ENTREVISTA – José Luiz Alquéres – Revista Brasil Nuclear

 

É hora do nuclear ser considerado sem preconceitos

As primeiras relações de José Luiz Alquéres com o setor elétrico datam de 1964, quando ingressou no BNDE. Trabalhando na área de acompanhamento de projetos, ele teve a oportunidade de manter contatos frequentes com representantes do setor elétrico, devido à importância do suprimento de energia para muitos projetos. Engenheiro civil, pela PUC-RJ, e pós-graduado em Planejamento de Expansão em Energia Nuclear, pela Universidade de Chicago e pelo departamento de Energia dos EUA, fez diversos cursos de especialização em gestão do setor elétrico na empresa francesa EDF, na Fundação Getúlio Vargas, na OEA e em outras entidades.

Em 1972, ingressou na Eletrobrás, inicialmente no departamento de Planejamento, passando depois para o departamento de Estudos de Mercado. Transferiu-se para a empresa de energia carioca Light, onde foi diretor-adjunto. De volta à Eletrobrás, como assistente de engenharia da diretoria de Planejamento e Engenharia, assumiu depois a chefia do Grupo Coordenador de Planejamento do Sistema (GCPS).

No biênio 1992-1993, chefiou a Secretaria Nacional de Energia. Assumiu uma diretoria no BNDES no início de1993, que deixou para assumir a presidência da Eletrobrás, no período 1993-1994. Entre 1995 e 1999 foi diretor da Cia. Bozzano Simonsen, período que ocupou a presidência do conselho da Escelsa e alguns conselhos de empresas de energia elétrica e a vice-presidência do Conselho Mundial de Energia. De 2000 a 2004, presidiu a fabricante de turbinas Alstom do Brasil e, de 2006 a 2009, a Light. Também participou dos conselhos de administração da maioria das empresas energéticas do Brasil.

Consultor privado, hoje integra os conselhos de empresas da área financeira e do setor elétrico. Além de uma experiência ímpar, essa trajetória deu-lhe uma visão abrangente do setor elétrico, o que o leva apontar a falta de espírito empresarial e o relaxamento de um planejamento integrado como as raízes dos problemas enfrentados nos últimos tempos. Em entrevista a Vera Dantas, da Brasil Nuclear, ele afirma que as mudanças institucionais realizadas “criaram um sistema muito complexo de se gerir, que não recebe os adequados sinais de preços e ainda que não coloca os diversos órgãos alinhados em relação aos interesses maiores do desenvolvimento sustentável”.

 

O senhor presidiu a Eletrobras entre 1993 e 1994, durante o governo Itamar Franco. Que fatos o senhor destaca nesse período?

 

Esse período correspondeu ao retorno do caráter empresarial do setor elétrico, através de iniciativas como o fim da  equalização tarifária , a valorização das empresas e o equacionamento da conclusão de obras prioritárias em diferentes regiões do país. Conseguimos estabelecer uma tarifa que remunerava adequadamente os investimentos do setor. Promovemos, também, a abertura do capital da Eletrobrás, em uma operação que foi muito bem-sucedida, como mostram os resultados alcançados: o valor em Bolsa cresceu 11 vezes em apenas dois anos – de 2 bilhões de dólares para 22 bilhões de dólares –, o que transformou a Eletrobras na empresa de maior valor de mercado da América Latina, acima da Petrobras e da Vale do Rio Doce, no Brasil, e da Telmex, até então a empresa de maior valor no exterior. Tomamos várias medidas que liberaram a competição no setor elétrico, como, por exemplo, a conclusão pela iniciativa privada de  obras de hidrelétricas iniciadas e paralisadas por Furnas e Eletrosul. Um dos meus últimos atos foi aprovar o reinício das obras de conclusão de Angra 2, equacionando assim a filosofia de continuidade do programa nuclear. Outra iniciativa que destaco na minha gestão foi a conclusão do plano de longo prazo de expansão do setor elétrico, chamado Plano 2015. É importante notar que eu  havia coordenado o  Plano 2010, durante o período em que estive à frente da diretoria de Planejamento de Engenharia da Eletrobras.

