Privatizar não é a solução – A Falácia Dos Telefones – Artigo

José Antônio Feijó de Melo

 Recife, setembro/2017

        Mais uma vez as aves de rapina estão à espreita com suas garras afiadas tentando abocanhar o patrimônio público, com o velho discurso da privatização. Agora, entre outras, a bola da vez é a Eletrobras e suas subsidiárias, empresa que na sua essência foi constituída para ser a executora da política do governo federal para o serviço público de energia elétrica no País.

        Os argumentos apresentados pelos “pontas de lança” da privatização são sempre os mesmos, na sua maioria falsos ou constituídos de meias verdades, sempre atribuindo todos os males à atuação do estado e todas as virtudes à iniciativa privada, pelo que se justificaria sempre a entrega total das atividades econômicas ao setor privado, ficando para o estado apenas às ditas atividades típicas de governo, basicamente segurança, educação e saúde.

         Em termos práticos, nos últimos anos os privatistas costumam apresentar como a melhor prova das vantagens da privatização o suposto sucesso do processo aplicado nas telecomunicações brasileiras no governo FHC, salientando-se que tudo de bom teria ocorrido com a passagem para o setor privado, enquanto tudo de ruim que acontecia antes se devia exclusivamente ao fato de que a atividade estava em mãos de empresas estatais.

Esta idéia tem sido repisada e constantemente repassada para a opinião pública por todos os meios de divulgação possíveis, como se fosse uma verdade absoluta, o que de fato não é. Não é absoluta e nem mesmo verdade, como será demonstrado a seguir.

        A história das telecomunicações brasileiras atravessa praticamente todo o século vinte e não pode ser resumida no quadro particular que se observava na primeira metade da década de 1990, quando de fato o setor, como toda economia brasileira, passava por um momento de extrema debilidade, cuja deterioração possibilitou aos defensores da privatização induzir a maioria da população brasileira sobre o suposto acerto da medida.

        Além do mais, o que aconteceu depois também não foi, como pode parecer, conseqüência de uma suposta superioridade da iniciativa privada sobre as empresas estatais quanto à capacidade de administrar o setor, como desejam cantar em prosa e verso os defensores da privatização. Pois, se assim fosse, o setor de comunicações nem sequer teria ido parar nas mãos das estatais. Teria permanecido privado como nascera muitos anos antes e permaneceu até 1972.

        Isto mesmo, por mais surpreendente que possa parecer aos mais jovens, o setor de comunicações no Brasil, desde as suas origens ainda no final do século dezenove, sempre foi privado, 100% privado. E como tal, fracassou! Ainda no final dos anos 60 do século passado, as companhias telefônicas estaduais eram todas privadas, bem como empresas que operavam as ligações interurbanas. E o serviço era péssimo. Na verdade constituía um sério entrave ao desenvolvimento do País. Em 1970, no Recife e em muitas outras capitais, depois de retirado o fone do gancho, o sinal de discagem demorava às vezes mais de 30 minutos.  Para poder se comunicar entre a sua sede no Rio de Janeiro, os escritórios em Recife e as Usinas de Paulo Afonso, a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco – CHESF tinha um sistema próprio de rádio SSB (single side band). Muitas empresas possuíam sistemas similares, pois as companhias telefônicas não tinham condições de prestar o serviço de forma satisfatória.

        E não era uma questão de limitação do estágio da tecnologia de então.  A tecnologia já existia e estava em uso em outros paises, que possuíam um bom serviço. Mas as nossas empresas privadas nacionais e estrangeiras, por esta ou aquela razão, não investiam o suficiente para atualizar e desenvolver os seus sistemas e o resultado era um péssimo serviço de comunicações.

        Foi exatamente por isto que o estado interveio. Já no governo Goulart o assunto estava em debate. Mas, só com os militares pós 64 veio a ter o andamento que precisava. Primeiro foi criado o Ministério das Comunicações e também a Embratel, ainda nos anos 60.

        A Embratel foi a primeira estatal do setor, criada com a finalidade específica de integrar todo o País com a implantação de uma moderna rede de microondas terrestre que iria permitir as comunicações interurbanas de alta qualidade (então praticamente inexistentes), bem como a transmissão de dados (sim, já existiam computadores) e também de sinais de televisão, além das comunicações internacionais via satélite (o Intelsat, via a estação de Tanguá ). E tudo isto foi cumprido conforme planejado.

        Em 1969, graças à estatal Embratel, quase todo Brasil assistiu ao vivo pela TV o homem chegar à Lua. Logo as estações de televisão passaram a transmitir programas em rede nacional. E em 1970, todos devem lembrar a grande conquista da Copa do Mundo no México, assistida ao vivo. Ao mesmo tempo, se falava DDD e DDI com toda facilidade e qualidade, para todo o Brasil e o Mundo.

