarifária para a indústria como um todo. O ILUMINA compreende o caráter estratégico da atuação dos consumidores livres, mas chama a atenção de que um mínimo de transparência seria a divulgação de preços médios por setor.

O que nos parece importante salientar é que não há dúvidas de que o modelo adotado desde 1995 não entregou o prometido, a redução de tarifas. Muito ao contrário, há um contínuo movimento de alta de preços. Como vamos tentar mostrar os indícios, na realidade, a promessa de redução tarifária era inexequível.

Mesmo depois de quase 20 anos de uma profunda reforma dos princípios do setor, não se conhece um estudo oficial que aponte diagnósticos que expliquem essa alta de preços. É impossível negar que, dependendo do cenário ecológico e tecnológico futuro, a energia poderá encarecer. Entretanto, o que ocorre no Brasil não depende desses temas. Abaixo algumas das causas da disparada de preços das tarifas brasileiras, raramente citadas:

  • Descontratação de 2003 – self dealing – troca de energia das estatais por energia de usinas das distribuidoras com preços até 150% mais caros. A carga havia se reduzido em 15% e, a perda de contrato das estatais equivaleu a assumir o prejuízo da redução do consumo nas empresas públicas. Abaixo alguns exemplos de impactos tarifários decorrentes dessa troca.

Tabela 1: Diferenças de preço entre contratos iniciais cancelados e novos contratos (self dealing) – Fonte : Malogro no Setor Elétrico – C. A. Kirchner – Edições SEESP

  • Aumentos de mais de 30% para as distribuidoras compensando a queda de demanda decorrente do racionamento no período 2002 – 2004. Alguns      exemplos: Em 2003, CEMIG – 31,53%. COELCE – 31,29% – COELBA – 31,49% ,      CPFL – 19,25%, Bandeirante – 18,08%, ENERSUL – 32,59%, ENERGIPE – 31,18%.      Em 2004, ESCELSA – 19,89%, COPEL – 14,43%. Em 2005, CELPE – 24,43%, Manaus      Energia – 19,07% (Fonte: DIEESE – Nota Técnica 58 – 2007)
  • Parcelas da conta de luz indexadas ao IGP-M, indicador dependente do dólar. Tal indexação foi adotada para proteger capitais estrangeiros em função de possíveis desvalorizações do real.
  • Criação de uma energia “de reserva”, apesar de termos uma energia que se diz “assegurada”.  Esse encargo foi criado para reforçar os certificados de garantia superavaliados emitidos com uma metodologia diferente da usada pelo operador nacional do sistema.
  • Custos fixos nas contas das distribuidoras majorados como se fossem proporcionais ao mercado. O erro foi corrigido em 2010 após investigação do TCU, mas o passivo de R$ 7 bilhões ficou descoberto.
  • Leilões genéricos que resultaram na contratação de 6GW de térmicas, a maioria a óleo e diesel. Por força da singularidade do sistema brasileiro, os leilões eram vencidos através de um subjetivo índice custo benefício.
  • Aumento do custo de transmissão. (R$/km – +100%). Apesar das declarações entusiasmadas de deságios, os custos de transmissão só aumentaram no período.

Gráfico 32: Aumento da receita por km da rede básica.

  • Uso de geração térmica não prevista em função de óticas diferentes entre operação e planejamento. A fragmentação de responsabilidades gerou diferenças de óticas entre o planejamento (EPE) e a operação (ONS), muito embora essa coerência fosse essencial, pois o planejamento e o modelo mercantil dependem de uma simulação da operação.
  • Proliferação de encargos, a maioria ironicamente criada após a reforma mercantil do setor. Alguns são subsídios, mas outros são típicos da modelagem adotada.

 Gráfico 33: Cronologia dos encargos e impostos.