 

A Eletrobrás era a responsável pelo planejamento do setor elétrico do país. Hoje, essa função é desempenhada pela EPE. Como o senhor vê essa mudança no perfil da empresa?

 

Criada em 1962, pelo presidente João Goulart, a Eletrobrás, manteve-se em estado meio embrionário até 1965, quando começou a ampliar suas atividades, sob a presidência de Otávio Marcondes Ferraz. Mas foi o engenheiro Mario Bhering, seu sucessor, quem realmente impulsionou a empresa, que passou a atuar em diversas áreas, como as de estudos de inventário do potencial elétrico, realização de projetos básicos e executivos, execução de obras, elaboração do planejamento integrado da expansão do sistema elétrico e, operação do sistema e nacionalização dos fornecimentos e ainda, em questões ambientais.

Essa ampliação das atividades ocorreu gradualmente, assim como a agregação de diversas empresas. Inicialmente, foi incorporada a Cia. Hidrelétrica do São Francisco e, em seguida, Furnas. Foram criadas a Eletrosul e a Eletronorte. Também foram adquiridas as distribuidoras da American Foreign Power, espalhadas pelo Brasil.

Com isso, a Eletrobras se transformou em uma holding do setor. Posteriormente ela ficou responsável pela parte brasileira de Itaipu e pela geração de energia elétrica de origem nuclear. A partir de um determinado momento, ela passou a exercer funções típicas de governo e, também, funções típicas da atividade empresarial. Por serem muito distintas, essas atribuições, em geral, não funcionam bem quando estão juntas. É muito importante que quem fiscaliza não seja a mesma entidade que realiza, da mesma forma que aquele que paga não seja o mesmo que executa. É preciso haver controles cruzados. Eu acompanhei essa evolução no perfil da empresa e, como presidente, procurei dar nitidez a essas atribuições. Mas sempre entendi que funções de governo deveriam permanecer na Eletrobras.

 

Mas isso não aconteceu…

 

Realmente não. A empresa foi esquartejada comprometendo sua capacitação técnica. . Houve a retirada de algumas funções típicas de governo e sua transferência para outras entidades, como é o caso do planejamento do setor elétrico, que foi deslocado para a EPE. Teoricamente, a EPE faz um planejamento integrado, embora saibamos que esse planejamento tem pouca interferência nos planos da Petrobras, por exemplo.

A operação foi transferida para o Operador Nacional do Sistema (ONS) e a câmara de compensação setorial foi para a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Ou seja, houve uma série de mudanças institucionais que criaram um sistema mais complexo de se gerir, e que não coloca, necessariamente, os diversos órgãos alinhados em relação a interesses maiores nacionais.

 

O senhor poderia citar uma consequência prática dessa mudança?

 

O desalinhamento não só provoca crises com torna a sua gestão– como a que estamos assistindo – uma operação altamente complexa, independente da capacidade das pessoas envolvidas. Energia é uma atividade que depende de sistemas. Sistemas dependem de concepções integradas e abrangentes. O que assistimos é uma complexidade operacional grande, resultante do enfoque de cada um procurar a sua racionalidade às custas dos demais. Isso penalizou a exploração de alguns tipos de energia, como é o caso da energia nuclear.

 

A matriz energética atual é uma consequência dessa situação?

 

Sim. A matriz energética desequilibrou-se com a perda da visão de longo prazo,  que passou a ser entendido como irrisórios 5 anos,  com forte detrimento da energia limpa. Paralelamente a isso, houve o abandono dos investimentos em engenharia, em estudos, em inventários e do desenvolvimento da pesquisa em todas as áreas e uma certa falta de respeito em relação aos compromissos com o meio ambiente.

