O excedente que era déficit

Parece não haver dúvidas que estamos em racionamento de energia elétrica. Ainda não tivemos apagões pois se optou por “racionalizar” o consumo, através da ameaça aos consumidores, mas não há absolutamente nenhuma garantia de que não fiquemos no escuro.


Se tudo der certo, chegaremos a outubro com os reservatórios no mais baixo nível da história do setor elétrico brasileiro. Nessa trajetória, duplamente dependente de eventos probabilísticos (consumo e regime de chuvas), o risco de déficit é extremamente alto. Se esse índice fosse público (como deveria ser), não me surpreenderiam percentuais da ordem de 80%.


Nesse cenário, é espantoso que “excedentes” estejam sendo vendidos no MAE a preços dez vezes superiores aos preços de geração. Essa “festa” é um absurdo que evidencia a fragilidade teórica e a inconveniência do modelo de mercado para o sistema hidroelétrico brasileiro.


Imaginem dois consumidores de energia elétrica: Um consumidor residencial e um grande consumidor, este último habilitado a vender “excedentes” no MAE.


O consumidor residencial, ao economizar 20% de energia em um cenário de escassez de recursos hídricos, é um fornecedor de garantia ao mercado. Abrindo mão de um percentual de seu consumo, ele diminui o risco de déficit do sistema como um todo. Um consumidor é um grão de areia, mas imaginem esse efeito todo o setor residencial. Proibido de vender excedentes no atrativo Mercado Atacadista, ele paga sua conta com uma das mais altas tarifas do mundo, sendo que, se não conseguir economizar os 20%, ainda pagará sobretaxa. Resumindo: Paga e diminui o risco dos outros. É um “fornecedor” de garantia.


O grande consumidor do MAE vende por R$ 684 cada MWh de seu contrato para outro consumidor. Como a quantia de energia apenas trocou de dono, não será economizada. Não havendo redução de consumo, o risco de déficit não diminui. Resumindo: Esse consumidor ganha e não contribui para a redução do risco. Na verdade, ele é um consumidor de garantia.


Mas o grande consumidor já economizou seus 15%, dirão os “analistas” do MAE. Ele está vendendo a parcela de energia já descontada sua cota de economia. Ora, se ele está vendendo, é porque, ou não precisava, ou porque o que vai ganhar com a venda é tão absurdamente alto, que vale a pena parar sua produção. Como o futuro a Deus pertence e ninguém sabe quais serão as condições de atendimento, lá no fundo do poço, pode-se estar vendendo e lucrando com uma energia que poderá significar o “apagão” daquele consumidor residencial que pagou e se sacrificou para consumir menos e contribuir para diminuir o risco de déficit! Ou seja: Nesse ambiente de incertezas, qual a garantia de que essa energia é realmente excedente? Qual a certeza de que esse ganho não significará o sacrifício de outro consumidor?


Tem mais: Se o comprador do falso excedente for uma distribuidora, e por azar, justamente aquela que vende energia para o consumidor residencial, ainda vai querer aumentar sua tarifa! Se os consumidores residenciais perceberem o significado dessa armadilha, param de economizar.


O erro conceitual do modelo está na não consideração de que o preço que pagamos para cada pedaço de energia, pressupõe uma garantia acordada entre os consumidores, e também com os gestores do setor elétrico. Esse pacto, que garante a continuidade do fornecimento para todos, foi quebrado pelo esvaziamento dos reservatórios, e portanto, estamos em zona de conflito. Não há sentido e nem justiça em realizar negócios milionários à custa do risco de outros consumidores que não têm esse direito. Agora, os lucros de alguns serão certamente o prejuízo de outros.


Queremos não apenas eletricidade, mas eletricidade contínua e disponível. Está escrito nos contratos! O sistema de mercado simplesmente ignora o fato de que em um parque energético com as características probabilísticas do brasileiro, “excedentes” apenas prováveis, podem significar déficits certos de outros consumidores. O ONS, denunciando a deterioração do nível de garantia do sistema em seu relatório de abril de 2000, declara que “há muito o mercado de energia vem sendo atendido com energia secundária (interruptível)”. Quando um sistema elétrico, com reservas esgotadas, troca energia garantida por interruptível, embute um conflito entre os agentes, pois afinal, alguém corre o risco de ser “interrompido”. Nenhum sistema de mercado funciona com conflitos dessa ordem.


Enquanto não se recuperar a índice de garantia da energia (encher os reservatórios), todos os interesses são conflituosos e, portanto, não há nenhum sentido no MAE.


Em engenharia, os artífices do modelo, tirariam zero, pois tratam como determinístico um problema probabilístico.


Roberto Pereira d’Araujo

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