O setor elétrico brasileiro: caminhando por interesses que afetam a segurança de abastecimento

Renato Queiroz

A transição energética para um mundo com economias de baixo carbono é um desafio, talvez um dos maiores neste século, que a população mundial enfrenta para diminuir os efeitos nocivos das mudanças climáticas. Isso envolve investimentos em inovações tecnológicas em vários setores da sociedade: industrial, residencial, energético, comercial, agrícola, transporte. Consequentemente as mudanças de comportamentos estarão nesse contexto. Um desafio particular dentro de um desafio maior.  A eletrificação crescente das economias é um caminho sem volta.  Esse processo, no entanto, só ocorre em um ritmo adequado com um processo coordenado de implementação de políticas públicas pelos governos. A meta é alcançar novos dispositivos, equipamentos e materiais aptos a suprir as necessidades humanas e que diminuam os gases de efeito estufa. Há, ainda, uma importante necessidade de incrementar a formação educacional e profissional da população, sobretudo os jovens que vão ingressar neste mundo rodeado de novas tecnologias. Mas a sociedade, como um todo, também necessita de estar preparada para aceitar e usar as novas tecnologias, ou seja, o processo de socialização ao acesso do produto da inovação tem que estar na elaboração de políticas públicas.  

O tema é desafiante e complexo para as novas gerações e exige competência de políticos e gestores das instituições públicas. Cada país terá capacidades e diretrizes particulares para o combate às mudanças climáticas. Há um histórico de hábitos, uma estrutura industrial, e  de geração de energia já estabelecidos. Mas há pontos comuns nesse processo: uma busca contínua e coordenada na busca de avanços tecnológicos. Um programa de financiamento bem delineado para financiar as pesquisas puras e aplicadas. Uma estrutura regulatória eficiente. As interações entre as políticas públicas de cada país é uma condição sine qua non. Não se pode deixar de considerar que inovações tecnológicas geram recursos para o país. A nova matriz energética com inovações tecnológicas estão em sintonia com soberania e crescimento econômico. Assim, o envolvimento de empresas de governos, centros de pesquisas implantados, por exemplo, nesse processo de inovações tecnológicas são fatores que trazem vantagens competitivas e estratégias que possam ser sustentáveis ao longo dos anos.  

O que deve estar na mente dos estrategistas que trabalham em áreas governamentais é que a transição energética é uma realidade importante e se relaciona com competição entre países na difusão de suas tecnologias e novos modelos de negócios de empresas estatais e privadas.

A motivação dessa postagem decorre de reflexões sobre significativas inovações tecnológicas da atualidade direcionadas ao setor elétrico, que condicionam prioridades nas políticas energéticas do mundo desenvolvido. A postagem também busca apresentar reflexões de como o Brasil estrutura e coordena as ações no desenvolvimento de inovações tecnológicas e as consequências reais no setor elétrico.

Políticas de Energiao Estado deve coordenar o processo da transição energética  

A importância estratégica das políticas de energia é comprovada pela própria história. Cabe lembrar que a concepção da União Europeia, baseou-se no tema da energia através da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, CECA e a Comunidade Europeia de Energia Atômica, CEEA. O Tratado CECA viria a expirar em 23 de julho de 2002, no final da sua vigência de 50 anos. Posteriormente os Tratados que instituíram a Comunidade Econômica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia da Energia Atômica (CEEA, dita «Euratom»), denominados Tratados de Roma, foram assinados em março de 1957 e entraram em vigor em 1 de janeiro de 1958. (Sokolska 2020) 

Os cenários prospectivos das agências, institutos e empresas indicam que o consumo de eletricidade em âmbito global vai aumentar ao longo dos próximos anos.  Esse indicativo é praticamente um consenso entre as Instituições que prospectam o futuro da energia.  

O sucesso das políticas públicas de energia, neste cenário de mudanças climáticas e de grandes investimentos em inovações, tem relação como cada país se organiza na coordenação da transição energética. A estratégia dos Estados nesse processo é buscar um menor nível de dependência tecnológica de outros países.  

