Privatização e Soberania – Artigo

João Augusto de Macedo Costa (*).

Nos idos da década de 50 do século passado, JK sabia que sua meta de industrializar o país dependia visceralmente da disponibilidade de energia elétrica. Não por acaso, ele iniciou a construção das usinas de Furnas no rio Grande e Tres Marias no rio S. Francisco. Essas usinas – de um tamanho inusitado para a época – juntamente com suas linhas de transmissão para RJ, SP e MG, viriam a se constituir na semente de uma floresta: o atual sistema elétrico interligado.

Apenas como exemplo, Furnas, a empresa que leva o nome de sua primeira usina e cuja obra posso citar de cor, construiu em sequência, de 1957 em diante, as usinas de Furnas, Estreito, Funil, Porto Colômbia, Marimbondo, Itumbiara, Corumbá e Serra da Mesa, culminando com o sistema de transmissão de Itaipu, que atravessa PR e SP com 5 linhas paralelas, injetando no coração do sudeste um impressionante bloco de 14 mil MW de energia. Posteriomente, já sob o novo regime de participação parcial, construíu a usina de S. Antonio e várias outras de menor porte.

Trajetórias semelhantes e paralelas foram traçadas por Chesf, Eletrosul e Eletronorte.

As usinas hidráulicas e linhas de transmissão do sistema elétrico hoje existente eram construídas com empréstimos de Bid, Bird, Finame e Finep. Esses empréstimos tinham em geral algo como 20 anos de prazo de amortização e 5 anos de carência para início de amortização. Como as usinas demandavam em média também 5 anos para serem construídas, esta coincidência de prazos fazia com que a usina iniciasse o pagamento de seu empréstimo com os recursos gerados pela energia que produzia. Era uma bicicleta rodando, um sistema solvente e auto-sustentado.

Transcorrida uma vintena de anos e terminada a amortização do empréstimo, as usinas hidráulicas se tornavam dali para a frente uma máquina de imprimir dinheiro, uma verdadeira sucursal da Casa da Moeda.

Nenhuma relação com o prazo contábil  de 30 anos de depreciação. Os custos de pessoal de uma usina hidráulica são mínimos e os equipamentos quase eternos, demandando custos mínimos de manutenção. Seu valor real é enorme, em virtude de sua geração de caixa. Quem visitar a usina de Furnas hoje, transcorridos quase 60 anos de sua entrada em operação, encontrará uma usina quase deserta, com turbinas e geradores girando, transformadores funcionando, comportas e pontes rolantes em perfeito estado.

Toda vez, leitor, que você aperta o interruptor da sua residência e a luz acende, ou toda vez que você assiste a TV, você está tendo uma prova viva da qualidade do setor elétrico que foi construído como descrito acima, e que agora querem vender a preços depreciados, entoando o mantra de que “estatal não funciona e empresa privada é eficiente”. Lembrando que assistir TV é apenas um conforto, mas a indústria brasileira depende umbilicalmente de energia, assim como o corpo humano depende do sangue.

Durante o período de expansão do sistema  elétrico, vigorou uma tarifa quase constante – diferente da tarifa volátil do atual sistema tarifário – que era composta de 3 parcelas: uma parcela que pagava a amortização, uma parcela que remunerava os custos de operação/manutenção e uma terceira parcela que remunerava os custos crescentes de implantação, uma vez que as usinas mais baratas foram construídas primeiro. As novas usinas eram de ser sempre, por padrão, um pouco mais caras que as anteriores. No entanto, com o passar do tempo, a tarifa média de uma empresa como Furnas tendia sempre a cair, em virtude do  peso crescente das usinas amortizadas versus usinas ainda em pagamento.

