Há qualquer coisa nos fios além da corrente elétrica – Artigo

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Roberto Pereira d’Araujo – Diretor do ILUMINA – Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético.

Vou convocar Aparício Torelly, o Barão de Itararé, e pedir emprestado a sua famosa frase. “Há qualquer coisa no ar além dos aviões de carreira”. Um sentimento de que há muito não sendo dito e sequer percebido é o que me ocorre ao tratar dos problemas do setor elétrico brasileiro.

O Tribunal de Contas da União acaba de publicar um relatório de auditoria sobre a famosa medida provisória 579 e seus efeitos sobre a Conta de Desenvolvimento Energético e no Sistema Elétrico Brasileiro[1].

Textualmente, tratou-se da seguinte questão:

“As concessões com vencimento entre 2015 e 2017 representavam 20% de todo o parque gerador, 67% do sistema de transmissão e 35% da distribuição. Em 11/9/2012, houve a renovação antecipada, em até cinco anos, dessas concessões, por meio da Medida Provisória (MP) nº 579/2012, com o intuito de permitir a antecipação da captura do benefício da amortização dos investimentos em favor dos consumidores finais”.

O aumento da tarifa brasileira, desde 1995, ano que marca alterações estruturais no modelo implantado, chega a 80% acima da inflação. O governo, após muita pressão da indústria, resolve enfrentar o problema de forma precipitada e equivocada. O efeito de amortizações de usinas e linhas antigas seria a única ou a principal razão do insistente aumento tarifário? Será que não tínhamos outras pistas para explicar o aumento?

Na verdade, havia uma lista de razões para o encarecimento. Eis algumas:

Aumentos de mais de 30% para as distribuidoras compensando a queda de demanda decorrente do racionamento pós 2002. Parcelas da conta de luz indexadas ao IGP-M. Criação de uma energia “de reserva”, apesar de termos uma energia que se diz “assegurada”. Custos fixos nas contas das distribuidoras majorados como se fossem proporcionais ao mercado. (Apontado pelo próprio TCU). Leilões genéricos que resultaram na contratação de grande quantidade de térmicas, a maioria a óleo e diesel. Aumento do custo de transmissão. (R$/km – +100%). Uso de geração térmica não prevista em função de óticas diferentes entre operação e planejamento. Grandes perdas elétricas na distribuição.

 Mas já que o governo parece só ver os aviões de carreira no ar, quanto se consegue reduzir a tarifa com essa “captura”?

Aqui cito outra vez o Barão: “Tudo seria fácil se não fossem as dificuldades”.

A primeira pergunta que deveria surgir para alguém com um mínimo de curiosidade, seria saber se essa medida teria ferramental suficiente e adequado para atacar esse primeiro problema que, misteriosamente, parece passar despercebido.

Ora, segundo dados da ANEEL, para o ano de 2011, antes da intervenção, numa conta média, a energia adquirida respondia por cerca de 30% e a transmissão algo como 6% do total. Como 20% do parque gerador estavam aptos a sofrer a intervenção e nem toda energia vem de hidráulicas (cerca de 80%), uma simples multiplicação (20% x 30% x 80%) nos diria que mesmo se a energia das usinas fosse gratuita, o máximo de redução conseguido seria 4,8%.

A transmissão foi atingida amplamente. Cerca de 70% entraram no alvo da MP 579. Portanto, 70% x 6% nos dariam mais 4,2% de redução. Ou seja, até aqui, o limite superior seria 9%.

Como foi conseguido os 16% no residencial e 20% no industrial? Simples: Houve uma maciça transferência de encargos do bolso do consumidor para o bolso do contribuinte. Na realidade não houve redução de custos. O que era tarifa passou a ser imposto.

A arrecadação da Conta de Consumo de Combustíveis (CCC) destinada a subsidiar a geração fóssil da região Norte passou a ser suportado pela Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). O encargo Reserva Global de Reversão (RGR), que financiava a expansão e formava o fundo para cobrir os investimentos não amortizados, deixou de ser cobrado de distribuidoras e de novos empreendimentos de transmissão e concessão prorrogados ou licitados. As concessões não renovadas, no entanto, continuam recolhendo esse encargo. A CDE teve sua cobrança reduzida em 75%.

