GSF – Um caso para Sherlock Holmes – Artigo

Roberto Pereira D’Araujo

No Brasil atual é fácil se deparar com situações que persistem apesar de serem verdadeiros crimes. Muitos são óbvios e estão visíveis para todos. Pinço os exemplos da destruição do sistema de saúde pública, a corrupção em malas de dinheiro em espécie e, para terminar, o anedótico roubo de vigas de um elevado no Rio de Janeiro.

No primeiro exemplo, pessoas morrem, no segundo, a receita federal parece estar sempre distraída e, no terceiro, o objeto roubado bateu todos os recordes de furtos de toneladas de aço.

Vamos imaginar que o Brasil tenha atraído a atenção do famoso Sherlock Holmes, por seus absurdos misteriosos. Um deles se esconde sob um termo técnico, Generating Scaling Factor (GSF), e, por isso, Mr. Holmes ficou interessado. O termo, apesar do idioma, é principalmente associado a problemas no Brasil!  A má notícia é que vai parar nas nossas contas de luz dos brasileiros.

Sherlock começa descobrindo que o GSF é o déficit de geração de usinas hidráulicas. É como se um dono de usina hidroelétrica vendesse energia e não pudesse gerá-la. Teria que comprar de outra usina e entregar a quem comprou.

  • Well, it seems ok!

Mas o detetive descobriu que só seria simples assim se esse proprietário fosse quem decidisse a geração da usina e a quantidade que ela pode gerar com um risco baixo e controlável, que aqui no Brasil ganhou o nome de Garantia Física (GF).

  • Do you believe Watson?! The “owner” não decide nenhum dos dois valores!

O sistema elétrico brasileiro é diferente dos outros. Aqui, usinas não podem decidir sozinhas o quanto querem gerar porque o sistema integrado tem uma lógica global que pode exigir gerações específicas que melhoram a performance do todo. Um definitivo exemplo é o fluxo de energia que é trocado entre a região sul e sudeste através das longas linhas de transmissão. Quando uma das regiões envia para a outra cerca de 2.000 MW médios, é como se uma usina hidroelétrica de 1.000 MW estivesse sendo transferida por milhares de km através da rede. Quando o Sul manda energia para o Sudeste, as usinas do Sudeste diminuem a geração e passam a guardar água. Portanto, usinas não podem decidir a sua geração. Nem as térmicas têm essa liberdade, pois há períodos onde a hidrologia favorável dispensa essa energia cara.

  • I’m amazed by this singularity! No other system has this connectivity- Sherlock entendeu o problema.

Investigando, descobriu que a estratégia foi formar um “hydro club”. Quando uma usina gera acima da GF (que ele vai investigar adiante), ela cede esse excesso para as outras que diminuíram sua geração. Chama-se mecanismo de realocação de energia (MRE) e é uma conta apenas financeira.

  • Watson, it’s simply a cooperative arrangement!

Mas Sherlock viu que o maior problema é que esse valor GF não está em nenhuma especificação técnica de nenhuma usina. Ele descobre que é um número que advém do sistema total. How, he ask himself?

Suponha que estejamos em 2003, 15 anos atrás. Como a demanda por energia cresce a uma taxa de aproximadamente 3% ao ano, o governo tem que identificar projetos, imaginá-los começando a operar, simular essa operação no computador e calcular quanto o sistema interligado garante de energia para atender essa demanda crescente. Eles dão o nome de “carga crítica”.

Como é que decidem esse valor, dear brazilians?

Adotando um critério, por exemplo, o risco de racionamento. No passado esse risco era de 5%. Se, na simulação, ele ultrapassasse os 5%, era sinal de que, ou novas usinas têm que ser acrescidas, ou teriam que entrar para operar mais cedo. Alterando a programação de entrada das usinas no futuro, o modelo faz o risco convergir para os 5%. Wow, that’s sophisticated!

Agora, de posse do valor total, passam a fazer outra simulação e determinam a “cota-parte” de cada usina. Sherlock viu que os critérios não eram condizentes com o anterior, mas diante dos outros problemas, resolveu ir adiante. Ele viu que térmicas e hidráulicas ganham uma espécie de “responsabilidade” individualizada de uma grandeza coletiva.

  • Watson, they are individualizing the collective! Amazing!

Portanto, coletando as evidências:

  • Os números gerados de GF são obtidos de uma simulação do futuro.
  • Esse futuro pode não ocorrer exatamente como previsto,
  • Como os projetos têm que ir a leilão, a GF não pode ser mudada.
  • Portanto, a GF de uma usina é algo que se “compra” no leilão!
  • Será que é só esse o problema?

Mas, investigando mais, percebeu a fragilidade desse parâmetro, pois o critério da simulação mudou radicalmente. A partir de 2008 passou-se a adotar a igualdade de custos marginais de operação e expansão. A ideia era imaginar que, se um sistema tem um custo de operação mais alto do que o custo de construir e operar uma nova usina, essa usina deve ser incluída na simulação. Se o custo for menor do que a nova usina, ela não precisa ser adotada.