Criou-se assim, ao longo de décadas, um leviatã auto-suficiente, capaz de financiar seu próprio crescimento a tempo e a hora de atender ao crescimento da carga. Tirando o apagão do governo FHC – apagão este provocado justamente pelo sempre presente desejo de privatizar – esta necessidade estratégica do país sempre foi bem atendida. Até que, em 2012, o sistema foi  desmontado, pela decisão do governo Dilma de não renovar as concessões expiradas e de usinas amortizadas fornecerem energia a preço de custo. Isto é, a preço irrisório. Esta decisão só não foi catastrófica porque logo depois o país – e a carga elétrica –  pararam de crescer. Mas qualquer soluço de volta do crescimento vai imediatamente esbarrar na necessidade de crescimento vigoroso do setor elétrico.

Um parênteses para o governo Dilma. Pressionada pelo desenrolar da crise do subprime, Dilma incorreu no conhecido pecado capital do controle de preços. Fez a Petrobras vender derivados a preços subsidiados e faliu a Petrobras. Fez o setor elétrico vender energia a preço de custo e faliu o setor.

A situação que temos hoje é a holding insolvente e subsidiárias solventes, desde que operando com tarifas adequadas. A holding é insolvente porque cumpre sua missão  estatal de atender a áreas onde a iniciativa privada não chega e não quer ir.

Em resumo: as subsidiárias da Eletrobras continuam lá, gerando energia silenciosa e eficazmente. Para que este estratégico sistema possa se reconstruir em cima das bases sólidas que já tem, e garantir ao país que a carga crescente seja sempre bem atendida, basta que as concessões sejam renovadas e que tarifas adequadas sejam restabelecidas.

O liberalismo funciona em economias desenvolvidas, estáveis, onde as leis de mercado prevalecem. O sistema elétrico é essencialmente monopolista e é de se temer seriamente que um sistema totalmente privatizado resulte em tarifas elevadas e maus serviços. Os defensores do liberalismo dirão que para isto foi criada a agência reguladora. Mas é preciso observar que sempre existe a possibilidade de captura do regulador pelo regulado. Em alguns setores da economia brasileira este fenômeno parece já estar acontecendo.

Paulo Guedes já declarou em alto e bom som que sua intenção é privatizar tudo: Eletrobras, Petrobras, BB e CEF. Decisão temerária em nome de uma crença dogmática, sabendo nós que os recursos daí advindos serão sugados pelo buraco negro da dívida. O mesmo Paulo Guedes que vinha dizendo que o Chile era um caso de sucesso e que parece ignorar que os EUA, pátria do liberalismo, têm empresas estatais – por suprema ironia – exatamente no setor de energia hidráulica.

O que dizer do nosso setor financeiro cartelizado que, com juros selic a 5% a.a., cobra juros de 300% a.a. da camada mais pobre da população que atrasa uma prestação da TV? Apesar da suposta regulação do BC? Não seria este um caso claro de regulador capturado pelo regulado?

A privatização de setores estratégicos tira do Estado sua soberania em casos excepcionais. O que seria do Brasil se não tivesse a Petrobras para nos dar auto-suficiência quando fomos apanhados na armadilha cambial do choque do petróleo em 1973? O que será do Brasil se precisar aumentar a capacidade instalada de geração para atender um crescimento chinês como tivemos na década de 60 e que nunca mais ocorreu a partir de 1980 em razão da crise cambial acima mencionada? Será que o capital privado vai responder ao chamado do governo? Estão aí os recentes leilões de campos de petróleo para nos alertar.

Não seria muito mais sensato manter na posse do governo a capacidade de geração hidráulica do sistema eletrobras? Ela não é responsável pelo deficit fiscal e já foi perigosamente reduzida para apenas 31% do total, em virtude da privatização das geradoras estaduais e do crescimento de energias alternativas caras. Lembrando que a base hidráulica é essencial para complementar a volatilidade circadiana ou sazonal das energias alternativas.

 (*) Ex – Chefe da Coordenação do contrato das Estações Conversoras de Itaipu (CI.T) em Furnas

 

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