As prioridades das políticas energéticas adquiriram muita intensidade nas últimas décadas. Afinal, há uma incontestável importância estratégica e econômica em decorrência do processo acelerado de inovações tecnológicas. O mercado em um setor estratégico deve atrelar seus negócios às prioridades ditadas e coordenadas pelo Estado. O processo tem como prioridade a soberania dos Estados. Mas se não há ações claras e coordenadas sob a égide pública o que se vê é uma busca individual de negócios empresariais.  

As sociedades vão demandar progressivamente mais energia limpa, introduzindo fontes renováveis de energia, ainda uma crescente descentralização da geração e equipamentos que utilizem uma quantidade menor de energia em: veículos, aparelhos eletrônicos, medidores elétricos, processos industriais, edificações, etc. Isso é um parâmetro padrão nos outlooks elaborados por agências de energia e empresas.

Outro indicativo consensual é que as atividades, sobretudo em centros urbanos, vão ser remodeladas ;através da Internet das Coisas ou “Internet of Things”, IoT, como é popularmente conhecido o termo. Ou seja, o mundo caminha para uma interação total entre computadores, sensores e objetos que vão interagir uns com os outros processando um conjunto de dados. A população em ;grande parte dos países estará o tempo todo conectada a algum dispositivo tecnológico, o que demandará eletricidade.

Neste cenário a construção e ampla ampliação educacionais são fundamentais para a inserção dos jovens na era tecnológica, fator determinante para o mercado de trabalho.

As políticas públicas de energia exigem uma abordagem integrada, multidisciplinar com outras políticas públicas, sobretudo políticas ambientais, tecnológicas, econômicas e educacionais que imprimirão um peso crescente nas estratégias de consolidação da política energética. 

Setor elétrico Mundial: Inovações em pauta 

Neste momento, há inovações, listadas abaixo, voltadas ao setor elétrico em que pesquisadores e cientistas estão debruçados para obtenção de resultados no curto e médio prazos. Cabe destacar que esta lista não é exaustiva. Foi selecionada dentro dos estudos, seminários e entrevistas de especialistas.   

Redes elétricas para transmissão e distribuição. As redes continuarão a serem a base do suprimento e fornecimento de eletricidade no médio prazo. A geração distribuída, no entanto, terá um papel importante ao longo dos anos. As pesquisas no segmento da transmissão de eletricidade estão buscando, e não é de hoje, materiais supercondutores que permitam a transmissão da eletricidade sem perdas. Os projetos de inovação de cabos supercondutores com menores custos e alto desempenho estão cada vez avançando mais. Outras pesquisas são as voltadas às redes elétricas para o recebimento da energia proveniente de fontes renováveis; 

Dispositivos elétricos para as cidades. Com a chegada da Tecnologia 5G as cidades vão se transformar. Serão sistemas capazes de armazenar, compartilhar e processar informações em grande volume  que conectados movimentarão as chamadas “cidades inteligentes”. São dados do consumo de energia, do trânsito, de temperaturas etc. em tempo real. A meta é conectar toda a cidade com sensores impactando as diversas zonas com informações desde as ruas até o dia a dia da população; 

Fontes renováveis.  As fontes solar e eólica tiveram nos últimos anos uma queda considerável em seus custos e, por anos, aumentarão suas participações nas matrizes elétricas dos países. As inovações na geração eólica estão voltadas a projetos de turbinas eólicas cada vez maiores a fim de gerar mais energia. Há ainda inovações em desenvolvimento de turbinas eólicas offshore flutuantes com estruturas também flutuantes. Há pesquisas em turbinas eólicas sem hélices que se baseiam em um efeito aerodinâmico chamado vorticidade. Ao invés de combater a força dos ventos, a tecnologia maximiza a oscilação, para que a eletricidade seja gerada a partir deste movimento; 

Solar. No caso da geração solar fotovoltaica as pesquisas estão focadas em avanços nos inversores e trackers (dispositivos que alteram várias vezes a posição dos painéis fotovoltaicos durante o dia) para permitirem um aumento da produção de energia solar do sistema fotovoltaico.  Em relação à geração distribuída solar, as inovações estão calcadas em tecnologias de micro inversores. Eles foram concebidos para trabalharem individualmente com cada painel solar e irão substituir os inversores atuais As inovações visam a otimizar os sistemas de geração de energia solar;  