  • Os leilões de novas usinas hidroelétricas mostram patamares de preço bem superiores às usinas ditas estruturantes feitas sempre com parceria minoritária da Eletrobras. Portanto, é preciso esclarecer qual o custo real de uma usina nova. Abaixo o resultado de alguns leilões realizados onde o H indica produto hidroelétrico.

Tabela 2: Resultado de alguns leilões no período 2008 – 2013

Tabela 3: Alguns resultados de preços de usinas novas.

16 – A obsessão por redução tarifária a qualquer custo.

O ano de 2012 é um marco para entender a atual crise. Os dados mostravam que a antiga promessa de redução tarifária associada com a ideia de privatização e adoção do atual modelo mercantil falhou completamente. O máximo que teria acontecido seria uma ênfase de aumentos maiores para a indústria compensando um viés anterior onde o setor residencial era o principal atingido. Não restam dúvidas de que a energia elétrica encareceu fortemente no Brasil nos últimos 20 anos. Alguns dos motivos do encarecimento estão listados no item anterior. Teria o governo condições de enfrentar as questões envolvidas? Na maioria dos itens a resposta é negativa, pois alguns são resultados de leilões. Outros envolveriam um embate com a regulação vigente que permitiu situações absurdas tais como inflar custos fixos.

A solução veio da FIESP que lançou uma campanha midiática identificando um fator que poderia aliviar a incômoda situação tarifária brasileira: a amortização de ativos de usinas antigas. Falso? Não! É verdade que parte significativa de ativos de usinas hidroelétricas já estava amortizado e os preços praticados não refletiam isso. Entretanto, e isso é muito importante para o entendimento da crise, o sistema tinha se transmutado de serviço pelo custo para preço da energia em 1995. Ele não foi alterado em 2004. Nesse sistema nem é correto se referir ao preço do MWh como “tarifa”. Na realidade, quem escolheu a desvinculação do nível de preço de geração do estágio de amortização das usinas foi o próprio governo. Portanto, a FIESP reclama do próprio modelo.

As duas figuras abaixo são slides de uma apresentação da própria FIESP que mostra qual foi a estratégia usada para lançar a ideia de que algo poderia ser feito para reduzir a tarifa sem ter que enfrentar as questões levantadas no item anterior.

 

 Gráficos 34 e 35: Slides da FIESP sobre a comparação energia “nova” e “velha”.

A tese do uso de excedente de preço de usinas antigas é correta. O erro está na forma e nas comparações feitas para convencer a sociedade de uma inexistente “vilania” das estatais. As empresas não definiram os preços. Eles foram resultantes de leilão. Se os níveis atuais estavam inflados a razão é a indexação (IGP-M) ainda existente em todo o setor. Além disso, porque o argumento da FIESP, comparando preços de leilões das usinas acima com o preço das usinas antigas está repleto de erros?

  • As usinas S. Antônio e Jirau estão no Rio Madeira que tem hidrologia mais estável do que a maioria dos rios brasileiros e têm maior produtividade (FC ~ 60%). Elas deveriam ser mais baratas mesmo.
  • Todas as quatro, sem exceção, são financiadas pesadamente pelo BNDES a taxas subsidiadas e, portanto, não podem ser consideradas como “paradigmas” de preço de energia nova. Para encontrar contra exemplos, basta ver os resultados das tabelas 2 e 3.
  • Todas têm parcerias com estatais, sempre minoritárias. A inclusão das empresas da Eletrobras visava “viabilizar” o empreendimento, o que coloca uma dúvida de qual seria o preço sem a participação da estatal.
  • Todas têm suposições de contratação no mercado livre que ainda não se concretizaram.
  • Nenhuma delas está em pleno funcionamento.

Portanto, os argumentos têm um viés de “exagero” e não reconhecimento de que alguma amortização já tinha sido feita no passado, pois, voltando no tempo, as tarifas de 1995 são quase a metade da atual em termos reais. Como ter níveis tão mais baixos se não tivesse havido depreciação reconhecida na tarifa? Seriam os custos das antigas usinas brasileiras muito caros justamente porque o sistema anterior garantia uma remuneração para os investimentos? Seria verdade que o Brasil era o exemplo mais concreto do efeito Averch-Johnson[3]? O estudo mostrado no gráfico abaixo[4] parece desmentir esse mito, pois o Brasil não está “mal na foto” quando se compara custos de hidroelétricas no mundo.

Gráfico 36: Custos de hidroelétricas. Comparação internacional.

Evidentemente, das mais de 100 usinas brasileiras, a grande maioria foi construída por empresas estatais. Portanto, o conhecido efeito Averch-Johnson, talvez não tenha ocorrido no Brasil. Mas, quando uma instituição importante como a FIESP utiliza um argumento válido em tese, é preciso examinar um pouco mais a questão. Na tabela 4, os custos estimados dos projetos exemplos da FIESP, onde se vê que o custo médio dos 4 projetos é de R$ 3.655,23/kW.

Tabela 4: Custos estimados dos projetos citados pela FIESP.

As usinas da Eletrobras atingidas pela medida provisória 579, transformada na lei 2183/2013 são as seguintes: Marimbondo, Porto Colômbia , Estreito, Funil, Furnas, Corumbá, Paulo Afonso I, II, II e IV, Moxotó, Itaparica , Xingó, Piloto, Araras, Funil, Pedra e Boa Esperança. Elas somam 13.800 MW. Se fossem construídas com o custo médio dos projetos exemplos da FIESP custariam R$  50.442.138,87.

De acordo com o documento da Eletrobras reproduzido abaixo, o valor contábil da indenização que quitaria os investimentos dessas usinas seria R$ 13.226.000,00. Isso quer dizer que, sem alterar o manual de contabilidade do setor, 74% do investimento total já teria sido pago pelos consumidores.

Teórica e aproximadamente e mantendo os registros contábeis, a tarifa média das usinas antigas poderia ser diminuida em 70% e o valor final seria cerca de 30% dos R$ 90,98/MWh = R $27,30/MWh Porque uma realidade contábil advinda de diversos balanços auditados e aprovados pela ANEEL não foi suficiente? Porque ao invés de adotar o dados registrados em balanços apenas 44% foi reconhecido? É o que vamos examinar a seguir.

17 – Uma conta ao inverso.

Principalmente dois motivos fizeram com que o governo, pressionado pela campanha da FIESP, adotasse um caminho não ortodoxo: Em primeiro lugar, em 2011 já estava evidente que o Brasil já ocupava a terceira posição dentre os países com energia cara, muito longe do padrão hidroelétrico de Noruega e Canadá, conjuntura ocupada em 1995. A FIESP, omitindo o detalhe de que nem toda a indústria tem custos elevados com energia elétrica, argumentava ser a alta tarifa a razão da perda de produtividade. Isso é verdade para alguns setores eletrointensivos, mas não pode ser generalizado para a indústria como um todo. Até porque, fosse real, as indústrias italiana e japonesa estariam falidas, como mostra o gráfico abaixo[5].

 Gráfico 35: Comparação internacional de tarifas elétricas para a indústria.

Portanto, o que estava em jogo seria uma redução que colocasse o Brasil no meio da curva, o que exigiria uma tarifa 20% menor.

Entretanto, apenas 20% das usinas hidroelétricas estavam em final de concessão. Como mostrado no Gráfico 16, o peso do kWh numa conta média não passa de 30%, sendo, evidentemente, maior para a indústria. Nem toda energia vem de hidroelétricas, podendo-se estimar em cerca de 80%. Portanto, se a energia das usinas velhas fosse gratuita, a redução máxima não ultrapassaria 6,4% na média e 10% para a indústria. Estava evidente que uma redução de 70% nas tarifas não seria suficiente para bancar a meta de 20%.

O outro motivo seria o limite de recursos da RGR (Reserva Global de Reversão), um dos poucos encargos criados antes da reforma de 1995 e que serviria justamente para indenizar investimentos não amortizados. Essa conta acumulava cerca de R$ 20 bilhões e, se apenas a Eletrobras contabilizava uma indenização de R$ 13 bilhões, estava claro que seria necessário fazer uma conta reversa.

18 – Valor Novo de Reposição, um conceito muito semelhante ao da FIESP.

Segundo o documento do Ministério de Minas e Energia “Cálculo do Valor Novo de Reposição de Empreendimentos de Geração de Energia Elétrica – Metodologia, Critérios e Premissas Básicas:

De acordo com o art. 10 do Decreto nº 7.805/2012: “Art. 10. Os estudos para definição do VNR dos empreendimentos de geração de energia elétrica serão realizados pela Empresa de Pesquisa Energética – EPE, a partir das informações do Projeto Básico do Empreendimento a ser fornecido à ANEEL pela concessionária de geração.

§ 1º Os custos unitários utilizados nos estudos de que trata o caput serão obtidos a partir de banco de preços da EPE.

§ 2º Os projetos básicos dos empreendimentos de geração deverão ser protocolizados junto à ANEEL até 15 de outubro de 2012, observado o disposto no §5º do art. 15 da Medida Provisória nº 579, de 2012.

§ 3º No projeto básico do empreendimento devem constar os quantitativos de materiais, equipamentos hidromecânicos e eletromecânicos, e serviços.”

Essa metodologia refere-se ao cálculo do valor de um ativo (no caso, o bem reversível vinculado à uma concessão vincenda) se fosse construído a preços atuais, tendo por base os quantitativos de materiais, equipamentos eletromecânicos, e serviços, que fazem parte dos Projetos Básicos protocolados na ANEEL em atendimento ao § 2º do o art. 10 do Decreto nº 7.805/2012. Dessa forma, os empreendimentos de geração analisados pela EPE, conforme relatórios específicos, tiveram seus orçamentos refeitos, considerando como data-base de referência o mês de junho de 2012.

Portanto, apesar de todas as diferenças que existem entre o projeto básico de uma usina e sua efetiva construção, a metodologia se arrisca a avaliar mal o valor do empreendimento. O próprio setor elétrico está repleto de exemplos de obras cujos custos extrapolaram as estimativas iniciais.

A lista de usinas da tabela 4 é uma amostra. A metodologia proposta usou para seu “banco de dados” as 12 usinas da tabela abaixo:

 Tabela 6: Usinas componentes do banco de dados para estimativa do VNR.

Como se vê são usinas novas, muitas ainda não concluídas e algumas onde o custo já extrapolou em muito o projeto básico. A metodologia não se sustenta como representativa das diversas situações das usinas brasileiras com base na seguinte análise:

  • A tabela abaixo mostra as potências das usinas do banco de dados (não informada no documento do MME)
  • Como se vê, é uma amostra cuja média é de 1072 MW, mas a amplitude das potências torna evidente a baixa representatividade de outras situações.
  • Muitas usinas que serão avaliadas pela metodologia estão numa faixa de potência onde o banco de dados não tem exemplos (1000 – 1500 MW).

Tabela 7: Potência das usinas  do banco de dados

Com base nessa pequena amostra, a metodologia define o custo da turbina e gerador a partir das curvas abaixo.

 

Gráficos 36 e 37: Correlação linear que determinou os valores de Turbina e Gerador para compor o VNR.

  • Nesses gráficos, é evidente que se o ponto isolado, mais alto, tivesse outro valor, as retas teriam outra inclinação. 
  • Mesmo na concentração de valores baixos, é possível notar diferenças maiores do que quatro vezes.

O caso das usinas com turbinas Kaplan é ainda mais evidente de que cada usina é um caso a parte. São visíveis os erros em relação às próprias usinas do banco de dados. O exemplo marcado com o circulo vermelho apresenta um desvio negativo de R$ 30.000/MW/rpm 0,5. Isso significa um viés de -60% em uma usina do próprio banco de dados.

