Singularidade, contemporaneidade e diversidade na construção de um novo setor elétrico brasileiro

Ronaldo Bicalho (*)

O momento atual do setor elétrico brasileiro é marcado pela exaustão do seu modelo hidrelétrico tradicional. O desafio colocado por essa ruptura radical da trajetória elétrica brasileira impõe a configuração de um novo setor elétrico assentado em bases distintas daquelas que sustentaram materialmente o desenvolvimento da energia elétrica no País.

O modelo elétrico tradicional brasileiro é composto por três elementos essenciais: energia hidráulica, reservatórios e forte coordenação. Sobre eles foi construída a base que sustentou o nosso setor durante praticamente toda a sua existência.

Um conjunto de eventos fragilizou essa fundação.

O primeiro deles foi a adoção, a partir dos anos 1990s, de uma política energética para o setor elétrico baseada na liberalização do mercado, pautada, essencialmente, pela privatização e introdução da competição nos mercados elétricos. A principal consequência dessa adoção foi a fragmentação do setor, em termos de agentes, interesses e organizações setoriais, que desestruturou a base institucional tradicional, que permitia a coordenação das decisões de curto e de longo prazo, sem ter sido capaz de substituí-la por uma nova que fosse realmente eficaz na coordenação do nosso singular setor elétrico.

O segundo evento foi o surgimento de crescentes restrições técnicas, econômicas e ambientais à construção de reservatórios, que, concretamente, reduziu drasticamente a capacidade de regulação do sistema, deixando-o cada vez mais exposto ao risco hidrológico. Essa redução teve seus impactos agravados pelo peso cada vez maior da intermitência na geração, via a crescente participação das novas fontes renováveis (eólica e solar) e das novas usinas hidrelétricas a fio de água (sem reservatório).

O terceiro evento foi a redução do potencial hidrelétrico; acelerada pela concentração desse potencial na Amazônia, com sua exploração contingenciada por fortes restrições ambientais, políticas e sociais.

Dessa maneira, o tripé – energia hidráulica, reservatórios e coordenação – que formava a base de sustentação do nosso modelo elétrico, simplesmente se desmanchou, inviabilizando a sua manutenção como elemento estruturante da operação e expansão do setor no País. Portanto é preciso encontrar um novo modelo.

Para isso, é fundamental olhar o que acontece no setor elétrico no mundo. A partir desse olhar mais amplo, constata-se que a maneira de se jogar o jogo elétrico no mundo também está mudando drasticamente. O setor elétrico mundial, que foi erigido sobre a base da energia contida nos combustíveis fósseis, se vê impedido, por razões político/ambientais, de seguir utilizando esses combustíveis.

Pra fazer face a essa interdição, a solução colocada na mesa é a utilização de uma nova base de recursos naturais formada pelas energias renováveis. O problema principal dessa substituição é a perda de controle sobre a disponibilidade da energia contida nessas fontes energéticas (p. ex, não controlamos quando e onde venta, tampouco quando e onde faz sol).

Essa perda muda completamente a forma como nós lidamos com a eletricidade. Forma esta baseada no acesso à energia que queremos, onde queremos e quando queremos.

Para viabilizar a substituição dos fósseis pelos renováveis em larga escala é preciso que a disponibilidade energética que nós estamos acostumados, obtida a partir de um estoque (fósseis) sobre o qual temos o pleno controle, seja agora alcançada a partir de um fluxo sobre o qual não temos controle (a energia dos ventos ou a energia do sol, p. ex.).

Para se alcançar isso, os desafios técnicos, econômicos, organizacionais e político/institucionais são enormes.

Diante da estatura desses desafios e dos riscos à segurança do abastecimento elétrico envolvidos em uma transição dessa natureza, a dimensão político/institucional adquire uma incontornável relevância; demandando uma crescente participação do Estado para arbitrar os elevados custos econômicos, políticos e sociais associados a essa mudança radical do mundo elétrico.

Nesse contexto, o grande desafio do setor elétrico brasileiro hoje é justamente pensar um novo modelo de operação e expansão, sob a perspectiva dessas grandes transformações que estão acontecendo no setor elétrico do mundo e, a partir daí, requalificar nossos recursos naturais e nossa infraestrutura de ativos elétricos.

