Energia elétrica, serviço público ou mercadoria? – Artigo

Ikaro Chaves

O início do governo Temer inaugurou um novo regime no Brasil, baseado na aplicação radical das teses neoliberais. A privatização, a desregulamentação e a retirada de direitos voltaram a ser a tônica das ações do governo. Em um ambiente de estagnação do capitalismo mundial e de débâcle da economia nacional a solução para o crescimento das taxas de lucro do capital deixou de ser o crescimento do mercado interno ou mesmo a busca da competitividade internacional e passou a ser o aumento da exploração do trabalho e a mercantilização de todos os serviços públicos. Direitos passam a ser tratados apenas como serviços e a maximização das taxas de retorno do capital passa a ser o único objetivo.

Para o Setor Elétrico Brasileiro (SEB) a proposta do atual governo é baseada no binômio privatização / mercantilização, ou seja, não só alienar ao capital privado o que resta da estratégica presença estatal no setor, mas também reescrever o marco regulatório a fim de modificar o paradigma de como a energia elétrica é encarada, deixando de ser considerada um serviço público, passando a mera mercadoria, como outra qualquer. Com relação à privatização do setor de Geração e Transmissão (G&T) da Eletrobras o governo e o dito mercado foram obrigados, pela resistência popular e parlamentar, a um recuo tático, abrindo mão desse intento por enquanto, na expectativa da consolidação do atual projeto de poder nas eleições de outubro. Permanecem na pauta, entretanto, a privatização das distribuidoras federais no Norte e Nordeste e a aprovação de um novo marco legal para o SEB, através do Projeto de Lei 1.917/2015, mal nominado de projeto da “portabilidade da conta de luz”.

O projeto prevê a ampliação escalonada do mercado livre, até que no ano de 2028 todos os consumidores de energia elétrica do Brasil, inclusive os residenciais teriam a opção de escolher de qual empresa comprariam sua energia elétrica. Essa proposta até parece simpática, dando a impressão de empoderamento do consumidor, que poderia escolher o fornecedor de energia elétrica da mesma forma que escolhe a operadora de celular. Na prática as coisas não são bem assim, é preciso considerar as particularidades do setor elétrico, em especial no Brasil e avaliar a experiência internacional.

Desde a promulgação da lei 10.848 em 2004, o mercado de energia elétrica é dividido em Ambiente de Contratação Regulado (ACR) e Ambiente de Contratação Livre (ACL), sendo que apenas consumidores com mais de 3,0 MW de carga podem participar do ACL, ou seja, apenas grandes indústrias podem escolher livremente de quem comprar energia, sendo o preço e o prazo de contratação negociados livremente entre fornecedor e cliente. Em 2017 os pouco mais de cinco mil consumidores do ACL (Revista ABRACEEL 2018) consumiram quase um terço de toda a energia produzida no país, pagando um preço em média 25% menor que os consumidores do mercado regulado.

Os preços mais baixos pagos pelos participantes do ACL são sempre citados pelos defensores da mercantilização total do setor elétrico, mas o que eles não dizem é que essa vantagem é paga justamente pelos consumidores do mercado regulado ou cativo. Ao construir uma nova usina o empreendedor se compromete a vender no mínimo 70% da energia para uma distribuidora de energia, através do ACR, ficando os outros 30% livres para que ele possa vender no ACL. Os contratos do ACR são de longo prazo, já os do ACL podem ser de curto prazo, isso faz com que o empreendedor ao buscar financiamento para a implantação de seu projeto só possa contar com os contratos do ACR como garantia. Como a base da matriz elétrica brasileira é a hidroeletricidade, que exige grande volume de capital para a viabilização da obra, na prática quem financia a expansão do setor é basicamente o consumidor cativo. Ou seja, os consumidores residenciais e pequenos empresários garantem energia mais barata para as grandes indústrias.

Ao ser concretizada a ampliação do mercado livre criaria, portanto, um grave problema para a expansão do setor elétrico brasileiro e a proposta do governo para se contrapor a isso é a separação entre Lastro e Energia. Os geradores venderiam não mais contratos de entrega de energia apenas, mas dois produtos, o lastro, ou seja, a confiabilidade, ou energia firme para o sistema e a energia para os clientes. Cada cliente pagaria por sua energia enquanto que o lastro seria rateado por todos os consumidores, através da criação de um novo encargo. Essa modelagem de mercados totalmente liberados com separação entre lastro e energia é típica de países com matriz baseada na termoeletricidade, já no Brasil, um país onde 70% da energia é gerada por hidrelétricas esse modelo trará riscos inaceitáveis.

Em um mercado baseado na termoeletricidade quando o preço da energia sobe os agentes são incentivados a investir na expansão da oferta, ao menos em tese, já num país onde 70% da energia é proveniente da hidroeletricidade a sinalização de preço possui muito pouca influencia no aumento da geração, que depende essencialmente das condições metrológicas, ou seja, imunes aos sinais do mercado. Assim, os atuais geradores hidráulicos tenderão a cobrar um preço maior pelo lastro para tentar se proteger das variações da hidrologia.

Outro efeito extremamente grave da reforma proposta é a perda de competitividade das fontes renováveis. Como os novos empreendimentos venderão energia e lastro – esse último está relacionado à confiabilidade ou ao fator de capacidade, as usinas termelétricas terão grande vantagem sobre as fontes hidráulicas, eólicas e solares, que dependem das forças da natureza, já para as térmicas o fator de capacidade está limitado somente ao grau de confiabilidade das máquinas, já que o combustível está disponível a todo instante.  

