O modelo mercantil, escolhido para estruturar o setor elétrico brasileiro já provocou um racionamento, alguns apagões e um ambiente tão incerto, que, cada vez menos se assemelha a um mercado. As regras estão tão indefinidas, que, hoje, não sabemos quantificar a energia que dispomos para compor a oferta de eletricidade no futuro. Não se trata de contabilizar capacidade de ponta em MW, mas sim saber o quanto se pode gerar de energia contínua e garantida em MWh. Essa avaliação, em um sistema hídrico, depende de muitos fatores. Os chamados “contratos iniciais”, demonstrando pouca relação com o mundo real, superestimaram essa disponibilidade. Esse erro provocou, além do imobilismo dos investidores, a decretação do racionamento e o consequente ressarcimento de “prejuízos” às distribuidoras por parte dos consumidores com cifras próximas aos R$ 8 bilhões. Depois da economia forçada, consumidores serem punidos porque economizaram, convenhamos, é de uma extravagância sem par, que desafia qualquer lógica.
A raiz do problema está na tentativa de se impor ao maior sistema hidráulico do mundo, o brasileiro, um modelo que já funciona com dificuldades em sistemas de base térmica. Vide Califórnia, Chile e Argentina. País tropical, clima incerto, afluências variáveis. Estaríamos condenados pela natureza a desconhecer quanta energia podemos contar? Lógico que não. Para isso foram construídos os lagos capazes de armazenar água de vários anos. No ano que chove pouco, usa-se a água de um ano chuvoso armazenada nos reservatórios. Assim, apesar da “entrada” ser incerta, a saída pode ser regular e previsível. Só que essa tranquilidade tem um preço: Não se pode deixar que as “caixas d’água” se esvaziem muito rapidamete, e uma maneira desse indesejável fenômeno acontecer, é não construir novas “caixas d’água” em resposta ao crescimento da demanda. O sistema hidráulico é assim. É necessário manter uma certa capacidade “ociosa” que apenas “parece” não ser necessária em anos chuvosos. É a margem de garantia que o clima tropical exige. Quando o sistema perde essa capacidade de regularização plurianual, começa a vender energia interruptível no lugar de assegurada.
Deixando de lado os prejuízos para a economia e para os consumidores, e nos concentrando exclusivamente no ponto de vista do investidor, essa situação é totalmente incompatível com um ambiente de mercado. Com a capacidade de regularização deteriorada, todas as incertezas do clima, são transferidas aos preços. Desmontado o planejamento e relaxadas as obrigações de investimento, o sistema só sinaliza o curto prazo. Qualquer investidor fica tonto.
Um sistema de geração de energia elétrica de base hidráulica, além da vantagem de gerar energia barata, pode ser tão confiável quanto qualquer outro, mesmo em um país tropical. Ao tentar implantar um sistema de concorrência, o primeiro e principal cuidado do governo deveria ser o de manter a capacidade de regularização plurianual dos reservatórios. Pois, advinhem o que foi feito?
A medida provisória nº 14, tenta transformar em lei, algumas absurdas recomendações do plano de revitalização do setor. Uma delas, a contratação de energia emergencial, além de cara e sem transparência, é a demonstração definitiva da falta de confiança do próprio governo nas soluções da crise energética. Mais do que isso, é evidência de que o sistema não recuperou e nem recuperará sua capacidade de regularização plurianual e portanto continua vendendo energia interruptível como se garantida fosse. Do contrário, para que a energia emergencial? A tarifa já inclui o custo da confiabilidade e, nesse sentido, a taxa extra, sob o nome de encargo de capacidade emergencial, é uma dupla cobrança. O mais grave, é que significa mais uma liberação de compromissos das distribuidoras, que, nos contratos de concessão, se obrigam a fornecer energia contínua para o atendimento da demanda atual e futura. Diga-se de passagem, que, desde 1995, a responsabilidade pela expansão da geração deixou de ser exclusiva das geradoras e passou a ser difusa por todos os agentes, distribuidoras inclusas.
Perguntas sem respostas estão se tornando o lugar comum no setor elétrico. A mais importante continua sendo: Pelas tarifas praticadas, financiamentos do BNDES e tantas outras garantias, será que as estatais não fariam melhor e mais barato?