Setor elétrico brasileiro: estado atual e sugestões – Uma análise do documento da PSR

O relatório foi preparado para um projeto da Abrace de 2014 chamado Visões do Setor Elétrico. Está disponível em

http://visoesdosetoreletrico.com.br/pdfsespecialistas/PSR.pdf.

É essencial que o Ilumina comente esse documento não só pela importância da consultoria PSR, mas por conter um excelente diagnóstico da presente crise. Numa primeira fase, vamos comentar a gênese da atual confusão.

Nesse texto, um didático “organograma” da crise ajuda a entender como chegamos à desorganização atual. As cores ajudam a entender o problema.

 

É preciso explicar que grande parte dos problemas atuais surgiram a partir da edição da MP 579 (intervenção nos preços para reduzir tarifas) que criou duas classes de usinas hidroelétricas.

Classe A – Amortizadas – Usinas cuja concessão estava próxima do seu término e cuja propriedade foi transferida à união. As empresas que as construíram passam a ser apenas administradoras de operação. Os custos da energia dessas usinas foram determinados por um modelo matemático genérico e simplista que desprezou todas as singularidades e estabeleceu “tarifas” extremamente baixas.

Classe B – Demais usinas hidroelétricas.

Uma análise pelas cores:

  • Vermelha: A atual confusão se implantou a partir da desastrada Medida Provisória 579. Ela já começa com uma grande incoerência ao direcionar cotas partes da energia das usinas Classe A ao mercado cativo. Não há sequer uma justificativa, pois, se o argumento central dessa “sinecura” seria a amortização, todos teriam esse direito.
  • Além disso, as usinas Classe A abrigam um “presente de grego”, pois transferem ao consumidor o risco hidrológico quando sua geração é inferior à garantia da usina.
  • Houve diminuição da oferta hidroelétrica, ocorrida em parte por baixa hidrologia, mas também por um tipo de operação nos anos anteriores que privilegiou o abuso da reserva hídrica (ver gráfico abaixo).
  • Lembrar que “caixas d’água” também se esvaziam se há um abuso da sua reserva. Apenas em outubro de 2012, coincidentemente no mês seguinte ao anúncio da MP 579, as térmicas vieram “socorrer” a reserva esgotada.
  • As usinas Classe A passaram a ser um problema para as distribuidoras, pois as empresas tiveram que assumir a diferença de preço da energia das térmicas (até 6 vezes mais cara).

  • Azul: Depois de quase 3 anos gerando muito acima da sua garantia (ver gráfico acima), as hidroelétricas classe B ficam endividadas por serem obrigadas a comprar energia das térmicas para “preencher” o déficit da garantia. Apesar da conta bilionária, ninguém se perguntou porque o período de saldo não gerou nenhuma compensação para o período de déficit. Enquanto essa falta de curiosidade permeava o ar, em 2011, véspera da crise, o PLD (preço de curto prazo no mercado) valia menos de 10% do custo da energia no mercado cativo! Evidentemente, como no período de “benesse” a energia barata foi para o mercado livre, essa conta bilionária também foi “empurrada” para os consumidores cativos.
  • Amarela: Os consumidores brasileiros foram obrigados a fazer empréstimos para pagar os custos de sua conta de luz, uma decisão inédita no planeta. O Brasil passa a ser o único país a exigir que consumidores de eletricidade paguem juros sobre kWh consumidos. Além disso, parte dos recursos para manter a pretendida redução tarifária vieram de impostos, afetando também os contribuintes.

Esse é um resumo do que ocorreu recentemente. Entretanto, o verdadeiro “big-bang” tem origem em outros tempos passados. O gráfico abaixo, indexado com algarismos romanos, ajuda a entender essa triste trajetória

I – Modelo Mercantil: Claro que há uma história ainda mais antiga, mas muito do que ocorre hoje tem origem na reforma mercantil de 1995. Seguindo uma tendência internacional que não contestamos, o Brasil resolveu adotar a filosofia de que a geração de energia é um produto competitivo. Tal sistema funciona razoavelmente bem em sistemas térmicos, mas o caso brasileiro apresenta singularidades que transformam essa intenção num modelo muito complexo. A razão é o funcionamento integrado de um sistema hidrotérmico sob hidrologia tropical que apresenta características de cooperativa. Infelizmente, a escolha feita na época foi a de estimar um “certificado” fixo associado a cada usina que pudesse representar a importância de cada usina nessa cooperativa. Essa escolha ganhou um valor econômico que fez com que não houvesse uma revisão significativa desses certificados. Ao mesmo tempo, o sistema integrado vem se alterando principalmente pelo fato de que é impossível manter um crescimento da reserva par e passo do aumento da carga. Portanto, hoje, o nosso estoque é bem menor do que era há uns 10 anos. Nossa opinião é a de que dificilmente garantias físicas determinadas no passado poderiam ficar inalteradas. Esse engessamento acabou por criar encargos de energia de reserva inexistentes anteriormente para compensar super avaliações de garantia de algumas usinas.

