Memória Necessária

Vamos relembrar o engenheiro Duarte da Paz. Esquecido pela maioria dos antigos empregados do setor elétrico. Duarte da Paz, verbalmente e, de preferência, por escrito, apregoou conceitos pouco ortodoxos desde que, jovem recém formado foi admitido nas Centrais Elétricas de Grutas. Quem o bem conheceu foi o advogado e escritor mineiro Astolfo Meyer Brandão. Havia parentesco entre os dois lá pelos lados da Mantiqueira. Contudo, Duarte não tinha nada de mineiro. Nunca jogou na defensiva e, sobretudo, era muito impaciente. Dizia que as ações gerenciais e técnicas deveriam ser tocadas “depressa mas não com pressa”. Fazia diferença radical entre esses dois conceitos. Em Pindorama era preciso tocar a coisas depressa, dizia.


Uma pesquisa nos arquivos da empresa, nos relatórios, memorandos formais e informais, cartas, bilhetes, intervenções gravadas e até filmadas, ajudariam a entender porque Duarte desagradava os omissos permanentes, os gerentes autoritários, as “holdings” totalitárias, os que cultuavam a falta de imaginação, os oportunistas históricos dos tempos da ditadura e depois dela, os “protegidos” pelas grandes empreiteiras e aqueles que, por ignorância ou má fé, eram possuídos pela síndrome pindorâmica da servidão voluntária aos interesses contrários a busca da soberania e autonomia do país e da importância da atuação das empresas públicas nessa busca.


No final dos anos sessenta Duarte entrou em choque com alguns dos dirigentes de Grutas que afirmavam que ferramentas de computação para análise e estudos de sistemas de geração e transmissão, cada vez mais necessários ao planejamento, bastavam ser adquiridos de consultores estrangeiros. O estranho dessa ideologia era o fato do engenheiro John Reginald, presidente da empresa, apregoar cada vez com maior intensidade, posições opostas a qualquer servidão voluntária. Explica-se: John Reginald admirava muito os americanos, era até conservador demais, porém não conseguiu fazer entender os outros dirigentes seus contemporâneos que o bom seria imitar as boas coisas que levaram os E.U. ao seu desenvolvimento. Enfim, podia ser definido como conservador modernizante. Mais velho, sem atribuições formais no setor elétrico, mudou de opinião sobre a importância das associações de empregados das empresas, as mesmas cuja existência teria proibido anos antes. John Reginald orgulhava-se, já aposentado, apregoando como sua maior decisão gerencial a criação do Curso de Engenharia de Sistemas Elétricos, inaugurado em 1967, no qual foram formados com excelência dezenas de mestres de alto nível em engenharia elétrica do setor, inclusive da empresa “holding” que, nesse aspecto, como em muitos outros teve que ser empurrada por John Reginald. Essa presença e influência sobre a “holding” deixou seqüelas. A jovem geração de gerentes, engenheiros e amanuenses financeiros, que iniciaram suas carreiras na “holding” nos anos sessenta, nunca perdoaram. Esperaram na esquina da história para retaliar totalitariamente sobre Grutas nos anos setenta, oitenta e até hoje.
Quanto a John Reginald, o quarto governo militar de Pindorama resolveu excluí-lo de qualquer influência maior sobre a política energética. Era demasiadamente competente e ético para caber nos planos do ministro Sukiaki, das minas e energia.


Foi naquele debate de idéias que Duarte da Paz iniciou seu desgaste histórico. Culminou-o com sua liderança de um pequeno grupo, vacinado contra a servidão voluntária, que decidiu no final dos anos setenta, com alguns dos gerentes e técnicos do laboratório setorial de pesquisa e desenvolvimento, viabilizar sistemas de controle de alto conteúdo tecnológico no país. Houve ranger de dentes e resistência céptica dentro de Grutas e na “holding”. No final dos anos oitenta a tese ousada ficou comprovada. Mesmo assim, Duarte da Paz já previa, em 1988, que os que ousaram seriam derrotados e punidos por terem ousado.


Duarte diagnosticou com razoável precisão o lento porém inexorável declínio cultural dos sucessivos dirigentes de Centrais Elétricas de Grutas depois da defenestração de John Reginald em 1974. Chamou o processo de “mediocrização”. Melhor teria sido ter dado uma definição mais completa ao processo: ” mediocrização-fisiológica-ética-cultural. Em 1990, a horda de dirigentes alcapônicos que invadiu Grutas por dois anos, teria dado o golpe final e mortal se não fosse pela surpreendente durabilidade da estrutura e das influências deixadas por John Reginald. Entretanto, o cenário, salvo por alguns anticorpos residuais, estava preparado para o ataque devastador de Pefelisto, o vampiro renascido de Udefisto, e de seus aliados alados tucanos.


A tese de Duarte fez dentes rangerem até nas facções militantes de oposição de esquerda. Certamente naquelas facções que George Orwell tão bem definiu como tendo a íntima e plena convicção de que nada pode ser mudado ou possuídas por hábitos totalitários de pensamento e de ação que, com brutal repressão, inviabilizaram a oportunidade, no século, de busca de utopia libertária.


Em entrevista recente o filósofo francês Jacques Bouveresse disse ao entrevistador : “Isso é para você ver como o mundo filosófico vive de preconceitos. Não se tem idéia da força do preconceito naquela que deveria ser a disciplina crítica por excelência” . Na mesma entrevista, momentos antes, Bouveresse contou a discussão que tinha tido com Althusser sobre Wittgenstein. Ouvira de Althusser o seguinte: ” Wittgenstein tenta substituir os verdadeiros problemas da filosofia por simples problema de análise lingüística a fim de beneficiar o sistema capitalista”. Perguntará o leitor deste editorial: o que essa história tem a ver as Centrais Elétricas de Grutas e sua historia em direção a programada canibalização e privatização ?


Ora, se “não se tem idéia da força do preconceito” ­ ou, digamos, do que em Pindorama poderia ser definido como lixo intelectual fisiológico – no mundo dos filósofos e, filósofo famoso e conceituado do século XX ter sido capaz de propalar conceito como o narrado na entrevista de Bouveresse (e não temos porque não acreditar no que o entrevistado contou ao caderno ‘Mais’ da Folha de S.Paulo), não nos surpreenderíamos jamais com o comportamento dos personagens no mundo dos economistas de Pindorama e de certo número, não pequeno, de cientistas sociais do mesmo país, liderados pelo sociólogo eleito por dois mandatos para presidência do país.


Grutas mereceria destino melhor do que aquele programado pelos tucanos alados e por Pefelisto o vampiro renascido. Restaurada como grande empresa realmente Pública e Cidadã, íntegra, gerencialmente e tecnicamente exemplar, com atividades domésticas e internacionais viabilizadas pela sua crescente “performance” econômico-financeira. Não só nas áreas de geração e transmissão de eletricidade, mas também presente e atuante como polarizadora de desenvolvimento da tecnologia e da engenharia de Pindorama, proteção ao meio ambiente, sem exclusão de sua colaboração com uma ação permanente na luta pela erradicação da pobreza, como se o sonho de John Reginald fosse aprimorado pelo sonho de Betinho.

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