Porque o setor elétrico brasileiro é diferente – Artigo

Roberto Pereira D’Araujo

Por incrível que pareça, ainda é necessário mostrar a natureza singular do nosso setor elétrico. Apesar de todos os defeitos do nosso sistema político que se aprofundaram nos últimos anos, sem a Eletrobras, jamais teríamos a arquitetura do nosso sistema, que, como explicamos a seguir, é uma joia rara. A fragilização se agravou nos últimos 25 anos e tem total relação com a instável adaptação feita para implantar um sistema de mercado inviável, dada a nossa natureza. Dentre esses defeitos, desponta a instabilidade de preços no “mercado livre”. Apesar de já ter apresentado diferenças de 7.000 %, coisa que não acontece em nenhum mercado de energia, nunca se questionou profundamente o modelo adotado. 

Não estou dizendo que seja impossível o uso de mecanismos de mercado. Estou apenas afirmando que é preciso respeitar a nossa geografia. O que vou mostrar são efeitos diretos da nossa natureza.

O Brasil, em função de sua geografia, possui rios classificados como “de planalto”. Em geral, as declividades onde estão localizadas as usinas ocorrem entre dois segmentos razoavelmente planos. Portanto, ao se represar rios desse tipo, a tendência natural é a formação de grandes reservatórios que são capazes de armazenar grandes volumes d’água.

Assim, as grandes represas não surgiram por visões megalomaníacas ou por obsessão por obras “faraônicas”, como, muitas vezes, o setor foi acusado. Elas são consequência da geografia brasileira.

Outra característica, também fruto de sua geografia de planaltos e planícies, é que os rios percorrem grandes extensões antes de desaguar no mar. Apenas para citar alguns exemplos, eis a extensão de alguns rios brasileiros.

Rio Paraná – 3942 km.

Rio São Francisco – 2800 km.

Rio Madeira – 3315 km.

Rio Tocantins – 2700 km.

Em função dessas características, a seguir, apresento aspectos do sistema brasileiro que o distingue significativamente dos outros. Para uma filosofia que coloca a concorrência como base do sistema, essas particularidades exigem a solução de questões extremamente complexas.

Conseqüência direta da extensão dos rios brasileiros, é comum encontrar diversas usinas em seqüência no mesmo rio. A título de exemplo, apenas no Rio Paraná e seus afluentes estão mais de 30 importantes usinas do sistema. Portanto, a água efluente de uma usina é parte importante da afluência da usina imediatamente a jusante (abaixo) no rio.

Essa sequência de usinas obrigaria a quem as explora resolver problemas matemáticos e probabilísticos muito específicos, mostrados a seguir de forma bastante figurativa e simplificada, mas basilar.

Para isso, vamos imaginar que o setor elétrico brasileiro surja do zero.

Cena 1:

Suponha um rio onde um investidor construa a usina hidroelétrica 1 com 100 MW garantidos (*), mostrada na figura abaixo. Como sua usina tem um reservatório, apesar da afluência ser muito variável como a do gráfico, ela consegue regularizar as variações e garantir uma energia equivalente à linha tracejada. Parte das afluências maiores é perdida, pois seu reservatório não tem capacidade para guardá-las para ser usada na próxima seca, mas o reservatório consegue estabilizar parte das afluências garantindo uma energia firme.

 

(*) Os 100 MW não é a potência da usina! É uma quantidade de energia que a usina pode fornecer continuamente.

Cena 2:

Num segundo momento, outro investidor constrói outra usina rio acima com a mesma capacidade. Como a usina 2 também tem reservatório, consegue regularizar mais um pouco o rio e a afluência percebida pela usina 1, agora, é “mais bem-comportada”, onde as secas não são tão profundas (curva vermelha). Imediatamente, a capacidade de garantir energia da usina 1 aumenta. Agora, a usina 1 produz 110 MW firmes. Não há aumento de capacidade. Ninguém adicionou novas turbinas. Apenas a gestão da água no tempo possibilita isso.

A pergunta que surgiria entre esses 2 investidores é: Quem é o proprietário desses 10 MW firmes que surgem sem acréscimo de nenhuma nova turbina ou gerador?

  • Da usina 1, já que quem gera essa capacidade são as máquinas de 1?
  • Da usina 2, já que quem alterou o comportamento da afluência percebida por 1 foi a usina 2.

Certamente o dono do reservatório 2 pode exigir um pedaço dessa energia. Será que ele teria direito aos 10 firmes? Como seria possível um investidor ganhar energia gerada por outro? Que critério adotar?