Tecnologia de transporte de dados na 5ª G. Com o advento da tecnologia 5G, haverá um impulso nas inovações de fontes intermitentes, permitindo uma otimização da geração através de um maior nível de interação entre os equipamentos. Há desafios técnicos quando se trata da integração da energia solar e eólica. São fontes de energia renováveis variáveis que exigem sistemas de energia cada vez mais flexíveis para manter o equilíbrio entre oferta e demanda a cada dia ou ano; 

Reatores nucleares modulares pequenos. Há projetos em andamento com protótipos de pequenos reatores com objetivo de formarem, em uma mesma instalação, um conjunto que possa ter a mesma capacidade de um reator de grande porte sem a construção de um grande complexo. Um pequeno reator permite um transporte mais fácil e uma rápida instalação no local. Há também projetos em andamento de micro reatores nucleares móveis avançados para atender às necessidades domésticas de energia elétrica buscando reduzir a dependência das redes elétricas.

Hidrogênio verde. O hidrogênio é uma alternativa para descarbonização industrial e armazenamento da eletricidade. É obtido a partir da eletrólise da água que alimenta células de combustível que produzem uma corrente elétrica para movimentar motores. O hidrogênio azul, por exemplo, é extraído do gás natural e o gás carbônico resultante  é capturado através da tecnologia de captura e armazenamento de carbono (CCS). Já o hidrogênio cinza é produzido com combustíveis fósseis, como diesel ou carvão, com liberação do gás carbônico na atmosfera.  O hidrogênio verde é produzido usando a energia de fontes renováveis e pode ser, por exemplo, a partir do etanol em vez da eletrólise da água.  As pesquisas estão avançadas, mas os investimentos são altos. A geração verde de hidrogênio é vista como uma alternativa promissora para reduzir as emissões; 

Armazenamento de energia. Com as fontes renováveis se consolidando como as grandes responsáveis da transformação da matriz energética mundial, outra tecnologia que avança em pesquisas   para complementar essas mudanças são as baterias. A intermitência das fontes renováveis levou ao desenvolvimento de inovações nas baterias como as chamadas baterias de fluxo, ou baterias redox. Usam a eletricidade para produzir compostos químicos que poderão ser guardados em tanques. Quando a eletricidade é necessária (sem sol ou sem ventos, por exemplo), reverte-se a reação para obter a eletricidade. Os projetos consistem em grandes baterias que recebem eletricidade de várias fontes intermitentes, e liberam uma quantidade média contínua 24 horas por dia, 7 dias por semana; 

Biomassa e Biotecnologias.  No caso da biomassa, as pesquisas buscam novas tecnologias de recuperação e pré-processamento de resíduos. Cabe citar o biogás, gás produzido pela decomposição anaeróbica de matéria orgânica que tem uma grande aplicação na geração de energia elétrica. As pesquisas estão focadas em desenvolvimento de novas tecnologias em biodigestores. Aqui devem ser citadas, também, as pesquisas em novas tecnologias baseadas em matérias-primas renováveis, novas opções a partir de biomassa renovável (biotecnologias) que abrangem não somente o segmento energético, mas as indústrias que processam recursos biológicos, como as de alimentos, papel e celulose e outras. 

Energia das marés e das ondas. Existem diversos projetos diferentes com o objetivo de explorar a energia das ondas e das marés para a geração de eletricidade através de turbinas flutuantes ou de conjuntos de turbinas submersas. Há já projetos-piloto, entre outros, que se baseiam em longas boias flutuantes e boias submersas. 

 Reflexões sobre o Brasil  

“Políticas públicas são, muitas vezes, questionadas por sua aplicação e eficácia, devido às limitações das autoridades públicas em relação à falta de informação, dependência temporal (e.g. ciclos eleitorais), etc. É importante notar que, para cada setor/área, haverá um conjunto de políticas possíveis e desafios em sua implementação, sendo importante para os formuladores de políticas não perder de vista a questão fundamental: Qual problema estou tentando solucionar?” (TAVARES, 2019).    

Verifica-se que, no Brasil, as prioridades nos últimos anos não são a ciência, as pesquisas e as inovações. O atual governo, por exemplo, enviou um projeto de lei orçamentária ao Congresso onde o MCTI-Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações teve um dos cortes mais significativos com queda em 2021 de mais de 30 %.

