Difícil eletricidade

 



ILUMINA: Nosso comentário é o mesmo que temos repetido. Porque a tarifa explodiu? Ninguém se interessa por esse assunto? O governo não tem nada com isso?



Por Antonio Dias Leite – Valor

 

A prestação de serviços de utilidade pública – como o abastecimento de água, a distribuição de eletricidade e gás natural, transportes urbanos, entre outros – é exercida sob regime de monopólio por empresas concessionárias reguladas pelo Estado ou por empresas sob controle do próprio Estado.

 

A garantia de suprimento a longo prazo e a qualidade do serviço são requisitos fundamentais a serem atendidos por tais empresas. Em contrapartida ficam asseguradas tarifas que cubram custos e remunerem o capital investido, de forma a possibilitar a eficiência e a expansão dos serviços.

 

Existem várias formas de assegurar a compatibilização desses objetivos fundamentais. No caso particular do Brasil há que levar em conta ainda outros requisitos.

Se for mal feita, queda do preço da eletricidade poderá deteriorar o equilíbrio financeiro do setor elétrico

 

Do ponto de vista econômico e em função da nossa tradição inflacionária, as tarifas foram repetidamente congeladas pelas autoridades monetárias. A prática da contenção tarifária e a consequente insuficiência de investimentos levaram ao colapso do suprimento de eletricidade no final da década de 60 e ao desabastecimento de 2001.

 

Do ponto de vista político formaliza-se a defesa da ideia de “modicidade tarifária”, juízo de valor que escapa da avaliação quantitativa e que desvia a atenção da população da incidência crescente, sobre a tarifa, de encargos e tributos criados pelo poder público, desde que os impostos únicos sobre energia elétrica, combustíveis e minerais foram cancelados pelos constituintes de 1988.

 

Estas considerações surgem a propósito da revisão do marco regulatório do setor elétrico, iniciada no mês de setembro, com a Medida Provisória (MP) 579. Documento prolixo, compreendendo 28 artigos e 90 parágrafos e incisos e, ao mesmo tempo, com muitos pontos abertos para definição posterior “a critério do poder concedente”. O objetivo declarado e propalado é a redução de 20% do preço da energia elétrica a partir de janeiro de 2013. O governo escolheu para esse fim dois instrumentos: de um lado redução de custos em geração e transmissão e, de outro, redução de encargos que sobre elas incidem, sem tentar, no entanto, mexer na pesada tributação do ICMS, do âmbito estadual.

 

Na primeira linha da reforma, a almejada redução tarifária se baseia na renovação, sob condições definidas pelo poder concedente, das concessões de usinas hidrelétricas e linhas de transmissão que vencem até 2017 e que formam um conjunto representativo de grande parte da capacidade do sistema elétrico do país. Coube às concessionárias detentoras de tais ativos aceitarem, ou não, a prorrogação. Na primeira hipótese a remuneração dos ativos já amortizados será excluída da tarifa. Essas concessionárias serão indenizadas pela parte dos ativos ainda não amortizados.

 

 Na segunda linha da reforma são suprimidos os encargos relativos à Conta de Consumo de Combustíveis (CCC), à Reserva Geral de Reversão (RGR) e, em parte, à Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). Decorre daí a complexa engenharia financeira que ocupa vários artigos da MP 579, cuja interpretação dá trabalho aos especialistas.

 

Entre a variedade das matérias tratadas, não diretamente vinculadas ao objetivo central da MP, alguns artigos me assustaram, notadamente o parágrafo segundo do artigo primeiro que trata da “busca de equilíbrio na redução das tarifas das concessionárias de distribuição do Sistema Interligado Nacional, o SIN”, por lembrar que se for mal feita poderá ressuscitar a nefasta equalização tarifária do governo Geisel-Ueki, que resultou na deterioração do equilíbrio financeiro do setor elétrico na passagem da década de setenta para a de oitenta.

 

A ideia de redução do preço da eletricidade, reconhecidamente elevado no nosso país foi, como não podia deixar de ser, bem recebida. Contudo, a forma de alcançá-la nos moldes propostos na MP 579 teve, em geral, repercussão negativa, especialmente entre aqueles com experiência prática na gestão técnica-econômica e financeira ou no estudo específico dos serviços de energia elétrica no Brasil. Causou perplexidade a imposição às empresas da obrigação de definir sua aceitação ou não da proposta do governo até o dia 4 de dezembro, antes que a MP passasse por análise no Congresso, onde já se apresentaram centenas de emendas, e que fossem conhecidos, examinados e justificados, caso a caso, os números definidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

 

A partir de outubro multiplicaram-se dúvidas e cresceu a apreensão com o possível efeito da MP sobre o equilíbrio econômico-financeiro futuro das empresas, dominantemente de geração. Tanto assim que para as renovações do segmento de geração, apenas empresas do grupo Eletrobras, obedientes às ordens do governo federal, optaram pela aceitação da proposta contida na MP 579. Em relação à renovação das linhas de transmissão, todas as empresas aceitaram a proposta do governo, mas somente após reajuste das indenizações, que resultaram na edição de mais uma Medida Provisória (591), cinco dias antes da data fatal de 4 de dezembro.

 

Como resultado dessas peripécias, desencadeou-se crise dominada pelo sentimento de insegurança quanto ao marco regulatório, baseado no qual são tomadas as decisões de longo prazo das empresas privadas e públicas, com ampla repercussão no mercado de capitais e decepção de investidores locais e estrangeiros nas empresas do setor. A insegurança jurídica já repercute negativamente na imagem de estabilidade institucional que o país vinha alcançando no exterior.

 

Por fim, e diante da recusa da oferta contida na MP pelas grandes empresas sob controle de governos estaduais filiados a partidos de oposição, surgiu a tentativa de politizar a discussão.

 

Se ainda for possível, caberá aos órgãos executivos e reguladores do governo federal, em função da grande responsabilidade que lhes é atribuída, compatibilizar objetivos nesse quadro complexo e confuso, o que requer competência técnica e bom senso para evitar a prevalência de opções simplistas que podem vir a inviabilizar o adequado suprimento futuro de energia elétrica, fenômeno que, infelizmente, já conhecemos.

 

Antonio Dias Leite foi ministro de Minas e Energia e é professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Acaba de publicar, pela Campus-Elsevier, o livro “Eficiência e Desperdício da Energia no Brasil”.