Só que esse custo marginal de expansão (nova usina) é uma média (também subjetiva) de várias opções e variou bastante ao longo do tempo, se reduzindo principalmente com a consideração das eólicas e dos grandes projetos de usinas do rio Madeira, cujos preços foram subavaliados.

  • Watson, em comparação com o critério anterior, a diferença é “huge”. O tal risco de racionamento passou de 5% para menos de 1%! Evidentemente, a expansão imaginada em 2003 é completamente diferente da imaginada depois de 2008.
  • O correto seria rever todas as GF dadas anteriormente, Mr. Holmes!
  • Eles não tiveram coragem de enfrentar os interesses comercias dos donos das usinas que pagaram pela GF anunciada. I’m suspicious about the use of another “little way”, o jeitinho.

Examinando mais profundamente, Mr. Holmes descobriu outras coisas muito estranhas. O histórico de afluências do país tem 80 anos. Portanto, temos registros de vazões médias de 80 janeiros, 80 fevereiros e assim por diante.

Mas, olhando números de um clima tropical Mr. Holmes percebe que essas vazões são muito variáveis. Por exemplo, essas vazões transformadas em energia em Janeiro no sudeste tem uma média de 64.000 MW médios. Mas o desvio padrão ultrapassa 16.000 MW médios.

  • Watson, how to be sure sobre qualquer previsão de afluências, quando o desvio é 25% do valor? Será que a média não é menor?

É evidente que, com essa amostra de 80 anos, o nível de desconfiança é alto. Analogamente às margens de erro nas pesquisas eleitorais, não se pode ter segurança em qualquer medida estatística.

E se tivéssemos 2.000 anos? Bem, com essa amostra seria possível ter mais confiança em qualquer parâmetro estatístico.

Guess what my dear Watson! Através de um modelo matemático, a amostra de 80 anos foi estendida para 2.000 anos!

  • They use synthetic inflows that should occur when Christ was alive!

Esse modelo foi totalmente inútil? Não! Na realidade foram verificadas algumas inconsistências nos dados e consertados, mas é impossível dizer que eles são representativos de rios brasileiros em outras eras. Esse foi o jeitinho que foi dado para que as diversas operações e projeções de energia afluente tivessem alguma significância estatística.

Mr Holmes percebeu que aqueles técnicos que conhecem o sistema sabiam que a GF é um parâmetro frágil só pelas subjetividades inerentes à subjetiva metodologia. Uma GF de 800 MW médios pode perfeitamente ser reduzida para 700 MW médios e ainda estar dentro da margem de erro do modelo.

Mas o detetive está pasmo, pois os indícios de malfeitos não terminam. Ele viu reportagens sobre o Rio S. Francisco e lembrou que foi dito que, há pelo menos uma década, ele está cada vez mais seco.

  • Holmes, se fossemos considerar que aquelas afluências históricas não vão mais ocorrer, as GF das usinas do S. Francisco não podem ser mais as que estão mantidas! – disse Watson.
  • Worse, dear Watson! Como o sistema é interligado, essa fragilidade do S. Francisco afeta todo o sistema. Portanto, só por esse aspecto as GF das usinas estão todas superavaliadas!

Sherlock reparou que, desprezado, um outro número, esse confiável e constante das máquinas esteve escondido numa gaveta. Era a potência da usina. Essa não varia nem em climas tropicais.

  • Elementar meu caro Watson, o modelo brasileiro sabe, ou sempre soube que, num clima tropical, e energia advinda da natureza é muito variável. Portanto, o risco é alto.
  • Mr Holmes, pode-se avaliar a energia para menos, mas também para mais?
  • Ambas situações já foram verificadas. No primeiro caso, a decisão foi jogar o custo para o consumidor. O erro é do sistema que se meteu a fazer algo impossível, mas, numa sociedade que convive com absurdos, joga-se o custo para ela. Assim a superavaliação das GF gerou o encargo de energia de reserva que já somou R$ 150 bilhões desde 2008.
  • What? O que é isso chief? E quando se erra para mais?
  • O sistema tem mais energia do que a necessária, seja por sobra estrutural ou por conjuntural, fruto de afluências favoráveis. Well, then, the democracy vanishes! O ambiente chamado “free Market dives in cheap Energy” e o resto paga.

E ai Sherlock vislumbra mais um absurdo. As hidráulicas, na maior parte do tempo geraram acima de sua GF, o saldo derramou energia barata no mercado de curto prazo. Isso significa que quando o inverso ocorre, déficit, elas não acumularam recursos para paga-lo. And then, mais uma vez, quem vai pagar é o consumidor. Brazilian consumers will face the Generating Scaling Factor!

Com essa, até Sherlock desiste:

– Elementar meu caro Watson. Nobody has the full information in this country. We are losing our time.

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