Um estudo da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual – ABPI realizado por economistas da Universidade Estadual de Campinas UNICAMP e da Universidade Federal de Mato Grosso, UFMT, demonstrou que o Brasil está nos últimos lugares no ranking de inovações da área digital. “A atualização estatística confirma as grandes linhas que explicam as dificuldades do Brasil, como o atraso na área de inovação, o descompasso em relação aos países mais avançados e a necessidade urgente de reverter a esta tendência negativa” (ABPI, 2018).

Investimentos em pesquisas básica e aplicada são esforços para um país para estimular o seu desenvolvimento, pois constitui-se de um conjunto de atividades desenvolvidas por empresas, universidades e outras instituições científicas. Os resultados resultam em novos produtos e a formação de pesquisadores e profissionais qualificados.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA – divulgou, em abril de 2020, uma Nota Técnica (IPEA,2020) sobre os indicadores de inovação no Brasil, baseada em informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE -, que coletou indicadores através da Pesquisa de Inovação (PINTEC) de 2017, mostrando uma queda em todos os principais indicadores agregados de inovação no país, entre 2009 e 2017, conforme gráfico abaixo. Segundo a referida Nota Técnica do IPEA, o acentuado declínio no suporte público à P&D empresarial no período 2014 a 2017 foi o fator decisivo para a redução da relação P&D/PIB na economia brasileira (IPEA, 2020).

Taxa de inovação na economia brasileira entre 2009 e 2017 

(% de empresas inovadoras em relação ao total)

 FONTE: IPEA 2020 

O Brasil tem instituições públicas que elaboram estudos com muito conteúdo e profundidade. Observa-se, entretanto,  que elas, em grande parte, desenvolvem os estudos prospectivos para o mesmo período  e sobre temas pertinentes e são divulgados no mesmo ano.  Como essas instituições estão em Ministérios diferentes e não há citação de interação entre elas, conclui-se que falta uma articulação para troca de informações o que traria, certamente, melhores resultados dos referidos estudos. A falta de coordenação traz uma perda de sinergia aos resultados esperados.  

Cumpre destacar que há esforços positivos em alguns estados como em São Paulo. O Centro de Inovação em Novas Energias (CINE) que é uma parceria entre empresas privadas, institutos públicos de pesquisa, como o IPEN – Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares, a SHELL e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP.  

No campo da energia elétrica, por exemplo, quando da formação da ELETROBRAS, as atividades de planejamento e operação estavam na mesma empresa, o que facilitava as interações e a coordenação. A implantação de comitês técnicos de geração, transmissão, mercado de energia elétrica, meio ambiente com a participação de profissionais de todas as empresas do Grupo e sob uma mesma coordenação, ELETROBRAS, resultou no estabelecimento do SIN-Sistema Interligado Nacional, referência nos setores de energia do mundo e de um conjunto de pesquisas aplicadas importantes.  

A criação pela ELETROBRAS do Centro de Pesquisas de Energia Elétrica, CEPEL, em 1974, tendo como co-fundadores as empresas do Grupo ELETROBRAS, CHESF, FURNAS, ELETRONORTE e ELETROSUL, foi um avanço no desenvolvimento de pesquisas teóricas e aplicadas. O CEPEL tem desenvolvido pesquisas avançadas em equipamentos e sistemas elétricos com resultados concretos para o país. O objetivo da criação deste Centro de excelência e no âmbito estatal foi prover às empresas de energia elétrica, estatais e privadas, o acesso às novas tecnologias, adequadas à realidade brasileira. Com isso o país reduziria o pagamento de royalties e patentes aos grupos estrangeiros.

As inovações que surgem através de pesquisas aplicadas podem se materializar em patentes e protótipos. Muitas vezes são projetos–piloto, baseados em pesquisa experimental, que requerem tempo na avaliação do desempenho dos materiais ou dispositivos e podem levar alguns anos para a conclusão. O CEPEL desenvolve também parcerias não somente com as empresas do Grupo ELETROBRAS, mas com fabricantes de materiais ou peças no desenvolvimento dos protótipos.  