Não há uma resposta razoável para esse problema, pois é impossível separar essas funções de forma unívoca e indiscutível. Afinal, é preciso lembrar que a hidrologia pode variar ao longo do tempo e esse efeito também pode. Na realidade, quando se exige que a energia gerada tenha uma garantia, tanto o reservatório 2 quanto a usina 1 são peças importantes da “máquina” que perfaz esse serviço.

Provavelmente, cansados de discutir, esses investidores sentariam à mesa para conversar. Tudo sugere que esse arranjo é uma pré-condição para a associação desses proprietários.

Por que não juntar esses capitais e explorar essa vantagem em sociedade? Por que não uma só empresa explorando 210 MW firmes? Não é interessante formar uma empresa só? Que tal um acordo? Que tal uma cooperativa?

Cena 3:

Suponha que, num terceiro momento, outro investidor construa um reservatório puro (3), sem turbinas, rio acima, tal como na figura abaixo. Imagine-se, por hipótese, que o reservatório seja para irrigação. Entretanto, apesar de não estar dirigido para a produção de energia, esse reservatório altera a capacidade das usinas 1 e 2 produzirem MW firmes. Agora, a usina 2 pode produzir 110 MW firmes e a usina 1, beneficiada por uma afluência ainda mais bem-comportada, passa a garantir 120 MW firmes.

Esse proprietário pode exigir uma parcela do acréscimo de energia. Afinal, é o seu reservatório que proporciona essa vantagem. Se os outros dois não cederem, ele pode adotar uma operação que cancele essa energia extra. Portanto, mais uma vez, sem nenhuma nova máquina, agora 3 investidores têm todos os incentivos naturais em se associar e explorar em conjunto os 230 MW firmes.

Num caso real, onde diversas usinas se situam em sequência ao longo do rio, essa questão se multiplica. No caso de várias usinas em cascata, o que se percebe é que a geração de cada usina depende de sua própria estratégia de reservar água, mas, principalmente, das estratégias de geração das usinas de montante. Qualquer sistema hidroelétrico com usinas em cascata apresenta esse efeito. Mas, o caso brasileiro ainda é especial em função das dimensões de seus rios, dos tamanhos dos reservatórios e da hidraulicidade tropical.

Portanto, o problema reside em saber se existem estratégias individuais que maximizam o somatório de gerações individuais sem comprometer o futuro. Até prova em contrário, nenhuma estratégia individual parece ser capaz de realizar essa proeza. A princípio, a estratégia deve ser conjunta. 

Cena 4:

Mas o “jogo” não acabou. Imagine que, assim como ocorreu no rio A, alguns quilômetros distantes, algo parecido ocorre no rio B. Lá duas usinas 4 e 5 iguais às 1 e 2 perceberam o mesmo efeito e se associaram para explorar 210 MW.

Imagine um outro investidor que, analisando os dados, resolve construir uma linha de transmissão A-B. Acontece que o rio B têm uma hidrologia diferente de A e, geralmente, quando A têm afluências mais baixas, B têm afluências favoráveis. Agora, surpreendentemente, ao invés de se ter a soma das energias firmes (230 + 210), aparecem mais 40 MW firmes!

Essa diversidade de hidrologias, típicas de países longitudinais, confere ao sistema de transmissão brasileiro uma função praticamente inédita entre os sistemas elétricos mundiais, pois o mercado pode ser atendido por uma infinidade de gerações diferentes localizadas ao longo do território nacional.

Ao possibilitar uma grande quantidade de possíveis despachos entre as regiões, o sistema de linhas faz um papel similar a um reservatório “ambulante”, pois é capaz de “realocar” a reserva de água de modo a evitar vertimentos inúteis. As linhas, desde que corretamente dimensionadas, são capazes também de “esvaziar” estrategicamente os reservatórios programando seus volumes de espera e transformando mais água da chuva em kWh. Pode-se dizer que, quanto maior a “capilaridade” do sistema de transmissão, maior a probabilidade de que as afluências em todo o sistema sejam transformadas em kWh em algum momento.

Nessa evolução hipotética que estou fazendo, o que pensaria o investidor da linha? Afinal, quem possibilitou o aumento da quantidade de energia firme? Sem sua linha seria possível tal “milagre”?