II – Racionamento: Em 2001, com causas que não caberiam nesse texto, o Brasil enfrentou um racionamento de 25% de sua carga. Não há registros dessa profundidade de corte sem os eventos de sérias secas ou guerras. No término do decreto do racionamento observou-se que a carga havia “encolhido” em 15%. Apenas para dimensionar tal recuo, esse crescimento é equivalente a aproximadamente 4 anos de crescimento histórico.

III – Descontratação: Em 2003, apesar das evidências de que uma parte da carga havia “desaparecido”, foi mantida a descontratação majoritária das usinas da Eletrobras. Como no sistema brasileiro as usinas não vendem a sua geração, elas continuaram gerando energia sem contrato e recebendo para isso o PLD (preço spot), que na época esteve sempre abaixo de R$ 10/MWh. Na prática, contratos anteriores no entorno de R$ 60/MWh foram substituídos por contratos bem mais caros.

IV – Leilão de energia existente: Apenas no final de 2004, o governo resolveu fazer um leilão para recontratar a energia das usinas que perdiam suas receitas, mas eram obrigadas a gerar. Evidentemente, com a queda da demanda, não se conseguiu contratar toda a garantia física das estatais que ficaram com “sobras” até 2008. Consequentemente, com a ocorrência de referências de preços tão baixos, o mercado livre explodiu. De cerca de menos de uma dezena de agentes passamos a ter quase um milhar. Até 2012, data final dos contratos, uma profunda alteração da estrutura de mercado foi implantada no Brasil, pois quase 30% de toda a carga migrou para o mercado livre. Apesar dessa migração, não houve a percepção de que esse mercado fosse capaz de induzir uma expansão do parque gerador.

V – Leilão por ICB: Em 2008, talvez percebendo que o sistema começava a apresentar sintomas de risco, o governo, sempre acreditando que o mercado sabe melhor o que escolher, fez um leilão genérico para contratação de novas fontes. Para compatibilizar as regras de leilão com as singularidades brasileiras, adotou-se um índice custo benefício que, assim como os certificados de garantia física, pretendem contratar as fontes mais adequadas para o sistema. O resultado surpreendeu ao se perceber que 20% da energia contratada provinha de óleo combustível e diesel. O grande problema é que, quando se contabilizam usinas caras na oferta num sistema onde, frequentemente, hidráulicas geram no seu lugar, está se assumido um possível esvaziamento da reserva. Essa foi uma das causas da operação “predatória” que se observou no período 2009 – 2012.

VI – MP 579: A partir dessa medida, como explicado no próprio texto da PSR, houve uma avaliação otimista sobre a segurança do sistema e não se fez o leilão substituto do leilão de 2004 que findou em 2012. O resultado foi desastroso e com consequências totalmente incompatíveis com a lógica da própria MP. Basta dizer que usinas quase tão antigas como as Classe A passaram a vender energia no mercado livre a preços de térmicas caras. Mesmo depois de decidir por um leilão, chegamos ao absurdo de ver usinas hidroelétricas vendendo energia até 2019 por valores superiores ao preço de algumas térmicas.

Hoje, por incrível que pareça, em função da forte recessão, estamos no polo oposto, com distribuidoras sobre contratadas, o que também é péssimo. Um sistema que não tem uma certa estabilidade de demanda e que fica oscilando de sobras e déficits não atrai nenhum investidor.

Nessa sequência temporal, com todos os links causais que tentamos explicitar, só então, ocorre o sistema descrito pela PSR. Não contestamos a análise da consultoria. Muito ao contrário. Entretanto, para que outras pessoas possam compreender a sequência de decisões equivocadas que geram outras decisões equivocadas numa corrente que parece não ter fim, apresentamos nossa análise.

Esperamos que tal cenário seja suficiente para nos convencer de que precisamos ir a fundo nessa questão. Esses eventos históricos serão importantes para as propostas futuras.

 

 

 

 

 

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