 

Não se pensou no longo prazo…

 

A gestão do longo prazo, que é muito importante no setor elétrico, foi muito descuidada. Além disso, foram ignoradas as enormes alterações decorrentes da introdução da eletrônica no controle e administração das redes elétricas, principalmente no nível da distribuição, onde os smart grids já são uma tendência mundial. Estamos progredindo acanhadamente nesse setor. Eu me lembro que no passado  a Eletrobrás fez investimentos pioneiros, que nos deram prêmios e um reconhecimento mundial. Nós não só perdemos qualidade no nosso planejar como nossa engenharia piorou devido à falta de uma política de apoio às empresas de consultoria e engenharia. O resultado disso é uma matriz desbalanceada e a realização de projetos  hidrelétricos que nem sempre tiram o maior proveito potencial das localizações onde se inserem. Há o predomínio de soluções de curto prazo, como essas térmicas que operam hoje a custos superiores a mil reais por MWh.

 

O que seria, em sua opinião, uma matriz balanceada?

 

Hoje, quando se pensa na matriz energética, é preciso começar a pensar não pelo lado das fontes energéticas, mas pelo lado da estrutura de consumo. É como se o planejamento fosse feito de baixo para cima, e não de cima para baixo. Estão acontecendo muitas mudanças no uso de energia, seja nas edificações, na indústria ou no desenvolvimento de soluções de mobilidade para as cidades. É preciso pensar nas necessidades futuras pelo lado do mercado e não apenas pelo lado da oferta quando só  pensávamos em localizar jazidas de petróleo, de urânio ou aproveitamento de potenciais hidrelétricos. O setor elétrico precisa dominar o conhecimento de todas as possíveis rotas de utilização de energia, uma vez que o uso da energia é que caracteriza o perfil da sociedade que se quer e não uma estrutura de produção concebida em gabinetes.

 

O que fazer, nesse sentido?

 

Deveríamos montar uma estrutura de planejamento voltada para essas questões. Nós demos alguns passos nessa direção desde 1978, quando a Eletrobrás foi presidida por Arnaldo Barbalho, um grande engenheiro. Outra pessoa que deu importante contribuição nesse sentido foi Luis Osvaldo Aranha, que hoje é consultor de Furnas e, é claro, Mario Bhering e Dias Leite. Destaco, também, importantes trabalhos dos professores  José Goldemberg, David Zylbersztajn e Luiz Pinguelli Rosa.

 

A questão da sustentabilidade é importante nesse planejamento?

A sustentabilidade se transformou numa questão básica para a humanidade, passou a ser ingrediente essencial na concepção das soluções energéticas. Estudando muito bem os mercados, adotando uma filosofia de busca do desenvolvimento sustentável, analisando as disponibilidades energéticas nacionais e internacionais e a maneira de inseri-las na matriz econômica brasileira da qual a energética é uma parte, aí sim, nós poderíamos pensar em ter uma matriz equilibrada.

 

Hoje é consenso que uma matriz equilibrada deve contemplar todas as fontes. No caso brasileiro, a energia nuclear tem uma participação muito pequena na matriz energética. Em sua opinião, essa participação deveria ser maior?

 

Eu acho que, no nível dos conhecimentos que temos hoje, a energia nuclear já deveria ter uma participação substancialmente maior na matriz energética brasileira. Mas, isso deve ser alcançado  sem incorrer em alguns erros do passado, especialmente a forma como foi introduzida, o que fez com que fosse sempre olhada de forma atravessada pelo setor elétrico. O Brasil tem cerca de 115 mil MW instalados. Quando chegarmos a 180 mil MW instalados, o que vai acontecer em 15 a 20 anos eu considero que cerca de 30 mil MW deveriam ser de origem nuclear. É um programa ambicioso  o que proponho, o que significa uma expansão de 3 mil MW para 30 mil MW, em um período de 20 anos.

 

O que é preciso fazer para isso?

 

Em primeiro lugar, fazermos um enorme trabalho de divulgação científica em escolas e junto ao grande público sobre a energia nuclear. Existe uma grande ignorância sobre a energia nuclear, e o setor nuclear tem uma grande culpa nisso. O premio Nobel de Economia, Amartya Sen, criou um conceito muito interesse que diz o seguinte: se todas as pessoas dispuserem da mesma informação, haveria uma facilidade maior de convergência em relação às discussões. Trata-se de algo muito simples de enunciar e de entender – a eliminação de assimetrias na informação – , mas muito difícil de praticar, uma vez que a discussão do nuclear é feita entre leigos totais, organizações que defendem facciosamente seus pontos de vista, para um lado ou para o outro, e estudos pseudo-técnicos. Comunicações completamente  “terroristas”  e a exploração indevida de certos acidentes transformaram a energia nuclear em tabu, em várias partes do mundo. Ou o setor nuclear entende que, primeiramente, é necessário educar, informar a sociedade em geral e os tomadores de decisão, em particular, ou não vamos ter energia nuclear. É preciso uma sociedade de tomadores de decisão que tenham o conhecimento e a vontade política de ter a energia nuclear.