Com grande probabilidade, ao invés de confrontar visões individuais, agora os 6 empresários sentariam à mesa para negociar. Se quiserem aproveitar o que o sistema lhes oferece, a melhor opção é a formação de uma única cooperativa que agora passa a dividir os 480 MW firmes.

Cena 5:

Bem parece que o jogo se esgotou…mas, não. Imagine agora um sétimo investidor que resolve construir uma térmica conectada ao sistema A+B+T. Esses empresários percebem que, com a existência da térmica, eles podem ganhar ainda mais energia firme mesmo que essa nova usina não gere 1 MWh sequer!

 

Como? Simplesmente pelo efeito seguro que a térmica proporciona. A+B+T sabem que não podem arriscar na redução do volume dos reservatórios. Afinal, ainda há períodos de baixa hidraulicidade e, em algumas situações, são obrigados a verter (jogar água fora) porque não há espaço para a água da chuva. Agora, com a disponibilidade da térmica, eles podem “arriscar” um pouco mais e abrir mais espaço para uma quantidade de chuva que não conseguia ser guardada. Esse efeito só pode ser conseguido porque a térmica dá uma segurança sobre um volume de espera maior nos reservatórios.

Mais uma vez, esses empresários, meio perplexos, analisam o problema e percebem que surge do nada mais 20 MW firmes. Assim, reconhecendo a impressionante força da gestão integrada de suas usinas, festejam o fato de que um sistema inicial de 400 MW firmes, agora dispõe de 500 MW firmes.

Pelo que se pode perceber até aqui, donos de usinas, de linhas e de usinas térmicas teriam todos os incentivos naturais para a formação de uma única empresa no sistema brasileiro. Percebe-se que o sistema físico “pede” para ser explorado como se fosse um monopólio. Os ganhos energéticos advindos da fantástica sinergia reservatórios-linhas-térmicas são significativos. O princípio que se defende aqui é que o sistema composto de hidráulicas, linhas e térmicas têm características de monopólio natural um conceito econômico que nada tem a ver com a propriedade. 

Atenção: Apesar de ser inviável manter a mesma relação da reserva com uma carga crescente, qualquer outra forma de geração de energia, estando conectada à esse grande sistema, também pode ser percebida como atuante nesse monopólio natural ao atuar sobre a reserva. Por exemplo, as fontes eólicas e solar, as principais formas que se mostram cada vez mais viáveis, no nosso sistema, ganham uma dose extra de viabilidade. Basta analisar o efeito dessas fontes sobre o grande estoque de água. Se eólicas geram mais energia nos períodos de baixa hidraulicidade, elas substituem térmicas. Se fotovoltaicas distribuídas fazem com que o sistema de reserva percebam uma diminuição da carga, elas podem reduzir a necessidade de térmicas ou economizar água. O ponto importante é que qualquer fonte de energia tem um efeito sistêmico que só ocorre pela natureza do nosso setor elétrico.

Atenção: Esses conceitos nada têm a ver com instituições estatais ou privadas. Desnecessário salientar que não há sequer resquício de visões de “esquerda” ou “direita”.

Lógico que outros sistemas também têm esses efeitos, mas numa proporção muito menor, quase imperceptível. O caso brasileiro apresenta ganhos sinérgicos da ordem de 25% da carga em função da nossa natureza energética. Considerando que a capacidade do sistema interligado hoje é de 110 GW médios, pode-se dizer que uma energia equivalente à usina de Itaipu pode ser creditada à operação monopolística.

Sem querer esgotar a questão sobre a teoria dos monopólios naturais, é interessante notar que é muito comum encontrar a conceituação de que a distribuição e a transmissão de eletricidade são monopólios naturais. É muito rara a atribuição dessa característica ao conjunto geração e transmissão. Mas, no caso brasileiro, são exatamente essas atividades que apresentam características naturalmente monopolísticas. É importante ver, muito resumidamente, a teoria dos monopólios naturais.

Além disso, os investimentos dos setores de infraestrutura possuem uma série de características que justificaram, historicamente, a intervenção de governos. Os itens abaixo, não são oriundos de uma observação do setor elétrico. As semelhanças da teoria com o nosso caso não são meras coincidências.

A existência de economias de escala e de escopo faz com que estas atividades apresentem a característica de monopólio natural. Isso ocorre quando uma única firma é capaz de prover o mercado a um menor custo do que qualquer outra estrutura de mercado;

Os investimentos são intensivos em capital, com grande prazo de maturação. Geralmente necessitam condições financeiras especiais para mitigar riscos provocados pelo descasamento entre o prazo de maturação do investimento e o cronograma de pagamento do financiamento. Acabam exigindo a necessidade de financiamento público.