Um exemplo, entre muitos, é o protótipo de um dispositivo desenvolvido no CEPEL que torna possível a realização de ensaios de corrosão sob tensão em solo. O projeto foi Iniciado em 2017 com previsão de término em 5 anos com a participação de FURNAS e ELETRONORTE e parcerias com fabricantes de estacas. “Os resultados deste projeto, como um todo, trarão maior segurança na aplicação desta tecnologia para todas as empresas de transmissão que operem ou venham a operar no Brasil. Podem, ainda, atender a outras demandas do setor como, por exemplo, no estaqueamento de torres eólicas”. (ELETROBRAS-CEPEL). 

As empresas controladas da ELETROBRAS também criaram centros de pesquisas para realização de testes, apoio à manutenção de equipamentos e também na busca da obtenção de patentes. Além disso, investem em projetos de P&D&I dentro do programa regulado pela ANEEL, Agência Nacional de Energia Elétrica. Como exemplos, tem-se o primeiro projeto de usina termoquímica de geração de energia (UTGE) do país, que utiliza resíduos sólidos, ou seja, lixo, para gerar energia elétrica por meio de um processo inédito na cidade de Boa Esperança, no Sul de Minas, dentro da parceria entre Furnas Centrais Elétricas e a empresa Carbogas Energia. Outro exemplo de inovação na área de energia, também através de FURNAS, é o protótipo de conversor offshore para geração de eletricidade pelas ondas do mar, em escala real, no Rio de Janeiro. 

As reformas ocorridas a partir de 1995 no setor elétrico brasileiro indicam que os resultados foram ruins para a sociedade brasileira. O apagão de cerca de 20 dias, no mês de outubro do presente ano, no Estado do Amapá, acendeu mais um sinal de alerta no sistema elétrico brasileiro. O evento afetou os serviços prioritários para a população como, armazenamento de alimentos, abastecimento de água, telefonia e internet. Esse caso é uma indicação clara de que o modelo aplicado no setor, mesmo com os diversos ajustes ao longo dos anos, indica que há uma fragilidade na segurança de fornecimento de eletricidade.

O Brasil, ao buscar uma reforma nos anos 90 baseada em um modelo de privatização adotado na Grã-Bretanha, incorreu em um grave erro. Escolheu como modelo um país errado. Afinal, a principal fonte de geração elétrica, na Grã-Bretanha, são usinas térmicas e não usinas hidrelétricas como no Brasil. Foi um erro de estratégia e/ou competência. Em comparação com as estratégias dos anos 60, que buscaram o estabelecimento de um sistema elétrico que trouxesse segurança no abastecimento, as reformas dos anos 90 foram em direção oposta ao abrir para o mercado. O setor elétrico sofre, até hoje, por conta desse caminho totalmente errado. “Enquanto as centrais termelétricas são construídas onde está a demanda, a localização das hidrelétricas depende da natureza. Ainda há a questão do uso das águas das barragens das usinas, em que a geração de energia tem de ser compartilhada com aproveitamento agrícola e outras formas de uso das águas” (ILUMINA,  2004). O modelo de mercado implantado em 1995, em apenas 6 anos, provocou o maior racionamento energético da história mundial em tempos de paz, equivalente a 25% do consumo. Ainda as tarifas vêm aumentando com a introdução de novos custos periodicamente o que representa um peso crescente na renda das famílias. 

A formação do setor elétrico buscou confiabilidade e custos razoáveis e foi estruturado centralizando atividades principais. A criação da ELETROBRAS trazia em sua missão pilares como a capacitação profissional, o desenvolvimento de técnicas especializadas, buscando referências em sistemas similares desenvolvidos pelas estatais canadenses. Essas empresas exploram, até hoje, as atividades de geração, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica. Buscou, também, experiências em empresas americanas. Os Estados Unidos construíram um parque hidrelétrico com grandes empresas de geração e transmissão e sendo a maior parte das usinas hidroelétricas de propriedade estatal. “A presença do Estado nas barragens e usinas hidrelétricas nos EUA se deve, em grande parte, ao entendimento de que a bacia hidrográfica deve ser gerenciada como um todo. Isso significa contemplar os vários aspectos envolvidos na operação das barragens com o uso múltiplo da água: controle de cheias e irrigação, navegação, geração de energia, qualidade da água, aproveitamento econômico e recreação. Essa posição é definida de forma clara pela Tennessee Valley Authority (TVA), mais conhecida estatal americana no setor hidroelétrico.” (ILUMINA, 2004).