Resumindo, mesmo com cálculos aproximados, fica claro que as reduções prometidas sem atacar as outras causas iriam exigir uma enorme compressão de tarifas na geração e transmissão. Numa linguagem “técnica”, a ANEEL impõe preços com a unidade R$/kW.ano, ou seja, quanto cada usina recebe por disponibilizar cada kW por um ano[2]. Nenhum consumidor consegue traduzir isso e continua vendo apenas os “aviões de carreira”.

Como a Eletrobras foi a única que aceitou a imposição, na tabela abaixo vemos a maior parte das suas usinas, sua potência, a tarifa que recebeu em R$/kW.ano, sua Garantia Física em MW médios e a tradução do preço da energia em R$/MWh. Na linha “Total”, aparece a média de tarifa ponderada pela garantia física. Esse é provavelmente um dos erros do relatório que diz que “houve alocação de cotas de energia resultantes das geradoras que aderiram à renovação, ao preço médio de R$ 33/MWh, em vez dos R$ 95/MWh até então vigentes”.

Para usinas antigas, seria bastante razoável que uma tarifa de R$ 95/MWh se reduzisse para 34% desse valor. Entretanto, a redução real foi violenta. A tarifa imposta é 92% menor do que a vigente antes da intervenção. Isso evidencia que, hoje, essas usinas não cobrem seus dispêndios, não participam de nenhum outro custo da empresa e, principalmente, não geram recursos para novos investimentos.

Quem tiver a curiosidade, pode acessar a palestra do atual diretor da Eletrobrás na internet (www.eletrobras.com.br  – Informações aos investidores) e verificar que, agora, a empresa está sendo obrigada a gastos nessas usinas sem ter certeza se serão reconhecidos pela ANEEL. Segundo citação nessa palestra, cerca de R$ 130 milhões já se encontram no “limbo”.

Em temos internacionais, o Brasil está na esdrúxula situação de ter 8.000 MW de usinas, um pouco mais da metade de Itaipu, sendo obrigadas a vender energia por R$ 7,67/MWh, pouco mais de US$ 3/MWh. Mais bizarrice pode ser verificada quando a própria ANEEL, através da consulta pública sobre mudanças no PLD[3], afirma que “A percepção em relação ao PLD_min (R$ 15,62) é de que o valor não expressa o real custo de operação das usinas, ou seja, é inferior ao que se julga necessário para manutenção e operação dos empreendimentos”.

Mais uma do Barão: “Não é triste mudar de ideias, triste é não ter ideias para mudar”.

Perca um tempinho e dê uma olhada na sua conta de luz. O consumidor brasileiro deve estar pagando cerca de R$ 200/MWh (só a energia). Agora imagine que, para chegar a esse valor, alto em qualquer comparação internacional, algumas usinas (menos de 10% delas) entregam o MWh a 4% desse custo final! Alguém conhece algum outro sistema que produz o mesmo produto (MWh) por valores tão dispares? Não? Pois o Brasil inaugurou essa bizarrice.

O relatório do TCU não toca nesses “vultos” entre os “aviões de carreira”, mas, incisivo, relata a situação quase falimentar do setor elétrico brasileiro. O estrago construído joga nas costas do consumidor e do contribuinte uma dívida de R$ 61 bilhões, dinheiro suficiente para construir três usinas como Belo Monte! Essa conta ainda é parcial, pois nem a crise está resolvida e nem estão contabilizados os efeitos indiretos das ineficazes intervenções do governo, tais como perda de valor da Eletrobras e das empresas do setor.

O relatório não economiza números e adjetivos. Classifica a medida provisória de 2012 como “precipitada”, repleta de “equívocos e fragilidades” e responsável pela criação de “passivos públicos”, pois não satisfeita com os aumentos tarifários, o tesouro tem alocado parcelas significativas para tentar estancar as perdas.

O que é perigoso é que essa falta de reação mostra uma sociedade muito mal informada sobre a realidade. Enfim, é muito estranho que justamente o tema que tem a marca registrada da presidente esteja esquecido nos debates e até nas entrevistas.

Termino com outra frase do Barão: “De onde menos se espera, daí é que não sai nada”.

 


 

[1] TC 011.223/2014-6

[2] Nota Técnica 38512012-SER/SRG/ANEEL

[3] Nota Técnica nº 86/2014-SEM/ANEEL, de 02/09/2014.

 

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