Gráficos 38 e 39: Correlação linear que determinou os valores de Turbina e Gerador para compor o VNR.

O ILUMINA não vai se profundar ainda mais no exame de uma metodologia que não tem base em dados reais e pode subestimar custos. O exemplo acima é apenas uma amostra de falhas de análises estatísticas que querem aparentar um rigor técnico inexistente. Mais importante do que possíveis erros, o fato é que não existem duas usinas hidroelétricas iguais. O conceito de VNR pode até ser aceitável para usinas térmicas, linhas ou subestações, mas, cada usina hidroelétrica é única e qualquer analogia, ainda mais com projeto básico, é um equívoco. É possível encontrar estudos com essa metodologia destinado a obter estimativas de custos futuros para planejamento. Entretanto, o que se apresenta aqui é um método que irá impor um custo mesmo que seja conflitante com o registrado. Chega a ser irônico que alguns exemplos do próprio banco de dados já não passariam no teste do VNR, pois seus custos já extrapolaram os valores iniciais. Portanto, o método utilizado para definir as indenizações tem claros indícios de erros grosseiros.

19 – A redução tarifária obsessiva via custos de operação e manutenção.

Na verdade, o item anterior não tem um impacto direto no preço da energia. A metodologia afeta os balanços das empresas e lança uma enorme insegurança para os investidores, pois cada empresa que atua no setor “pode ser a Eletrobras amanhã”.

A filosofia do VNR, que proclama ser capaz de definir autocraticamente os valores de investimentos, de certa maneira foi estendida para os custos de operação e manutenção das unidades atingidas pela Lei 12783/2013.

Mais uma vez é importante salientar que a intervenção passa ao largo do fato incontestável de que usinas hidroelétricas são equipamentos únicos. Não há duas usinas iguais. Desprezada essa característica, as estimativas se limitaram a custos de operação e manutenção das partes eletromecânicas das usinas. Toda a relação do empreendimento com o reservatório e o próprio rio foi desprezada. Portanto, programas desenvolvidos ao longo da convivência da usina com a sociedade afetada deixam de ser considerados custos de operação e manutenção.

Na verdade, os gastos de Operação e Manutenção de uma Usina Hidroelétrica dependem de:

  • Capacidade Instalada
  • Geração
  • Número de máquinas
  • Tipo de Turbina
  • Automação
  • Regime de operação
  • Variáveis ambientais
  • Restrições de Operação

 Além do reducionismo do problema, a ANEEL retira do concessionário a responsabilidade pela qualidade, uma vez que afirma na Nota Técnica no 385/2012-SER/SRG/ANEEL.

 “17. A utilização de uma função custo para a definição de custos operacionais possui uma vantagem central, que é desassociar os custos praticados por cada empresa dos custos regulatórios.”

 Isso mostra que a agência desvaloriza seu papel de fiscalização preferindo utilizar metodologias contestáveis e descoladas da realidade. O próprio conceito de concessionário é atingido, pois a empresa concessionária é vista como produtora de custos inconfiáveis a priori.

 Das variáveis citadas acima, a ANEEL usou apenas as duas primeiras, capacidade instalada e geração. Textualmente a nota acrescenta:

“23. A definição dos custos operacionais a ser considerado na tarifa de geração …..pode ser feita de ta forma que reflita um padrão de eficiência definido pelo Poder Concedente. Para tanto, é preciso…., estimar uma função custo operacional. Essa função deve se basear no “produto” da atividade geração e nas características de cada usina… a principal variável é sua Capacidade Instalada. Um maior Fator de Capacidade pode estar associado a uma maior utilização das maquinas da usina.”

A função “simplificadora” do problema é definida como:

Gráfico 40: Trecho da Nota técnica 385/2012-SER/SRG/ANEEL

Mesmo aceitando o desprezo das variáveis citadas acima, a nota técnica comete dois graves erros.