        Enquanto isto, os sistemas telefônicos locais, cujas companhias permaneciam privadas, continuavam sendo o gargalo, com um serviço péssimo, incompatível com o sistema interurbano. Em Pernambuco era a Companhia Telefônica de Pernambuco-CTP. Alguém se lembra da Companhia Telefônica Brasileira, a CTB? Pois é, Falava-se melhor de um estado para o outro, do que de uma rua para outra de um mesmo bairro, de uma mesma cidade. E não havia telefones novos para se “comprar”. Foi aí que se impôs a solução estatal também para as companhias telefônicas privadas estaduais.

        Entre 1971 e 1972, coincidentemente o período mais negro da ditadura, criou-se a Telebrás, holding que encampou as concessões das referidas empresas privadas estaduais e, faça-se justiça, colocou na direção da maioria delas técnicos competentes, muitos deles engenheiros militares com cursos de pós-graduação e especialização em eletrônica e telecomunicações no exterior (na época, tais cursos estavam apenas começando no Brasil). Em pouco tempo essas empresas estavam reorganizadas e modernizadas tecnologicamente e, assim, os sistemas locais alcançaram o mesmo nível do que já existia no sistema da Embratel. A partir dali, as telecomunicações brasileiras, em mãos de empresas estatais, viveram um período áureo, reconhecido por todos.

        Mas isto não aconteceu por um passe de mágica, mesmo tendo ocorrido no período do chamado “milagre econômico”. Tudo aconteceu porque houve decisão política para fazer, competência técnica e, principalmente, pela viabilização de um esquema de financiamento que a iniciativa privada não teria tido condições de equacioná-lo em sua plenitude. E, talvez o mais importante, a questão crucial. Não precisando correr atrás do lucro nos níveis de mercado, o capital público podia contentar-se com taxas de retorno mais modestas, resultando em tarifas justas e baixas, que de outra forma alcançariam patamares incompatíveis com o estágio de desenvolvimento da economia nacional e o nível de renda da maioria da população. Qualquer comparação com o que acontece hoje com as próprias telecomunicações e, particularmente, com o setor elétrico, não seria despropositada.

         E como foi montado este esquema de financiamento? O modelo foi suportado basicamente em duas fontes de recursos. Primeiro, o Fundo Nacional de Telecomunicações – FNT, alimentado pelo Imposto Único Sobre Telecomunicações, cobrado diretamente nas contas dos serviços existentes e vinculado específica e unicamente a este fim: financiar a expansão do sistema de telecomunicações. Segundo, pela própria população, que contribuía para os investimentos comprando ações das empresas (aliás, esta participação não era inédita, pois fora utilizada por algumas empresas privadas, mas que por si só não era suficiente para arrecadar o volume de recursos necessários). A verdade é que não se comprava telefone, ou a linha, como também se costumava dizer. O que se comprava eram ações das empresas, associadas ao direito de uso de uma linha. Estas ações eram de fato um investimento, uma poupança “forçada”, rendiam juros e dividendos e posteriormente poderiam ser vendidas como na verdade o foram.

        Em compensação a essa obrigatoriedade, com as linhas em operação as tarifas mensais pagas pelos usuários eram extremamente baixas, pois os custos operacionais de uma companhia telefônica são realmente baixos. O caro era o investimento, para o qual o usuário já tinha participado. Assim, tarifas justas e baixas mantinham o sistema saudável.

        Com a crise geral da economia brasileira nos anos oitenta do século passado, que os tornariam conhecidos como a “década perdida”, por ordem de um certo poderoso Ministro da Economia o Imposto Único Sobre Telecomunicações veio a ser desvinculado do FNT e a sua arrecadação passou a ser jogada direto para o “bolo geral” do tesouro. Assim, o setor perdeu a liberdade sobre a sua principal fonte de financiamento, ficando dependente das consignações orçamentárias sempre sujeitas a contingenciamentos. Como a participação dos usuários sozinha não era suficiente, os investimentos não puderam ser continuados no ritmo previsto e as pessoas que haviam “comprado” os seus telefones (na verdade as ações) não puderam ser atendidas nos prazos corretos, que foram cada vez mais sendo postergados. E o pior ainda veio com a Constituição de 1988, cujo novo regime tributário consagrou de vez o fim dos “Impostos Únicos”, transformando-os em ICMS destinados diretamente aos tesouros estaduais, geralmente com alíquotas muito maiores.

        Assim, como aconteceu com outros setores (o rodoviário, por exemplo, foi destroçado até hoje com o desaparecimento do Imposto Único sobre Combustíveis e Lubrificantes, que alimentava o correspondente Fundo Rodoviário Federal), o setor de telecomunicações teve quebrada a espinha dorsal do seu esquema de financiamento e tornou-se inadimplente perante os que haviam “comprado” as novas linhas, apenas conseguindo, a duras penas, manter uma razoável qualidade nos serviços existentes.

        A crise total que sobreveio na expansão do sistema foi, portanto, conseqüência absolutamente natural. Assim, depois do brilhante sucesso da década de 70, o setor de telecomunicações estatal entrava nos anos 90 praticamente desmoralizado perante a população, sobretudo depois dos pronunciamentos depreciativos do então Presidente Collor.