Essa requalificação pode ter como base: (1) o reconhecimento de que a qualidade fundamental para a sobrevivência no novo mundo elétrico é a flexibilidade – necessária para enfrentar a intermitência intrínseca às fontes renováveis – e que (2) essa flexibilidade já está presente no setor elétrico brasileiro. Presente: (i) na grande capacidade de estocagem de energia, representada pelos nossos reservatórios; (ii) na grande flexibilidade do nosso parque gerador, representada pelas nossas centrais hidrelétricas; (iii) na nossa grande flexibilidade espacial, representada pelo nosso extenso e amplo sistema de transmissão.

A partir desse movimento estratégico poderíamos tentar inverter a trajetória de custos crescentes da oferta de eletricidade e construir vantagens competitivas para a nossa indústria e condições favoráveis de acesso ao conforto provido pela eletricidade para a sociedade brasileira.

Nesse sentido, garantir a segurança energética no Brasil hoje implica reinventar o nosso setor elétrico, tendo como base a combinação dos nossos recursos e ativos flexíveis com as generosas possibilidades que o novo mundo elétrico oferece ao País.

Para isso, alguns princípios estruturantes desse novo modelo setorial devem ser estabelecidos.

O primeiro deles é que o Brasil tem um setor elétrico singular, baseado em hidroeletricidade, reunindo um conjunto integrado de grandes reservatórios espalhados pelos quatro cantos do País. Essa integralidade é que permite a exploração de economias de escala, escopo e diversidade climática em níveis muito acima daqueles observados em outros sistemas elétricos ao redor do mundo. Um sistema integrado que, portanto, demanda uma gestão integralizadora.

Essa singularidade do setor elétrico brasileiro exige que sejamos capazes de encontrar soluções singulares e originais. Originalidade que, a propósito, já fomos capazes de exercitar no passado.

O segundo princípio a ser levado em conta na elaboração de um novo modelo para o setor elétrico brasileiro é que a nossa transição elétrica se encontra no interior de um processo mais amplo que é a transição do setor elétrico mundial e que detemos ativos que são cruciais na construção do novo setor elétrico baseado em energias renováveis intermitentes: uma enorme capacidade de estocagem de energia representada pelos nossos reservatórios; uma grande flexibilidade de geração representada pelas nossas hidrelétricas; e uma admirável capacidade de integração de espaços com diversidade climática representada pelo nosso amplo e extenso sistema de transmissão.

Devemos aproveitar ao máximo o fato de sermos um dos países mais preparados para lidar com a intermitência das fontes renováveis. No entanto, é preciso fazer isso respeitando, mais uma vez, a nossa singularidade. Isto implica em configurar uma transição que não seja simplesmente, mais uma vez, um mimetismo de experiências descontextualizadas de transição. Dados os nossos atributos, a nossa transição terá características próprias tanto em termos de escala/centralização quanto de coordenação. Isto implica em operar em níveis de concentração e coordenação mais elevados do que aqueles observados em outros sistemas.

Nesse contexto, reservatórios, plantas de geração hidrelétrica e linhas de transmissão são ativos estratégicos para a transição. Detê-los implica gerenciar a transição buscando objetivos de natureza estratégica para o País. Considerando que hoje, o Estado brasileiro, via a Eletrobras, detém praticamente a metade desses ativos – 52% dos reservatórios; 45% da geração hidrelétrica; 47% da transmissão -, mantê-los nessa condição é um objetivo fundamental de qualquer política energética que almeje garantir a segurança do suprimento elétrico nas próximas décadas.

Reter esses ativos na mão da Eletrobras também implica manter parte significativa da renda hidráulica sob o controle do Estado, de tal forma a manejar esses recursos para reduzir os custos da transição para a sociedade e a economia com um todo; não permitindo a simples apropriação individual desses excedentes por agentes privados.

Aproveitar a grande diversidade da matriz de recursos energéticos seria o terceiro princípio estruturante para a configuração de um novo modelo elétrico. A diversidade da dotação de recursos naturais do Brasil permite ao país jogar com uma gama de recursos dificilmente encontrada em outros sistemas elétricos. Da energia nuclear à energia solar, passando por biocombustíveis, gás natural, eólica e hidráulica, a matriz elétrica brasileira permite combinações que podem viabilizar elevadas participações das novas energias renováveis.

Singularidade, contemporaneidade e diversidade devem ser as grandes apostas de um novo modelo para o setor elétrico brasileiro.

(*) Pesquisador do Instituto de Economia da UFRJ e Diretor do Instituto Ilumina.

Obs: Este texto foi originalmente publicado no Jornal dos Economistas de Novembro de 2019

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