 

Além da divulgação, qual é o outro requisito?

 

O segundo ponto no Brasil é equacionar algumas questões constitucionais, que contribuem para dificultar a expansão do setor. A construção e a operação de usinas nucleares não devem ser monopólio da União. Que a União tenha o monopólio de fabricação de elementos combustíveis, a responsabilidade pelo armazenamento dos rejeitos e por um eventual reprocessamento, tudo bem. Mas o governo não é a entidade eficiente para construir  e operar usinas: fazer obras civis e comprar e instalar equipamentos como caldeiras e geradores. Cada vez mais, isso será fonte de vulnerabilidade, corrupção e de sobre custos. Esse aspecto prejudica muito o setor nuclear. Há que se respeitar a Constituição no que diz respeito a certas atividades  do ciclo nuclear como privilégio exclusivo do governo federal, mas essa parte da utilização comercial do combustível nuclear não deve ser assim entendido.

 

Qual deveria ser o modelo adotado?

 

Eu sugiro que se parta para uma acurada seleção de áreas para instalação de três parques nucleares, de 10 mil MW cada um. Essas áreas seriam desapropriadas, desmembradas e excluídas dos estados e municípios  dos quais fazem parte e depois, reconstituídas em territórios nacionais administrados pelas forças armadas. Nesses territórios, que receberiam junto com os estados e municípios parte dos royalties proporcionais a energia gerada, as condições de segurança seriam as maiores possíveis. Cada um desses parques adotaria uma tecnologia comprovadamente bem sucedida, estabelecendo uma competição saudável. Assim, teríamos uma área com tecnologia de origem francesa, outra área com tecnologia americana e uma terceira com tecnologia  coreana ou japonesa. Em relação à tecnologia chinesa, é preciso acompanhar seu desempenho nos próximos 10 anos, tempo necessário para mostrar se alcançou os padrões de qualidade  e segurança necessários para atuar nesses parques nucleares.

 

Quais são as vantagens desse modelo?

 

Teríamos um grande controle nacional do que é tecnologicamente sensível, fomentaríamos o apoio à indústria de componentes nacionais e a escala e a competição contribuiriam para reduzir os custos de implantação e, portanto, os custos de energia. Com isso, teríamos uma matriz em que o componente térmico teria uma participação de cerca de 20% de origem nuclear, reduzindo substancialmente as emissões de carbono e, portanto, contribuindo para a sustentabilidade.

 

Existe algo semelhante no mundo?

 

Quando as usinas nucleares começaram a ser implantadas no mundo, o conhecimento de suas vulnerabilidades específicas era bem menor, o que fez com que fossem localizadas perto dos mercados consumidores, para diminuir o custo de transmissão. Com isso, elas ficaram muito próximas de grandes aglomerações de pessoas. Quando ocorreram problemas, Three Mile Island, Chernobyl e, mais recentemente, Fukushima, houve necessidade de se deslocar uma grande massa de população. Não se pode pensar mais nessa dispersão geográfica como uma opção adequada para o futuro, por mais que estejamos tranquilos quanto à segurança das novas instalações. Esses propostos três polos nucleares combinados ao de Paulo Afonso, Tocantins, Xingu, e Parnaíba, Itaipu e Térmico a gás no Rio de Janeiro e Iguaçu/Uruguai seriam interligados por robustas linhas de transmissão e serviriam a um sistema mais ilhado, menos susceptível a desligamentos em cascata. O Brasil tem condições de ensinar o mundo, mas há que terminar com a politização no preenchimento de cargos nas empresas estatais e valorizarmos a meritocracia.

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