  1. Coloca na fórmula a variável Fator de Potência ao invés de Fator de Capacidade, em desacordo ao texto da própria nota, o que demonstra a pressa e a falta de cuidado de um documento oficial de uma agência reguladora. O fator de potência nada tem a ver com a geração da usina, sendo um parâmetro elétrico que mede a defasagem entre tensão e corrente. Esse detalhe é um grave indício de que a agência atuou como braço do poder executivo.
  2. Mesmo admitindo o lapso, estimar a geração de uma usina hidráulica no sistema brasileiro pelo Fator de Capacidade é uma escolha que subestima a geração real. Como se sabe, as hidráulicas, na maioria do tempo, geram no lugar das térmicas e, portanto, a geração real é superior à estimada através do Fator de Capacidade.

Em resumo, se é válida a tese de que o custo de operação e manutenção pode ser estimado simplesmente através do Fator de Capacidade e da Capacidade Instalada, então uma usina de 800 MW tendo 2 máquinas de 400 ou oito máquinas de 100 devem ter obrigatoriamente exatamente o mesmo custo de O&M, o que não tem base na maioria dos casos reais.

20 – Como conseguir tarifas mais baixas sem intervenções.

Dado o nível de incertezas sobre essas metodologias tão não ortodoxas, só nos resta perguntar como outros sistemas de base hidroelétrica praticam uma política que permita capturar a amortização de investimentos em favor do consumidor.

O irônico é que a constituição de 1988, considerada “estatizante” por muitos, foi a semente do atual modelo do nosso setor elétrico. Tratando a exploração de potenciais hidráulicos com um serviço público como qualquer outro, eliminou o princípio da “justa remuneração” constante na carta de 1946 e tornou obrigatória a licitação findo o termo da concessão.

Tal estrutura jurídica não é comum em sistemas hidroelétricos, pois uma usina não é apenas uma fábrica de kWh, e, em conseqüência, outros atributos são estranhos numa concorrência por preço.  Canadá e Estados Unidos mantêm os concessionários, mesmo privados, justamente para poder se aproveitar da amortização do capital investido em prazos compatíveis com a extensa vida útil das hidráulicas sob os princípios da “return rate regulation”. Dos 50 estados americanos, apenas 15 estão sob a égide mercantil. A lei anterior, PUHCA, Public Utility Holding Company Act de 1935 continua válida na maioria. Uma empresa só perde a concessão de uma hidroelétrica se cláusulas contratuais forem descumpridas e essa decisão é exclusiva do FERC (Federal Energy Regulatory Commission).

Mas, seria interessante comparar dados de outros sistemas. A tabela abaixo é parte de um estudo que analisa várias opções para novas fontes nos Estados Unidos. Não se trata de custos de O&M que serão impostos a ninguém. 

Pode-se verificar que os custos de operação e manutenção de hidráulicas está estimado em US$ 10/MWh. Comparado com os resultantes da metodologia brasileira, ultrapassam o triplo. Deve-se também considerar que essa estimativa diz respeito à novas unidades. Usinas antigas podem perfeitamente ultrapassar esses valores. 

 

Tabela 8: Custos de Novas Fontes de Energia – EIA – 2012.

Como, portanto, garantir que a amortização de investimentos antigos não seja apropriada pelo dono da usina?  Através da taxa de retorno negociada com o regulador. A tabela abaixo mostra o ROE (Returno n Equity) negociados para diversas empresas de vários estados americanos.

Isso é possível porque a maioria dos estados americanos permanece sob o “return rate regulation”, que nada mais é do que o nosso antigo regime de serviço pelo custo, desmontado a partir de 1995.

Tabela 9: Taxas de retorno negociadas para empresas americanas. Fonte:R. Mihai Cosman – CPUC Energy Division. (***) Ferc response, (**) 2007, (*) 2006 Public Utilities Fortnightly

 

Por acaso tais taxas significaram grandes perdas para essas empresas? O gráfico abaixo mostra que não, pois elas ainda são bastante atrativas em comparação à taxa de juros do tesouro americano.

