Geografia à venda – Artigo

 

Roberto Pereira D’Araujo – Diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético.

Dada a grave situação fiscal do estado brasileiro, parece que teremos um novo processo de privatizações. O desequilíbrio vem de longe, mas, dada a inércia quanto à eficiência, prioridades e espírito público na gestão do governo, voltamos à década de noventa, quando esse mesmo método privatizou diversas atividades e não resolveu o equilíbrio fiscal do governo. Depois do país ter passado à iniciativa privada 26 empresas que só foram estatais por conta de um outro período histórico, agora, estamos prestes a vender parte da nossa geografia, as usinas hidroelétricas e, apesar disso, continuar com déficit.

O Brasil possui rios classificados como “de planalto”. Em geral, as declividades onde estão as usinas ocorrem entre dois segmentos razoavelmente planos. Portanto, ao se represar esses rios, a tendência natural é a formação de reservatórios que são capazes de armazenar grandes volumes d’água. Assim, as represas não surgiram por visões megalomaníacas ou por obsessão por obras “faraônicas”, como, muitas vezes, o setor foi acusado. Elas são consequência da geografia brasileira.

Distantes dos centros urbanos, o cidadão não percebe a dimensão desses “objetos geográficos”. Usando a nossa Baía da Guanabara como referência, o reservatório da usina de Furnas no Rio Grande (MG) tem uma área equivalente a três Baías. Sobradinho, no Rio S. Francisco (BA) “espelha” a área de dez Baías da Guanabara. Em termos de volume d’água, a usina de Serra da Mesa no Alto Tocantins guarda 54 km3, volume dez vezes maior do que toda a água da Guanabara.

Conseqüência direta da sua extensão, é comum encontrar usinas em sequência no mesmo rio. Apenas no Rio Paraná e seus afluentes estão mais de 30 importantes usinas do sistema. Portanto, a água efluente de uma usina é parte importante da afluência da usina imediatamente a jusante (abaixo) no rio. A diversidade hidrológica de um país longitudinal como o Brasil proporcionou uma gestão integrada desses volumes como se fossem vasos comunicantes. Apesar de serem antigos investimentos públicos, funcionam perfeitamente até hoje.

O Brasil não percebe que essas usinas, feitas para suportar um tipo de desenvolvimento industrial que tornava o Brasil a China do século passado, não exerceu só o papel de produzir energia sustentável a preços razoáveis. Justamente por serem objetos que podem ser vistos do espaço, foram assumindo funções que não são do setor elétrico. A implantação foi traumática para as populações atingidas, mas, mesmo “aos trancos e barrancos” esses lagos exercem hoje um papel decisivo para as regiões onde se encontram. As usinas que estão na lista de privatização, hoje exercem várias funções ligadas à economia regional.

Muito mais poderia ter sido feito. Infelizmente não nos demos conta que uma hidroelétrica não é apenas uma fábrica de quilowatts. A pressa por desenvolver industrialmente no passado e, agora, a visão puramente mercantil agravaram essa ótica limitada.

Hoje, uma verdadeira revolução tecnológica está acontecendo com o advento das placas fotovoltaicas. Agora, a humanidade viabiliza uma forma de gerar energia sem o uso de energia cinética. Portanto, imaginem o potencial de geração de energia que “dorme” sobre a superfície desses lagos. Uma usina fotovoltaica que flutue sobre uma parte dos reservatórios não precisa de um novo sistema de transmissão, pois pode usar o que já está construído. Além disso, a parte coberta sofrerá menos evaporação o que significa um pouco mais de litros de água para gerar energia ou para qualquer outro uso.

As turbinas e seus rios e lagos não são objetos destacáveis. Se quisermos aproveitar o potencial dessa geografia é bom refletir. Decisões por medidas provisórias podem traçar definitivamente piores futuros. Apesar das intenções do governo Trump, os Estados Unidos têm suas maiores hidroelétricas nas mãos do exército americano. Usinas norueguesas são todas estatais. Vender ativos públicos não vai consertar o estado. Vai só enfraquecê-lo, mantê-lo caro e reduzi-lo ao peso morto.

 

 

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