O resultado será um importante incentivo à geração termoelétrica, sendo que o Brasil que tem uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo, com mais de 80% de participação de fontes renováveis, passará a gerar cada vez mais energia com base em combustíveis fósseis, mais poluentes e mais caros.

Os defensores da mercantilização, especialmente os grandes consumidores que possuem e possuirão ainda mais poder de barganha, a cadeia de fornecimento de equipamentos e combustíveis para a geração termelétrica e os comercializadores de energia, empresas que ganham dinheiro vendendo energia sem produzir um único kWh, têm seus argumentos baseados numa suposta competição e incentivo à eficiência, partindo do pressuposto de que energia elétrica é apenas uma commodity como petróleo, suco de laranja ou café. Entretanto a experiência internacional, mesmo em países basicamente termoelétricos, onde em tese, a livre competição teria mais sucesso, não corrobora os argumentos dos defensores da reforma.

No Reino Unido, um dos pioneiros da reforma baseada no binômio privatização / mercantilização, o preço da eletricidade subiu em média 133% desde o ano 2000 e o fim do monopólio estatal, ao invés de conduzir a uma grande variedade de empresas competindo entre si, levou a um odiado oligopólio privado, conhecido por Big six (Public ownweship of the UK energy system – benefits, costs na processes – David Hall). O fracasso da reforma do setor elétrico é tal que, segundo pesquisa recente, 77% dos britânicos são a favor da reestatização do setor (We can undo privatization. And it won´t cost us a penny – Will Hutton).

Nos EUA, que implementou a reforma na mesma época que o Reino Unido, os resultados também não foram melhores, sendo que os estados que mais liberalizaram seus mercados foram justamente aqueles onde houve maior crescimento nas tarifas, incluindo o caso clássico da crise da Califórnia no início dos anos 2000 e que levou o estado ao maior racionamento da história norte americana, além de uma verdadeira explosão tarifária. Além disso, nos EUA a tal portabilidade só fez sucesso mesmo entre os grandes consumidores, sendo que na média menos de 10% dos consumidores residenciais optaram por trocar de fornecedor (The US eletricity industry after 20 years of restruturing – Severin Borestein and James Bushnell). Na Alemanha o fracasso reforma liberalizante vem levando aquele país a um importante processo de reestatização de empresas no setor de distribuição e também na geração, em especial nas fontes renováveis (Public ownweship of the UK energy system – benefits, costs na processes – David Hall).

O que a experiência comprova é que a energia elétrica não é, nem pode ser tratada como uma commodity por diversos motivos: armazenar eletricidade em si é extremamente caro, ela precisa ser produzida na exata quantidade em que é consumida a todo instante, isso torna complexa a superação de crises de escassez, pois nem a importação não é um processo simples. A falta de energia elétrica não afeta apenas a uma parte dos consumidores, mas a todos. A demanda é virtualmente inelástica no curto e médio prazo, ou seja, a demanda praticamente não responde aos estímulos de preço, as pessoas, por pura falta de opção, não vão deixar de consumir energia elétrica por conta de eventuais aumentos na tarifa.

A combinação da inelasticidade da demanda em curto prazo, com a dificuldade de armazenamento e a necessidade de confiabilidade da rede faz o mercado de eletricidade especialmente vulnerável ao exercício do cartel e da manipulação (Eletricity Restruturing: Deregulation or Regulation? – Severin Borestein and James Bushnell).

É bom lembrar que no Brasil o setor elétrico já é majoritariamente privatizado e que existe um Ambiente de Contratação Livre, ou seja, totalmente mercantilizado, significativo e que isso não trouxe melhorias sistêmicas para o conjunto dos consumidores, tanto que desde o início do processo de privatização / mercantilização em 1995, as tarifas para o consumidor residencial aumentaram cerca de 60% acima da inflação e só não houve falta de energia porque as empresas estatais, com destaque para a Eletrobras, atuaram fortemente na expansão do sistema.

Devido à característica fortemente hidráulica do Brasil, com um sistema interligado nacional, os problemas observados em outros países podem acontecer de forma ainda mais acentuada. Hidrelétricas são obras muito mais caras e demoram muito mais para ficar prontas do que termoelétricas, necessitando de longo prazo de retorno dos investimentos, portanto estímulos de preços de curto e médio prazo não servem para incentivar novos investimentos, as condições hidrológicas tampouco são influenciadas pelo preço do kWh do dia. Além disso, se no caso da Califórnia os problemas de mercado ficaram restritos àquele estado, já que nos EUA os sistemas elétricos dos estados são bastante independentes, no Brasil qualquer problema desse tipo teria necessariamente consequências nacionais e possivelmente desastrosas, como a experiência do “apagão” de 2001 demonstra.

A proposta de um novo marco legal para o SEB, contida no PL 1917/15 e no substitutivo divulgado pelo relator, Dep. Fábio Garcia demonstra que ao contrário de estar em harmonia com a tendência internacional para o setor, está em sentido inverso, pois onde não houve a volta da regulamentação e da intervenção pública essas opções estão sendo seriamente debatidas, ou seja, é um projeto fora de moda. Apesar de estar rotulada com o simpático nome de “portabilidade da conta de luz”, a proposta mercantilista em análise no congresso nacional esconde enormes riscos para o consumidor e para a economia nacional como um todo. Ou seja, com a promessa de benefícios individuais para os consumidores pode se estar gestando uma enorme crise para toda a coletividade.

Íkaro Chaves Barreto de Souza, Engenheiro Eletricista da Eletronorte, Diretor do STIUDF

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