 

Gráfico 41: Taxas de retorno de concessionários americanos comparadas à taxas de juros.

 Essa comparação internacional mostra que há cada vez mais indícios de que os custos de O&M brasileiros foram intencionalmente deprimidos para que se conseguisse uma redução final predeterminada.

 

21 – Conclusão: Pior a emenda que o soneto.

Como qualquer artigo, por mais extenso e abrangente que seja, é preciso uma conclusão. Para quem teve a paciência e interesse em ler, pedimos que, se discordarem de algum ponto, manifestem sua opinião. Se algum dado estiver errado, agradeceríamos que fosse apontado. Não somos os donos da verdade. Também estamos na busca dela.

Examinando o que ocorreu nesses últimos anos, é óbvio que muitos erros foram cometidos. O que é preocupante é que apesar de todos os indícios de que há algo profundamente errado com as políticas e com o modelo adotado, percebe-se pouca vontade para examinar a fundo o sistema.

O ILUMINA, mesmo sem muitas esperanças de quebrar a nossa fantástica complacência, resume aqui alguns dos problemas com alguma ordem cronológica, mas termina esse artigo com as inevitáveis perguntas sobre o papel da Eletrobras. Afinal, o que se quer dessa empresa? Vale a pena tê-la apenas como complemento do setor privado? Vale a pena tê-la sob os mesmos princípios mercantis das empresas privadas? Qual é o papel dela no enorme desafio da dicotomia energia x meio ambiente? Depois do enorme prejuízo causado pela medida de contenção tarifária e pelas política de dispensa de pessoal adotada a empresa é ainda capaz de exercer um papel inovador e desafiante?

O racionamento de 2001, por ter sido um recorde mundial, foi uma grande oportunidade de se alterar o que era marca registrada do modelo de 1995. Muitos imaginam que a grande crítica de alguns técnicos era a privatização, mas o debate que ocorreu em 2002, muito próximo à data da eleição, concentrou-se no tema da mercantilização tal como imaginada. A privatização, tal como imaginada, além de inibir novos investimentos, foi acompanhada de algum desmonte da capacitação técnica das estatais, mas ela não era o principal problema. Ela foi interrompida, mas a mercantilização, tal como imaginada, foi implantada a partir de 2003 apesar das críticas técnicas.

Havia outra proposta de reforma em 2003. Resumidamente, a grande diferença seria a adoção de um comprador majoritário por capacidade (MW), apesar de pode haver comercialização de energia em menor volume. Essa configuração evitaria que tanto a exuberância hidrológica fosse capturada através de preços irrisórios, como impediria prejuízos bilionários nos momentos de carência. Um simples princípio de que períodos de “vacas gordas” ajudem a pagar as “vacas magras”. Essa mudança, além de não ter sido sequer colocada em discussão, foi abortada pelo próprio governo. Essa proposta ainda é válida desde que se abandonem preconceitos e se reconheça que o sistema brasileiro tem singularidades que exigem outra organização.

A excessiva fragmentação entre operação, planejamento, e comercialização seria eliminada através da unificação em um mesmo órgão. Infelizmente, em 2003, tal proposta foi interpretada como “estatização”, sendo inclusive confundida como uma tentativa de retorno do “poder” para a Eletrobras. Na realidade, a organização poderia ter a mesma configuração do ONS ou da CCEE, com representantes de todas as áreas.

Vale a pena registrar que havia a proposta da blindagem política das estatais através da profissionalização da sua direção e assinatura de contratos de gestão, outra sugestão engavetada.