A partir das reformas dos anos 90, o que se viu foi uma fragmentação generalizada dessas atividades a partir da criação de outros órgãos e da participação de mais de uma empresa nas mesmas instalações. “No mundo físico também há essa fragmentação. Apenas como um exemplo, a subestação de Samambaia, no Distrito Federal, concessão de Furnas, recebe linhas de transmissão de cinco empresas diferentes. Como as linhas se conectam dentro da estação, técnicas, equipes, tipos de aparelhos podem ser distintos, o que exige um amplo monitoramento que evite confusões. Tudo isso resulta em custos e riscos. Não é à toa que a Inglaterra, um dos ícones da mercantilização da energia, preferiu manter a sua rede de transmissão nas mãos da estatal National Grid” (Araújo, 2020). 

Conclusão: 

As sociedades contemporâneas são estruturadas sob bases tecnológicas A inovação é a mola mestra que vai manter atualizada a infraestrutura dos países, caso contrário as economias vão ficar sempre dependentes das novas tecnologias dos países dominantes. “A inovação é essencial. Para participar ativamente do cenário econômico mundial, não apenas como fornecedor de commodities, é preciso ser, por definição, inovador “. (PEREZ, 2010) 

A inovação é a espinha dorsal da transição energética. A inovação desbloqueia o potencial das energias renováveis, não apenas no setor de energia, mas também na indústria e nos transportes, reduzindo assim as emissões de CO2 para limitar o aumento da temperatura global para 1,5 ° C. Sem grandes mudanças de política e a implantação maciça de soluções renováveis, apenas sete setores da indústria e dos transportes serão responsáveis ​​por 38% de todas as emissões de CO2 e 43% do uso de energia globalmente em 2050.(IRENA, 2020) 

O estabelecimento de um processo contínuo de desenvolvimento de polos tecnológicos exige uma coordenação em nível nacional principalmente em países com diferenças de formação e competências educacionais como o Brasil. Essa coordenação será necessária para articular pesquisadores, empresários, empresas e agências estatais. A qualificação, a requalificação de pessoal, e a atração de talentos é fator de grande importância para o processo de inovação. A falta de habilidades digitais está aumentando a diferença ente países de alta renda e o resto do mundo (ADECCO, 2020).  

Países como o Brasil devem aproveitar as experiências adquiridas ao longo dos anos e através de uma rede coordenada que se espalhe no território nacional de centros de pesquisa estabelecidos, universidades, empresas estatais e empresas privadas sobretudo start-ups .  

O Brasil peca por prioridades e ações atrasadas na estruturação das políticas públicas no processo de inovações tecnológicas e, nesse contexto, encontra-se o setor elétrico. O país tem a oportunidade de aproveitar a experiência desenvolvida nas Empresas do Grupo ELETROBRAS para ser o grande seguro do setor que já é amplamente privado em todas as etapas do sistema: Geração, Transmissão e Distribuição. O apagão no Amapá em que a ELETROBRAS-ELETRONORTE usou de sua capacidade profissional e técnica mostrou que a segurança energética estava ameaçada e necessitou da ação da empresa estatal.

O Estado através do Grupo ELETROBRAS pode, inclusive, aproveitar as competências adquiridas no CEPEL e nos laboratórios das empresas do Grupo e montar um grande centro de pesquisa e inovação voltado ao setor elétrico. Com uma coordenação única no desenvolvimento de avanços tecnológicos e com recursos da própria empresa que é lucrativa, o país pode ter um programa de porte  de inovações tecnológicas.  

O setor elétrico brasileiro sempre pautou por soluções que dessem a segurança energética ao Brasil. O sistema elétrico nacional foi considerado uma referência em soluções tecnológicas ao longo dos anos e não pode se tornar inseguro e irrelevante, como parece que está caminhando, por decisões que afetam a soberania nacional e atende a interesses financeiros.      

Referências:  

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Obs: Texto publicado originalmente no Blog Infopetro.

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