Roberto D`Araújo: Freud e a jabuticaba


Roberto Pereira D’Araujo, do Ilumina: Freud e a jabuticaba
O debate sobre questões estruturais do mercado de energia deve ser feito no mais alto nível. Consideramos que o modelo atual ainda tem muitos problemas, mas ao apresentar soluções de outros países, é preciso um mínimo de cuidado


Roberto Pereira D’Araujo, para a Agência CanalEnergia, Artigos
22/01/2009



O debate sobre questões estruturais do nosso mercado de energia deve ser feito no mais alto nível. Consideramos que o modelo atual ainda tem muitos problemas, mas, ao apresentar soluções de outros países, é preciso um mínimo de cuidado. A seguir alguns argumentos sobre as peculiaridades do nosso sistema e sobre as conseqüentes dificuldades de se pretender implantar estruturas de mercado de países de base térmica ou mesmo hídricos, mas com características em nada semelhantes ao nosso.


A capacidade de armazenamento de energia dos nossos reservatórios equivale a aproximadamenteseis meses de carga do sistema interligado. Ou seja, se, por absurdo, os rios brasileiros secassem, os reservatórios, cheios, seriam capazes de fornecer energia por mais ou menos 180 dias. Esse armazenamento já foi muito maior. No início da década de 80, chegava a 24 meses. Evidentemente, de lá para cá, a carga aumentou enormemente e a capacidade de reserva estagnou em função da já esperada dificuldade de se construir usinas com grandes reservatórios.


Entretanto, entre os principais sistemas do planeta, ainda somos recordistas em “guardar” energia elétrica futura. Apenas um sistema tem características semelhantes, mas que, mesmo assim, só é capaz de reservar água equivalente a 3 meses de carga. Trata-se da província de Quebec. Claro, há sistemas menores com essas características, mas, entre os grandes, somos o único.


O fato de termos um clima tropical também implica em variações da energia natural afluentes muito maiores do que os nossos semelhantes do hemisfério norte. Grosso modo, no sistema sudeste e centro-oeste a relação entre a maior e menor energia natural afluente é de 3:1. No sul, de 6:1. No norte de 7:1. Qual o significado disso? Bem, em primeiro lugar, ótimo que tenhamos reservatórios grandes, pois já imaginaram o desperdício que seria se não tivéssemos lugar para guardar toda essa água que chega? Em segundo lugar, existem combinações de armazenagem e energia afluente que fazem com que praticamente sejamos capazes de dispensar todas as outras formas de geração. Bastaria a água. Em terceiro lugar, ainda bem que essas variações não são coincidentes e, através do sistema de transmissão, podemos guardar a água onde for mais conveniente. Um sistema, uma só lógica.


Ora, isso nos trouxe vantagens, mas também um enorme dilema, além da enorme variação de capacidade de oferta. Guardar ou usar a água? Se a decisão é guardar, arrisca-se a jogá-la fora. Se usar muita, pode-se passar por dificuldades futuras. Para resolver esse problema criou-se toda uma complicada metodologia de tratamento probabilístico de avaliação das conseqüências futuras no presente. Adotou-se um operador nacional do sistema que centraliza as decisões para otimizar o sistema, tal qual fosse ele o dono único de todas as usinas da rede. Essa metodologia serviu e ainda serve muito bem para a operação do sistema. O problema começa quando ela é usada para outros fins.


Na grande maioria dos mercados de países desenvolvidos há a correspondência entre contrato e despacho físico. Aqui, uma usina não vende a sua própria energia. Vende um valor que procura dar conta da sua “responsabilidade” sobre o total, a “energia assegurada”. No caso das térmicas, é evidente que parte desse “certificado” é energia gerada pelas hidráulicas e, portanto, sua fixação envolve um risco. Lembrem que esses valores vêm de simulações da operação de todo o sistema vários anos à frente. Dependem fortemente do custo marginal de operação (CMO), uma variável aleatória misteriosa, pois, até hoje, não houve um aprofundamento de como ela se forma e que alternativas existem no seu cálculo. Na “emissão” desse certificado, além da incerteza sobre a operação no futuro, ainda se depende de parâmetros muito subjetivos, tais como o custo do déficit e a taxa de desconto do futuro. Outros valores, evidentemente, outros resultados.


