O passado não perdoa.

Roberto Pereira D´Araujo

Não há como não tentar mostrar outra vez essas evidências, apesar das derrotas das repetidas experiências.

O TCU, no dia 15/02/2022, aprovou por 6 x 1 a privatização da Eletrobras. Durante o processo, vários valores foram citados, a grande maioria baseada em uma modelagem definida no passado.

Mas, o Brasil tem a mania de repreender quem aponta erros herdados. “Não adianta olhar pelo retrovisor” – exclamam. Lindo clamor, mas esquecem que, ao olhar o que o Brasil fez anos atrás, revelam-se erros que, não considerados, podem ser repetidos.

No caso do nosso setor elétrico, além dos erros institucionais e legais, temos que enfrentar um sistema com memória de elefante. Por razões de estrutura física, os preços do presente dependem da visão de futuro. Vice-versa, os preços do futuro dependem das decisões do passado. Essa singularidade surge apenas porque lidamos com um estoque de energia em forma de água reservada, detalhe que poucos sistemas têm. O modo como gerimos esse estoque e com as incertezas ligadas à hidrologia definem todos esses pomposos valores.

Sendo assim, que tal começar examinando a evolução do consumo de energia brasileiro?

Reparem o quase paralelismo com a reta vermelha. Reparem no ajuste do racionamento.

Que tal ajustar uma função em degrau para ficar o mais próximo possível dessa curva azul?

Com um degrau constante de 1550 MW médios a cada ano e um ajuste negativo de 2.500 MW med no racionamento, chegamos a uma diferença média entre o consumo anual e o apontado pelo degrau de menos de 1%.

Para que isso? Para tentar descobrir qual seria o aumento de capacidade instalada a cada ano para atender a demanda com equilíbrio.

Se o degrau é de energia (MW med), qual seria a potência necessária para sustentar essa oferta? No período até 2008, é possível estimar um fator de capacidade de ~ 60 %, pois ainda tínhamos uma proporção de hidráulicas expressiva. Portanto, trata-se de um incremento de 1500 / 0,60 = 2.500 MW por ano!

No período pré década de 90 (amarelo), ainda estatal, acrescentamos 2.400 MW anuais. Portanto um déficit de 100 MW/ano (- 4%).

No período da década de 90 (azul), já sob princípios mercantis e privatistas, acrescentamos 1850 MW anuais. Portanto um déficit de 650 MW/ano  (- 26%).

No período 2002 – 2012 acrescentamos 3.550 MW anuais. Portanto, uma sobra de 1050 MW/ano (+ 42%). Ótimo?

Claro que não, pois a maioria da expansão desse último período foi de térmicas, que, se não forem usadas, acrescentam capacidade, mas não a energia correspondente. A energia das térmicas mais caras é substituída por energia das hidráulicas e acabam esvaziando reservatórios e aumentando o risco hidrológico.

Esse aumento de uso de hidráulicas no período úmido pode ser visto no gráfico abaixo com a evidência depois de 2016. Reparem que o nível de geração térmica atingiu valores próximos ao da “escassez energética”. No período húmido, a geração térmica cai fortemente e quem gerou no lugar dessas térmicas foram as hidroelétricas!

No período marrom, passou a fazer parte da expansão eólicas e solares, o que reduz o fator de capacidade (precisamos mais MW para gerar o MWh). Entraram também as hidroelétricas das SPE´s que são de controle privado, em parceria com a Eletrobras minoritária. Vejam abaixo. Apesar de não ter nada a ver com o valor da outorga da Eletrobras, é preciso perguntar se o setor privado tomaria o risco de construir quase 17 GW de usinas hidroelétricas sem a Eletrobras.

Portanto, apenas captando um dos aspectos das conexões temporais no sistema brasileiro, a expansão térmica recorde afetou o risco hidrológico das hidráulicas.

O GSF, um número muito citado no julgamento da privatização da Eletrobras, foi comprometido pela expansão de térmicas que nunca foi planejada. Assim, todo esse processo coloca muitas dúvidas sobre os parâmetros CMO, CME, CME ponta, GSF, MRE, que estão na base do valor da Eletrobras.

A meu ver, esse é um aspecto do passado que foi esquecido em nome do conceito “o passado não volta mais”.

Verdade, mas define riscos e valores.

  1 comentário para “O passado não perdoa.

  1. José Antonio Feijó de Melo
    20 de fevereiro de 2022 at 21:06

    Roberto, parabéns por mais essa contribuição para uma correta compreensão da realidade do setor elétrico brasileiro, que os responsáveis pelo mesmo teimam em não considerarem. Em consequência, continuaremos fazendo puxadinhos no “modelo mercantil”, sempre tentando inutilmente conter a elevação das tarifas e o permanente risco de racionamento.
    Mas não adianta, “o passado não perdoa”.

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