Reforma do setor elétrico: duvidosa, inadequada e imprópria – Artigo

Por Ronaldo Bicalho (*)

A reforma do setor elétrico brasileiro proposta pelo atual governo é duvidosa em termos dos resultados que ela promete entregar, inadequada às peculiaridades físicas e técnicas do nosso setor elétrico e inapropriada às incertezas do momento atual do setor elétrico aqui e no mundo.

A reforma atual representa uma retomada extemporânea das reformas dos anos 1990s, baseadas na liberalização dos mercados elétricos e na privatização das empresas estatais presentes nessa atividade econômica.

Esse retorno ao passado não se justifica em termos da experiência acumulada nos últimos vinte anos tanto aqui quanto no mundo.

A introdução da competição no mercado elétrico, pedra de toque das políticas liberais para esse mercado, baseada na hipótese de que a eletricidade seria uma mercadoria como outra qualquer e que, portanto, o mercado elétrico seria um mercado como outro qualquer, se demonstrou extremamente difícil de ser implementada.

O problema é que a eletricidade não é uma mercadoria como outra qualquer e, portanto, o mercado elétrico não é um mercado como outro qualquer.

As dificuldades de construir uma imitação de um mercado competitivo foram ficando cada vez mais evidentes a partir, principalmente, da retumbante crise californiana, no início da década passada. Essas dificuldades se traduziram em uma agenda de complexidade crescente na qual vão se adicionando novos módulos (mercado de capacidade, leilões, mercado de diferenças, etc.) ao projeto original (o mercado apenas de energia), no intuito de fazer um simulacro de mercado cada vez mais próximo do que seria um mercado de energia elétrica competitivo.

O problema desse esforço de engenharia de mercado é a inflação de normas, regras, procedimentos e aparatos regulatórios que se traduz em uma elevação significativa dos custos institucionais desse processo de imitação de uma estrutura competitiva. Essa elevação coloca sérias dúvidas sobre a racionalidade de uma estratégia de liberalização dos mercados elétricos que necessita da criação contínua de novos puxadinhos, penduricalhos e badulaques para cobrir as deficiências e fragilidades intrínsecas ao projeto de mercado original.

Dada a complexidade técnica e econômica presente nas transações que envolvem a eletricidade, o mercado elétrico sempre é uma construção institucional, requerendo, de forma incontornável, a predefinição de regras e normas para o seu funcionamento. Portanto, por melhor que seja essa predefinição, ao final, esse mercado será sempre uma imitação, uma caricatura, um arremedo de mercado.

Nesse contexto, quanto mais sofisticada a imitação maior o custo e a complexidade da sua construção. Complexificação essa para a qual não há nenhuma garantia de sucesso em termos de produção de eficiência econômica; dada a óbvia natureza incerta desse processo de criação institucional de mercados.

No modelo tradicional, a imitação de mercado chegava no máximo ao mercado monopolista. Mecanismos de impedimento à entrada e tarifação pelo custo de serviço eram soluções simples de um projeto de mercado essencialmente “modesto”. Pode parecer uma solução “tosca”, porém foi a partir dela que se deu toda a implantação e expansão do setor ao longo de grande parte do século XX.

A crise desse modelo e a adoção do modelo liberal nos anos 1990s, com sua ênfase na concorrência, introduziu no desenho dos mercados elétricos um forte viés de complexificação crescente das instituições do setor, inflacionando regras, normas e organizações para-setoriais.

Nesse sentido, a liberalização dos mercados como proposta de política pública para garantir a segurança do abastecimento elétrico, tanto em termos de disponibilidade física quanto de acessibilidade econômica (quantidade e preço), foi perdendo a sua força ao longo dos últimos trinta anos, fruto do reconhecimento de que os seus custos são muito mais elevados do que os esperados e os seus benefícios são muito menores do que os prometidos.

No caso do Brasil, a natureza hídrica do setor elétrico brasileiro, associada ao modelo técnico-econômico-institucional fortemente baseado na otimização centralizada dos reservatórios, se, por um lado, imprimiu um caráter peculiar e único às atividades elétricas no país, por outro, gerou uma inadequação à introdução da competição nesse mercado intrínseca ao nosso setor.

Para um setor concebido e implantado com bases em uma forte coordenação, estruturada em termos da cooperação característica das atividades sustentadas a partir de uma visão coletiva, a introdução da competição, estruturada em termos do enfrentamento característico das atividades sustentada a partir de uma lógica individual, implode o sistema. Pelo simples fato de que detona a coluna que estrutura, técnica e economicamente, o setor elétrico brasileiro.

As especificidades, as singularidades e as peculiaridades do setor elétrico brasileiro não constituem uma figura de retórica. O fato de sermos um sistema elétrico único no mundo tem consequências técnicas, econômicas e institucionais.

A inadequação das propostas de liberalização dos mercados como elemento estruturador de políticas públicas para o setor elétrico brasileiro nasce do simples reconhecimento dessa singularidade e de suas consequências.

Contudo, essa não é a questão fundamental. Centrar o debate na introdução da competição, independentemente do fato dela ser enganosa em termos dos seus resultados e inadequada em termos das singularidades brasileiras, seria reviver o debate ultrapassado dos anos 1990s. Um remake requentado, extemporâneo e, acima de tudo, inapropriado às incertezas do momento atual do setor elétrico aqui e no mundo.

Ao longo dos últimos vinte anos, o contexto energético evoluiu, introduzindo possibilidades de mudanças que vão muito além daquelas de caráter institucional/ideológico que marcaram os anos 1990s.

A transição energética aponta mudanças na base técnica do setor elétrico, com fortes implicações na forma como ele e suas empresas se organizam, assim como, na maneira como ele é regulado e a partir da qual são definidas as políticas públicas a ele direcionadas.

Portanto, a agenda do setor mudou concretamente nos últimos vinte anos e se tornou muito mais difícil e complexa do que era anteriormente.

A trajetória das reformas na Inglaterra demonstra pedagogicamente essas dificuldades que fazem com que o conhecido pragmatismo britânico saia de uma visão liberal extremada, nos anos 1980s, na qual a própria regulação era apenas um recurso passageiro na transição entre o tradicional mercado monopolista e o novo mercado concorrencial elétrico, para uma abordagem mais realista. Na última reforma implementada nesta década, a presença de elementos de intervenção do Estado para garantir a segurança do abastecimento é muito maior, reduzindo inclusive o protagonismo do icônico regulador inglês em prol de um protagonismo maior da política energética.

A experiência alemã, de forte presença da política energética, a energiewende, com seus gigantescos incentivos à introdução das renováveis, não parece corroborar com a tese de apostar todas as fichas no mercado como solução.

As experiências inglesa e alemã colocam uma questão fundamental acerca do debate sobre a política energética.

Quando os problemas vitais da política energética estão em jogo (segurança energética); quando um imperativo superior é colocado (descarbonização da economia) e quando investimentos importantes devem ser realizados (assegurar uma visão de longo prazo aos investidores), a política retoma o controle e a implementação de uma estratégia clara e definida tem precedência sobre as orientações ideológicas.

E é disso que se trata. Da superação de um debate ideológico sobre as vantagens/desvantagens do mercado por uma abordagem concreta e calcada nos problemas reais impostos pela transição energética.

Essa transição é que está no centro do debate energético hoje no mundo; e não a concorrência. Essa última estava no centro há vinte anos; porém perdeu esse protagonismo em função da não entrega dos resultados prometidos e da maré verde que impôs a sua própria agenda.

Nesse sentido, as propostas de liberalização de mercados elétricos, como a proposta do atual governo brasileiro, não se sustentam sob a ótica de uma análise que contemple a agenda do setor elétrico no mundo. A concorrência pode ser um ponto dessa agenda, mas jamais o seu centro estruturante.

Considerando que o esgotamento do nosso modelo hidráulico tradicional é o problema central a ser enfrentado por qualquer política pública para o setor, mais do que extemporânea, inadequada e imprópria, a proposta do atual governo de acelerar a liberalização do mercado elétrico brasileiro é irresponsável e coloca em risco a segurança de abastecimento de energia elétrica do país.

Somente o estado atual de desagregação completa das nossas instituições justifica tamanho descalabro.

(*) Diretor do Instituto Ilumina e pesquisador do Instituto de Economia da UFR

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