Investimentos em redes, cujas características tecnológicas geram complementaridades que favorecem a coordenação das atividades em detrimento da competição. Da mesma forma, estas características também funcionam como incentivo para estruturas monopólicas visando a redução de custos de transação e a mitigação de riscos de perdas de coordenação;

Investimentos sujeitos à obrigação jurídica de fornecimento, pelo fato de os serviços serem considerados básicos para as atividades econômicas e sociais. Por esta razão, esses serviços são definidos como serviços públicos, embora este conceito tenha um forte caráter histórico e cultural. Prevalece a noção de serviços cuja provisão deve ser garantida pelo Estado.

Ocorrência de externalidades. Retendo-se aqui seus aspectos positivos, esses efeitos podem ocorrer em função de o valor gerado pelos investimentos ser maior que aquele pago pelo usuário (consumidor). Ressalta-se o fato que o aumento do número de usuários provoca a maior utilidade coletiva e individual das redes e dos serviços, justificando a universalização dos serviços, ou seja, a extensão ampla do acesso a esses serviços com base em preços módicos. As circunstâncias em que o monopólio pode ser mais eficiente do que a competição são operações em que haja largas economias de escala e situações em que se deseje internalizar externalidades.


Dito tudo isso, voltemos ao nosso setor elétrico.

Reconhecendo parcialmente a singularidade física do sistema, nossos dirigentes resolveram imitar seus colegas de países desenvolvidos e, forçando a barra, partiram para a difícil tarefa de associar um valor de energia firme fixo para cada pedaço do seu sistema.

O incentivo natural ao monopólio foi relativizado. O modelo adotado é de agentes individuais.

O pedaço de energia firme associado ao papel da transmissão foi transferido para as usinas. Portanto, a transmissão deixou de ser uma “sócia” também paga pela energia. Como tem que ser construída, passou a ser exclusivamente custo.

Como a sinergia do sistema não pode ser desprezada, assumiu-se a construção de um sistema altamente complexo que separa a garantia total em partes supostamente justas e supostamente equivalente ao todo. O sistema é cooperativo, mas seus componentes competem entre si baseado num “certificado”.

Estabeleceram um sistema denominado MRE (Mecanismo de Realocação da Energia) que estabelece uma repartição desse efeito de gestão monopolística apenas entre as hidráulicas. Transmissão e térmicas ficam de fora.

Como o sistema vai se alterando fisicamente, aqueles valores fixos de energia firme individuais, que pareciam perfeitos, podem se transformar em exageros alguns anos depois.

Como as quantidades se transformam em certificados comerciais, receberam uma vigência imutável que não deveriam ter.

Sabendo disso, inventam-se conceitos totalmente incompatíveis com os princípios iniciais, tais como energia de reserva, que nada mais é do que um “tapa buraco” nos defeitos do sistema e um encargo (R$/MWh) que tem que ser pago além dos contratos.

As incoerências vão se avolumando, até que se chegou ao “desmoronamento” dos certificados, onde usinas hidráulicas têm que comprar energia de térmicas a preços dezenas de vezes maiores dos que são cedidos às próprias térmicas nos períodos de grande hidraulicidade. Atente-se que a política de uso da reserva não é decisão das hidráulicas, pois o despacho é centralizado.

Judicialização completa do setor. Mercado parado! Tarifas nas alturas! Solução? Usa-se a Eletrobras para “quebrar o galho” da tarifa nas alturas. Insuficiente? Despeja-se o custo extra para o consumidor e o contribuinte.

O ILUMINA não está propondo a estatização de nada. O conceito de monopólio é puramente econômico e não representa uma ameaça à sociedade. Apenas consideramos que esse assunto não se restringe à um acerto entre agentes econômicos. Estamos apenas colocando, de forma simples, as singularidades básicas brasileiras. O setor é assim! Dito isso, que reforma vamos fazer? Mais um remendo?

O setor gosta muito de seminários, congressos, encontros …..No entanto, é preciso ampliar o leque de participantes nesses debates. Universidades, entidades de defesa do consumidor, e organizações de técnicos como o próprio ILUMINA geralmente estão fora da lista, pois, talvez, outras visões, apesar de necessárias, incomodem.

  6 comentários para “Porque o setor elétrico brasileiro é diferente – Artigo

Deixe um comentário para Roberto D'Araujo Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *