Segundo o BNDES o total arrecadado com a venda das empresas estatais de todos os setores somou um pouco mais de US$ 100 bi. (O setor elétrico foi responsável por 30% dos US$ 100 bi).
Uma parte desse montante, na realidade, não é dinheiro mesmo. Como todos sabem, os compradores puderam utilizar títulos do governo pelo valor de face, quando, no mercado, valiam uma fração do que estipulavam. Foram as famosas moedas podres. É bom não esquecer também da possibilidade de utilizar os ágios pagos sobre o preço mínimo como crédito fiscal para abater imposto de renda no 5 anos seguintes à privatização. Essa conta pode chegar a uns US$ 10 bi. Agora, essa lembrança de que o governo emprestou US$ 15 bi para diversas empresas que já foram suas.
Mas a conta não acaba ai. O racionamento causou um prejuízo de mais US$ 1 bilhão nas distribuidoras que estão sendo repassados aos consumidores. O BNDES emprestou mais uns US$ 2.5 bi por conta disso. As usinas emergenciais somam no mínimo mais US$ 2 bi no bolso dos consumidores. E o calote de US$ 1,2 bi da AES? E o perdão de US$ 180 milhões dos juros devidos? Já pensou se as outras empresas pedem isonomia?
Enfim, uma transação que nos permite roubar definitivamente o dito popular “negócio da china”.
Tem mais! Devemos ficar agradecidos e felizes! Pois afinal “as empresas se comprometeram a não acionar o governo na Justiça por causa das perdas financeiras causadas pelo racionamento”. Nós sabemos que ele não foi causado por nenhuma seca catastrófica, pois, igual ou pior do que a estiagem de 2001 o histórico de 75 anos registra pelo menos umas 10. Foi falta de investimento mesmo! E quem não investiu? Os que nos ameaçam processar.
Pensar em entrar na justiça? Mas, o nosso judiciário é cego mesmo! Chegaram a pensar em expedir um mandato de prisão contra São Pedro! Então, fica tudo por isso mesmo! Leiam o artigo de Rubens ricupero abaixo para ter uma visão um pouco mais ampla do que foi a década de 90 para a América Latina. O pior é que parece que a década quer continuar por aqui!
Governo injeta US$ 15,6 bi em privatizadas
Empréstimos feitos pelo BNDES a 101 empresas vendidas pela União correspondem a 14,8% do total arrecadado com privatizações
OTÁVIO CABRAL
DO PAINEL, EM BRASÍLIA
LEONARDO SOUZA
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
O governo federal injetou, por meio de empréstimos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), US$ 15,6 bilhões em 101 empresas que foram privatizadas ou das quais a União deixou de ser acionista.
Levantamento inédito da Folha, feito a partir de dados reservados do banco, permitiu quantificar o valor que cada uma dessas empresas recebeu em empréstimos no período de janeiro de 1992 a setembro de 2003.
A soma dos recursos corresponde a 14,8% dos US$ 105,5 bilhões que a União e os Estados arrecadaram com privatizações e com a venda de participações de estatais desde 1991.
Há casos de empresas que já receberam do BNDES muito mais dinheiro do que renderam seus leilões de privatização.
A Barcas S.A., por exemplo, que opera a travessia marítima entre o Rio de Janeiro e Niterói, foi vendida por R$ 38,5 milhões em 1998 (na época a cotação do real era quase paritária com o dólar) e já recebeu US$ 77 milhões em empréstimos públicos.
A petroquímica Oxiteno rendeu à União US$ 53 milhões em 1993, quando o governo vendeu sua participação acionária (minoritária) na empresa, mas já conseguiu do BNDES, desde então, US$ 98 milhões.
Numa conta conservadora, utilizando-se a taxa de câmbio de R$ 2,80 por dólar, o valor total repassado pelo BNDES às ex-estatais é equivalente a R$ 43,8 bilhões. Apenas para efeito de comparação, é mais de cem vezes o orçamento anual do Ministério Extraordinário da Segurança Alimentar, responsável pelo Fome Zero, que tem R$ 417 milhões previstos para 2004.
O montante também é maior do que a soma dos recursos dos ministérios da Saúde (R$ 36,5 bilhões) e da Assistência Social (R$ 8,2 bilhões) no Orçamento da União de 2004.
Há também casos de empresas que receberam em empréstimos do BNDES bem menos do que seu valor de venda. A Embratel, por exemplo, comprada em 1998 pela americana MCI por cerca de US$ 2 bilhões, captou US$ 21 milhões no BNDES após a venda.
A empresa que mais obteve recursos do BNDES foi a Embraer, fábrica de aeronaves com sede em São José dos Campos (SP). A companhia recebeu US$ 4,15 bilhões entre 1995 e 2003.
Em seguida, aparecem a Usiminas (Usina Siderúrgica de Minas Gerais), com U$ 1,575 bilhão; a Brasil Telecom, com US$ 1,405 bilhão; e a CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), com US$ 723 milhões.
Completam a lista das dez empresas privatizadas que mais receberam recursos do BNDES a Eletropaulo Metropolitana, a Light, a Telemar Norte Leste S.A., a Acesita, a Companhia Paulista de Força e Luz e a Companhia Siderúrgica de Tubarão.
Somados, esses dez grupos obtiveram empréstimos de US$ 10,7 bilhões do BNDES, o que equivale a 68,5% de tudo que foi injetado nas empresas pós-privatização.
Reestruturação e produção
Segundo o BNDES, os recursos não foram emprestados para a compra das empresas, mas sim para reestruturar as finanças e incentivar a produção e a exportação das companhias após o processo de privatização.
Dos US$ 15,6 bilhões concedidos, apenas US$ 300 milhões ingressaram na contabilidade das empresas no ano em que foram a leilão. O restante dos aportes foi feito em anos posteriores à venda.
O setor que mais recebeu recursos do banco foi o de transportes: US$ 4,5 bilhões (29% do total de empréstimos). Fundamentalmente por conta dos US$ 4,1 bilhões repassados à Embraer.
As empresas de telecomunicações receberam US$ 3,7 bilhões (24% do total). A seguir vêm os setores de siderurgia, com US$ 3,5 bilhões (22,5%); elétrico, com US$ 3 bilhões (19%); e, por último, petroquímico, com US$ 831 milhões (5,5%).
Essa proporção não segue a da arrecadação do governo com as privatizações. Nesse caso, transportes representam apenas 2% dos US$ 105,5 bilhões amealhados em leilões e vendas de participações acionárias.
O setor de telecomunicações lidera a lista, com 32% do arrecadado, seguido por energia elétrica (30%), mineração e siderurgia (16%), petróleo e gás (7%) e petroquímico (4%).
Teles
A grande maioria das teles privatizadas no leilão de 98 recorreu ao banco. Foram 47 empresas. A que recebeu mais foi a Brasil Telecom (aporte de US$ 1,4 bilhão). Desse grupo, a que tomou menos empréstimos foi a Tele Norte Celular (módicos US$ 3.830).
O ano em que o BNDES colocou mais recursos nas empresas desestatizadas foi 2000, quando saíram dos cofres do banco US$ 3,714 bilhões. Naquele ano, a União arrecadou US$ 10,2 bilhões com privatizações.
O único ano em que saiu mais dinheiro do cofre do banco do que foi arrecadado com desestatizações foi 2002, coincidentemente um ano de eleição presidencial. Saíram do BNDES US$ 3,714 bilhões, contra US$ 2,2 bilhões obtidos em privatizações.
O BNDES não informa quanto já recebeu das empresas privatizadas às quais emprestou os US$ 15,6 bilhões. Alega que essas informações são protegidas por sigilo bancário.
Os dados obtidos pela Folha constam de relatório do próprio BNDES. Contém 110 páginas. Traz o valor dos contratos firmados com cada uma das 101 empresas. O documento faz a conversão dos valores de real para dólar. Utilizou-se o câmbio oficial do dia da negociação.
Colaborou Pedro Soares, da Sucursal do Rio
Grampo e protestos marcam privatizações
Processo de vendas de empresas públicas continuará sob o governo Lula com os leilões de bancos estaduais previstos para este ano
DO PAINEL, EM BRASÍLIA
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
O processo de privatização das grandes empresas estatais, iniciado ainda na década de 80, foi intensificado nos anos 90. Ficou marcado pelas suspeitas de interferência do governo no leilão das empresas do Sistema Telebrás, ocorrido em 1998.
Descobriu-se depois que um grampo telefônico clandestino havia captado diálogos de autoridades do governo. Entre elas estava o próprio presidente da República, à época Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
Em conversa com o então presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), André Lara Resende, FHC chegou a autorizar a utilização de seu nome para pressionar um dos fundos de pensão estatais a participar de consórcios que disputariam o leilão.
Com o então ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, a cúpula do BNDES manobrou para que a Previ, fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, participasse do consórcio encabeçado pelo banco Opportunity e pela Telecom Itália.
O governo foi aparentemente bem-sucedido, pois o grupo do Opportunity foi formado com a participação da Previ. Mas o plano deu errado, porque o lote que o grupo pretendia -o da Tele Norte Leste, que reunia 16 empresas de telefonia fixa, em 16 Estados- acabou sendo arrematado pelo consórcio Telemar.
O governo FHC admitiu o teor das conversas. Mas argumentou que só interveio para aumentar o valor do leilão. O escândalo provocou a queda de Lara Resende e de Mendonça de Barros.
AES e Eletropaulo
Outro evento negativo das privatizações foi o calote no BNDES que a empresa norte-americana AES anunciou em fevereiro do ano passado. A empresa recebeu do banco empréstimos de US$ 1,2 bilhão para a compra da Eletropaulo Metropolitana.
Naqueles mês, o BNDES e a AES assinaram, no entanto, acordo para solucionar o problema. Pelo acerto entre as duas partes, será criada uma nova empresa, chamada de Brasiliana Energia, que passará a controlar a Eletropaulo, distribuidora de energia do Estado de São Paulo.
O grupo norte-americano terá 50% mais uma ação do capital votante da nova empresa. O BNDES, 50% menos uma ação, o que compensará parte do que deveria receber em dinheiro da companhia americana. Para o banco, não era a melhor opção, porém a direção considerou que pior seria não receber nada e ter de assumir o controle da empresa.
Além do dinheiro emprestado à AES, o BNDES ainda concedeu, depois da privatização, crédito no valor de US$ 562,4 milhões à Eletropaulo.
Balanço
Na década de 80, o governo brasileiro privatizou 38 empresas que haviam sido absorvidas pelo Estado em razão de dificuldades financeiras.
Em 1990, foi criado o Programa Nacional de Desestatização, que permitiu o uso de títulos da dívida pública como moeda de pagamento. No ano seguinte, ocorreu a primeira grande privatização, a da Usiminas.
A partir de então, foram desestatizadas empresas petroquímicas, siderúrgicas, de telecomunicações e de transportes.
Em 1997, ocorreu um dos mais tumultuados leilões, o da Vale do Rio Doce. Policiais precisaram isolar a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro para impedir a entrada de funcionários da empresa que eram contra a privatização.
Após os leilões das teles, ganharam ênfase as privatizações estaduais, sobretudo as de companhias elétricas e de bancos, inclusive o Banespa e o Banerj.
Para este ano, o governo pretende continuar o processo e deve vender bancos estaduais que foram federalizados, como os de Santa Catarina, Maranhão e Piauí.
(OTÁVIO CABRAL e LEONARDO SOUZA)
Um caso de estrabismo do Ministério Público
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Num país em que a Justiça, além de cega, às vezes traz a balança desregulada e a espada sem fio, o papel do Ministério Público é estratégico. Procuradores agem como reis em terra de cego. O olho que os distingue, porém, não está imune a inusitados surtos de estrabismo.
Abaixo se relatará um caso em que o olhar da Procuradoria da República foi afetado por um tipo particular de disfunção ótica: o estrabismo convergente. Produz um fenômeno que a medicina chama de diplopia. Em português claro, é a visão dupla, distorcida, de um mesmo objeto.
No caso que nos interessa o objeto é uma investigação nascida em Manaus. Desvendou o maior caso de contrabando já detectado no país. Noticiada aqui em março de 2003, a encrenca envolve fraudes de R$ 200 milhões.
O logro foi descoberto por acaso, graças a uma carta anônima enviada à Receita Federal. Beneficiadas por isenções fiscais, empresas instaladas na Zona Franca deveriam trazer peças do exterior para montar equipamentos em Manaus. Em vez de peças, importavam eletroeletrônicos prontinhos -televisores, máquinas fotográficas digitais, equipamentos de som, o diabo.
Vinham da Ásia, sobretudo de Hong Kong. Aportavam no Brasil com manual em português e falso selo de origem: “Produzido no Pólo Industrial de Manaus”. Fiscais da Receita faziam vista grossa em troca de propinas.
Coube à Polícia Federal desbaratar a quadrilha, com o auxílio do Ministério Público e da Receita. Tudo esclarecido, encaminhou-se à Justiça a primeira denúncia. É de fevereiro de 2002. Assina-a o procurador Sérgio Lauria. O texto é minucioso e implacável.
