Muito além da matriz poluída


Muito além da poluição e dos ventos



Causando certa surpresa em alguns, o Brasil, líder mundial incontestável dos recursos hídricos, apesar dos maus tratos, faz uma inédita expansão à base de usinas térmicas. E não são usinas modernas e menos poluentes. São as velhas usinas a óleo combustível e carvão. Mas, como esse foi o resultado de um leilão, supostamente, em qualquer sistema com um mínimo de lógica, estão escolhidas as melhores e mais baratas tecnologias, certo? Errado! Não no sistema brasileiro.



Para entender esse contra-senso, é preciso ir muito além da questão da matriz poluída. É preciso uma reflexão sobre o atual modelo mercantil do setor. Na realidade, a essência de modelo adotado pelo governo Lula não difere muito do desastroso sistema FHC. Ainda estamos querendo imitar os mercados de base térmica dos países desenvolvidos. Em parte, a responsabilidade dos leilões poluidores está na péssima e complicada adaptação mercantil da realidade brasileira.



Recentemente estive num seminário onde assisti a uma palestra da Câmara de Comercialização de Energia (CCEE) comparando os mercados dos principais países europeus com o brasileiro. A obviedade mais importante foi a admissão de que, em todos os mercados visitados, o que se vendia era energia mesmo! Ou seja, a um contrato correspondia a um despacho físico. Situação completamente distinta do caso brasileiro!! Ora, o que passa como apenas um detalhe na exposição, na realidade, é o cerne da questão! O mercado de energia brasileiro está assentado sobre certificados de energia fornecidos antecipadamente por um “cartório”. Isso é feito através de metodologia tão complexa e hermética que é incompreensível para imensa maioria da sociedade brasileira. Quando algum investidor vende energia no Brasil não está comercializando a sua própria, mas sim uma parcela do total do sistema a ele atribuída. Como? Com fórmulas que fazem inveja à mecânica quântica!



Em 2003, o grupo que começou a discutir as alterações no modelo alertou para a virtualidade do sistema de “certificados de energia” que somos obrigados a adotar para mimetizar o sistema inglês. Quando surgem essas incoerências no nosso sistema, parece que, mesmo os iniciados, esqueceram que a energia assegurada, base de todo o sistema mercantil brasileiro, é uma peça de ficção. Chega a ser bizarra a crença de que tal calculeira não resulte num sistema confuso, custoso e arriscado.



Os certificados energéticos, denominados energia assegurada, não são números encontrados nos manuais de operação das máquinas ou numa placa. São calculados em função de uma possível estratégia de operação no futuro 15 anos à frente! Dependem de um misterioso número, o custo marginal de operação (CMO) que, por sua vez, depende de parâmetros no mínimo discutíveis, tais como o custo do déficit e a taxa de desconto do futuro. Os certificados estão sujeitos a uma simulação da operação futura e o “ponderador” da importância de cada usina é o CMO, variável aleatória gerada através de complexa metodologia. Além disso, mudem os dados básicos de 2000 séries sintéticas para histórico, outros resultados. Outro custo do déficit? Outros resultados! A taxa de desconto mudou? Outros resultados!!



Qualquer mudança nos cálculos, por menor que seja, tem que ser homologada pela ANEEL e geralmente gera conflitos, uma vez que afeta a questão comercial. Não bastassem esses problemas, as regras operativas assumidas nessa certificação não são as adotadas pelo operador nacional do sistema! Na realidade, se essas regras estivessem sendo totalmente “simuladas”, a garantia do sistema seria menor. Assim, na hora dos leilões, vendem-se garantias que, na realidade, não existem.



Voltando às térmicas, ganham os leilões não as usinas de geração unitária mais barata, mas sim as de menor “índice custo benefício”. O mágico ICB, que também depende do certificado de energia assegurada, repete a confusa conta onde o volátil CMO é a principal variável. Resultado? Imaginem duas térmicas, uma com custo operacional o dobro da outra. Na Inglaterra, venceria a mais barata. Mas no nosso mundo virtual, como, na realidade há uma “importância” da geração dada pelo CMO, as mais caras “valem” mais. Se as mais baratas tiverem inflexibilidade, são facilmente derrotadas. Está nesse mimetismo, parte da responsabilidade na sujeira na matriz. Por exemplo, as usinas eólicas, podem ter quase o mesmo padrão médio de geração da complementação térmica, mas, por não usarem combustível, não entram nessa valoração virtual.



A verdade é que, num sistema geração-transmissão com claras características de monopólio natural como o nosso, resolveram dividir as tarefas. Quem planeja, não comercializa e não opera. Quem comercializa, nem planeja e nem opera. Quem opera, nem comercializa e nem planeja! Conceitualmente, há na base do modelo a frágil hipótese de que essas atividades são independentes, tal qual nos sistemas de base térmica. Só que no Brasil, essa hipótese é extremamente falha, haja vista as muitas críticas feitas por agentes de mercado às decisões do ONS. Na realidade, são 3 organizações (CCEE, EPE e ONS) que fazem coisas que se afetam mutuamente, mas agem como se nada estivesse acontecendo.



E assim, a nossa maior riqueza, onde somos líderes mundiais, vai ficando tão cara quanto a energia do Japão, que não tem nem petróleo e nem caudalosos rios. A culpa é do câmbio, dirão alguns! Ledo engano. Para que a tarifa brasileira sem imposto (!) fosse equivalente à tarifa canadense ou norueguesa com imposto, o US$ teria que valer R$ 4,50!



Havia outra solução, lógico! Contratos de capacidade para todas as usinas e um comprador único que planejaria, operaria e comercializaria a energia do singular sistema brasileiro. Estudar a matriz adequada para o Brasil seria a principal tarefa desse planejador. Nada de deixar a decisão para “o mercado” através de ICB. Todas as discrepâncias metodológicas sairiam do cenário de mercado, pois a grandeza comercializada seria o MW, que se lê nas placas das usinas e não um possível e futuro MWh atribuído a usina. Seria semelhante a um “leasing”, que geraria receita garantida, constante e com riscos menores para o investidor.



Porque não foi adotado e nem debatido? Provavelmente porque os gestores acharam que o “mercado” não iria gostar. Ou porque seria uma “estatização”, o que, de acordo com a moda mercantil, significaria um “retrocesso” abominável, apesar dos contra exemplos dos sistemas semelhantes ao nosso. Como não se sabia, a não ser para distribuir cargos, o governo Lula também parece ter uma relação madrasta com suas estatais! À elas, os leilões liquidação, a descontratação de R$ 60/MWh para dar lugar a R$ 130/MWh, privado, claro, as parcerias minoritárias, etc…



Portanto, apesar de estar muito descrente de qualquer mudança conceitual, acho que a discussão deveria sempre ultrapassar em muito a questão dos gases efeito estufa.



Roberto Pereira d’Araujo



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