Infelizmente o problema não se resume a essas incertezas. Ainda temos questões graves a resolver. As simulações que definem a energia assegurada não obedecem às mesmas regras usadas pelo ONS, muito mais rígidas. Segundo a própria metodologia, caso fossem todas consideradas, a energia assegurada total deveria ser bem menor.


O CMO é o “preço” pelo qual o operador decide guardar ou usar água. Para estragar ainda mais qualquer semelhança com os outros mercados, além de ponderador das fórmulas mercantis, ele é também o preço de curto prazo do mercado. Não pode ser determinado sob a ótica entre compradores e vendedores porque surge de um modelo computacional. Afinal, trata-se um preço monopolístico por força da natureza do sistema. Pode-se não aceitar essa particularidade, mas seria como lutar contra a lei da gravidade.


Dessa arriscada combinação de modelagem e peculiaridade do sistema brasileiro, já surgiram muitas instabilidades e distorções no mercado. Críticas à estratégia de operação em função de interesses comerciais. Preços ora extremamente baixos, incentivando descontrato ou acertos de curto prazo, ora nas alturas causando o caos como no início de 2008. Térmicas com “certificados” super avaliados. Importação de energia com certificado quando, na realidade não havia energia. Até os leilões, têm uma particularidade brasileira. Ganham os investidores com o menor “índice custo benefício” (ICB), que, além de depender da “virtual” energia assegurada, também é função de simulações de operação no futuro. Em parte, distorções que resultaram na enxurrada de térmicas a óleo combustível, têm origem em problemas nessa metodologia. A exclusão das usinas eólicas também é fruto de hiatos metodológicos. Percebam que o modelo fez a perigosa mistura da operação e da comercialização, supondo que são independentes. No fundo, uma hipótese inconsistente, uma vez que o CMO é parte integrante de todas as fórmulas mercantis.


A distribuição de probabilidades do preço de curto prazo mostra que há muito mais chances de ocorrência de valores irrisórios do que preços altos, mesmo quando há insuficiência de oferta! Basta chover muito! Ficar “exposto” ao spot nesse mercado é, na maioria do tempo, altamente vantajoso. Isso permite a possibilidade de que alguém possa pagar apenas R$20/MWh enquanto a grande maioria paga tarifas superiores a R$ 300/MWh, exigindo uma rigorosa monitoração de lastro. Enfim, um rol de situações completamente distintas dos mercados de países desenvolvidos.


Somos mesmo um sistema diferente. Não porque somos hidroelétricos, mas sim porque temos uma reserva compartilhada de dimensões significativas na determinação da estratégia futura. Comparar realidades sem se dar conta das profundas diferenças pode ter excelentes intenções, mas deixa muitas perguntas não respondidas. Temendo que alguns confundam o conceito com alguma tendência ideológica, na realidade, nosso sistema geração-transmissão tem fortes características de monopólio natural. Por isso exigiu um operador nacional, uma só metodologia e um acordo de mercado.


Mesmo nesse mimetismo, ainda ocorrem problemas. Por isso, de tempos em tempos alguém volta com a idéia de aprofundar a adaptação, desafiando ainda mais a natureza do sistema. Muitas soluções já foram engavetadas por total incapacidade de resultar em algo simples. Lógico que soluções mais aderentes à realidade seriam possíveis. Sem espaço para detalhar, mas propondo que o debate seja mantido, parece evidente que a grandeza a ser comercializada por todas as usinas deveria ser o MW e não um possível e provável MWh dependente de uma simulação futura. Só que algumas dessas soluções implicariam em outros arranjos institucionais que, por opção, não foram nem colocados em debate pelo governo. No mínimo, os critérios de garantia, diferentes entre a operação e o planejamento, deveriam ser profundamente estudados e debatidos antes de qualquer mudança mais drástica.


Por todos esses argumentos, nem Freud é capaz de mudar a realidade. Lamentavelmente, jabuticaba e setor elétrico peculiar, só mesmo no Brasil.


Roberto Pereira D’Araujo é conselheiro do Ilumina- Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético

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