        Nestas condições, não foi difícil ao governo FHC, com sua filosofia neoliberal, promover as medidas para privatização do setor da forma que convinha aos interessados, recorrendo antes a uma “mágica” simples, criada pelo seu Ministro das Comunicações. Investiu vários bilhões nas empresas telefônicas, colocando-as em ponto de bala para atender toda aquela demanda represada, mas não realizando de fato a instalação dos aparelhos (a propósito, ver o livro O Brasil Privatizado, de autoria do respeitado e saudoso Jornalista Aloysio Biondi, publicado em abril de 1999, com todos os detalhes a respeito dessa operação).

        Note-se que o governo FHC tinha reais condições para fazer tal investimento, pois, montado no sucesso do controle da inflação, como parte do Plano Real editado ainda no governo Itamar Franco, dispunha do chamado Fundo Social de Emergência, que dava direito ao Poder Executivo de gastar, sem prévia destinação orçamentária, até 20% de toda a arrecadação dos impostos federais. E FHC realmente gastou, inclusive no sistema de telefonia, haja vista a enorme dívida que deixou para o Povo Brasileiro, cujo montante e o seu conseqüente serviço até hoje têm prejudicado o crescimento da nossa economia. Aliás, esse Fundo, que seria de emergência, acabou mudando de nome e permanece vivo até hoje. É a DRU, a Desvinculação da Receita da União.

        Então, com as empresas rearrumadas por dentro, FHC privatizou-as. Daí, rapidamente elas começaram a instalar os telefones que antes haviam sido “vendidos” e então já se encontravam estocados em almoxarifado. Compreensivelmente, a população, atendida nos seus interesses, foi levada a creditar o resultado à “eficiência” das empresas privadas, em contraste com a “ineficiência” das estatais. Juntem-se a isto as facilidades resultantes da evolução tecnológica ocorrida no período, incluindo o extraordinário desenvolvimento da informática, e o quadro estava perfeito para que somente se enxergassem aspectos positivos na privatização das telecomunicações brasileiras.

        Quanto à telefonia móvel, o chamado celular, cabe explicitar que quando eles surgiram no final dos anos oitenta do século passado as empresas estatais de telefonia brasileiras já se encontravam bastante fragilizadas pela crise econômico-financeira nacional, conforme acima mencionado. Mesmo assim, elas começaram a implantá-los, quase ao mesmo tempo em que no primeiro mundo. Tratando-se, porém, de uma tecnologia nova, seria absolutamente normal esperar que o preço inicial do serviço sofresse o impacto do alto custo de implantação, mas que tenderia naturalmente a cair, independentemente de quem o prestasse – se empresa pública ou privada, como veio de fato a ocorrer, particularmente em virtude dos espetaculares ganhos tecnológicos observados.

        Registre-se, ainda, que o quadro atualmente observado no setor das telecomunicações brasileiras não é estável. Desde a privatização têm acontecido muitas transformações, com empresas sendo criadas, vendidas, compradas, fundidas, incorporadas, desincorporadas e desaparecidas, tudo dentro de um processo que, quando nada, mostra justamente a sua instabilidade. Mas, toda essa movimentação de fato possibilitou que as dívidas contraídas pelos novos donos para adquirir as empresas fossem transferidas integralmente para as próprias empresas. Na prática, isto significou a necessidade do estabelecimento de tarifas proporcionalmente mais elevadas, de modo a garantir altas taxas de retorno, suficientes para produzir saldos financeiros capazes de cobrir novos investimentos, assegurar o sagrado lucro dos acionistas e, além disso, pagar os pesados encargos da dívida que fora constituída para que elas próprias tivessem sido adquiridas. Aos novos donos, portanto, restaram apenas as benesses dos lucros.

                As considerações acima tiveram como finalidade principal estabelecer a verdade sobre a evolução do setor de telecomunicações brasileiro, ressaltando o importante papel desempenhado pela ação do estado a partir do final dos anos 60 do século passado, para afinal concluir que nem os graves problemas ocorridos a partir dos anos 80 foram devidos a uma “ineficiência” intrínseca às empresas estatais, nem a recuperação observada nos anos 90 foi uma decorrência direta da privatização e da decantada “eficiência” das empresas privadas.

Como foi demonstrada, a recuperação do sistema telefônico brasileiro poderia ter ocorrido do mesmo modo com as empresas estatais e, neste caso, teriam sido evitados os grandes impactos negativos da privatização sobre a indústria nacional de equipamentos de telecomunicação, que foi praticamente destruída, provocando o fechamento de muitos postos de trabalho. Além disso, ter-se-ia evitado também a enorme perda de divisas, resultante da remessa de lucros para o exterior. E, ainda mais, provavelmente estaríamos hoje pagando tarifas bem mais baixas.//

 

       

 

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