Em 2002 já era evidente que o consumo total do sistema interligado tinha se reduzido significativamente. A descontratação das estatais fez com que elas ficassem liquidando sua energia pelo PLD da época, que girava no entorno de R$ 8/MWh. Apesar dessa bizarra situação, manteve-se o programa de descontratação imaginado pelo governo anterior.  Esse é um dos exemplos de uso das estatais para funções explícitas ou implícitas que nada têm a ver com sua razão de ser.

Isso significou um enorme prejuízo para as estatais, mas também uma mudança no mix de preços das distribuidoras que, sutilmente, trocaram contratos no entorno de R$ 60/MWh por auto suprimentos acima de R$ 100/MWh. Essa foi a primeira causa de aumento tarifário no governo que se iniciava.

Como mostramos nesse artigo, durante esses últimos 13 anos, uma significativa alteração física ocorria no sistema. A capacidade de regularização do sistema de reservatórios se reduzia a cada ano. Não é compreensível que tal tema não tenha sido colocado em amplo debate durante tanto tempo. Não que esse assunto fosse usado para emparedar as exigências ambientais e conseguir a aprovação de novos reservatórios. O ponto central é que a redução da reserva relativa à carga exige mudanças nos critérios de operação e, como já salientamos, tal mudança deve ser acompanhada de uma revisão das garantias dadas às usinas.

Nada foi feito. A política de expansão contemplou uma contratação de usinas térmicas que, por seu nível de preço, formou um parque insensível a essa mudança. O efeito final foi o uso excessivo dos reservatórios tornando cada vez mais arriscado o evento de uma hidrologia desfavorável.

Em 2013 terminavam os contratos de energia existente firmados em 2004, num leilão onde as estatais foram obrigadas a vender energia por 8 anos, apesar da circunstância ruim de um mercado deprimido, pois foram firmados contratos de oito anos.

A medida provisória de redução tarifária não examinou as causa reais do aumento. Em muito pouco tempo, sem diálogo, com indícios de influência sobre a ANEEL, o governo implantou uma metodologia de imposição de custos de operação e manutenção que considera apenas as partes eletromecânicas das usinas. O governo, iludido com a possibilidade de aceitação total da proposta de renovação das concessões e também enganado a respeito do equilíbrio entre oferta e demanda, fez um leilão de energia existente que deu vazio. Era evidente que o sistema já mostrava sinais de desequilíbrio e que o cenário do mercado livre seria de PLDs elevados. Os ganhos, mesmo que momentâneos, superavam as expectativas de ganhos através de tarifas de O&M deprimidas.

A filosofia equivocada de serviço pelo custo, quando extrapolada, irá levar o setor a uma enorme fragmentação de ativos. Basta imaginar que cada equipamento que necessite troca ou modernização terá que formar uma nova conta. Por exemplo, as usinas atingidas deixam de ser ativos das empresas e passam a ser da união. Se um transformador necessita ser trocado, ela será um ativo da empresa alocado dentro de um ativo da união. As interferências entre equipamentos com certeza gerarão dúvidas sobre a responsabilidade final em caso de falhas.

Hoje o quadro é de uma crise sem similar na história de setores elétricos. Considerando a perda de valor das empresas do setor, o prejuízo acumulado já se aproxima de R$ 100 bilhões. Não apenas a tarifa retoma sua trajetória ascendente como o desequilíbrio já atinge dimensões macroeconomicas.

 

 

FIM (por enquanto)

 

[1] Dado a influência do modelo no mundo comercial, a obtenção dessas séries sintéticas deveria ser alvo de um profundo exame.
[2] Baseada no plano de expansão de 2016. 

[3] AVERCH, H.; JOHNSON, L. (1962) Behaviour of the firm under regulatory constraints. American Economic Review 52, 1052-69. [4] http://www.irena.org/DocumentDownloads/Publications/RE_Technologies_Cost_Analysis-HYDROPOWER.pdf [5] Fonte Key World 2011 – International Energy Agency

  14 comentários para “Da superfície para as profundezas: Um modelo com defeitos genéticos – Artigo que tenta explicar a crise.

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