Em 25 laudas datilografadas, Lauria apresentou evidências do cometimento de seis crimes: formação de quadrilha, contrabando, corrupção ativa e passiva, estelionato, falsificação de documentos e lavagem de dinheiro. Foram ao banco dos réus fiscais, funcionários subalternos e executivos de empresa fraudadora.
A Justiça, que é cega, mas não perdeu o olfato, desmembrou o processo em dois. Um deles caminha a toque de caixa. Inclui dois fiscais e três bagrinhos de uma das cinco empresas pilhadas na investigação. O outro anda em ritmo de tartaruga manca. Analisa o comportamento dos executivos da empresa.
O processo dos peixes miúdos já dispõe de sentença. Foi proferida em 21 de março de 2003 pela juíza federal Jaísa Maria Pinto Fraxe. Coisa draconiana. Condenaram-se os réus a penas que vão de 21 anos e dois meses a 35 anos e oito meses de cana. A pena máxima foi imposta a Maristela Santos de Araújo Lopes. Era supervisora da Receita no porto de Manaus.
Os autos que mencionam os nomes dos executivos da empresa seguem inconclusos. Chama-se DM Eletrônica da Amazônia a firma em apuros. Era fornecedora da CCE, gigante nacional do ramo eletrônico. O réu mais notório é Isaac Sverner, presidente da CCE e, à época dos
delitos, sócio da DM.
Enquanto rolava o processo, prosseguiram as investigações. Súbito, apreenderam-se novos contêineres. Continham R$ 6 milhões em mercadorias. Também vinham da Ásia.
Em relatório de 2 de maio de 2003, o delegado da PF José Serpa de Santa Maria Júnior disse tratar-se da “mesma especialidade de delitos”. Ou seja, “a importação fraudulenta de produtos eletrônicos acabados como sendo partes e peças, na tentativa de obter indevidamente os incentivos fiscais da Zona Franca de Manaus”.
A firma responsável pela fraude era “novamente a DM Eletrônica da Amazônia”. Procedeu-se à indiciação dos sócios. Entre eles, de novo, Isaac Sverner. De posse dos documentos que detalhavam a reincidência, o mesmo procurador Sérgio Lauria formulou nova denúncia. Deu-se o estrabismo.
Diferentemente da primeira (25 laudas minuciosas e implacáveis), a segunda denúncia de Lauria foi vazada em cinco folhas de papel. Mencionam-se, além dos executivos da DM, os responsáveis pelo transporte da carga. São acusados de contrabando. Nenhuma referência à formação de quadrilha. Nada sobre lavagem de dinheiro. Nem sinal de estelionato.
Os advogados da DM receberam a segunda denúncia como um inesperado quindim. A peça foi levada ao conhecimento de desembargadores do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília. Ali tramitam recursos em que a DM pleiteia, entre outras coisas, o trancamento do processo amazônico.
Familiarizados com o caso, juízes do TRF ficaram de cabeça virada. Um deles, em contato com o repórter, raciocinou: ou a primeira denúncia carregou nas tintas ou a segunda é inepta. Em qualquer hipótese, não fica bem o Ministério Público.
O repórter tenta há três semanas contatar Sérgio Lauria. O procurador já não está em Manaus. Foi transferido para Porto Alegre. Ali se informa que teria sido removido para São Paulo. Na capital paulista, diz-se que ainda não tomou posse.
Beneficiados por recursos judiciais, os bagres condenados ganharam as ruas. Defendem-se em liberdade. Só um funcionário da Receita continua preso. Não recorreu. Não há data prevista para o julgamento dos empresários.
Galpões abarrotados, a Receita combinou com o Ministério da Educação o repasse para escolas públicas de R$ 10 milhões em equipamentos apreendidos. Tudo organizado, a DM obteve liminar judicial brecando o presente. O caso, como se vê, promete.
Conta do racionamento é R$ 300 mi maior
HUMBERTO MEDINA
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Os consumidores vão ter de pagar mais R$ 300 milhões de perdas que as distribuidoras de energia tiveram durante o racionamento de 2001 a 2002. As perdas no período ficaram em R$ 2,8 bilhões, e não nos R$ 2,5 bilhões estimados inicialmente.
Para permitir a cobrança dessa diferença, a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) recalculou o prazo de duração do aumento extra concedido em dezembro de 2001 para compensar as perdas: 2,9% para consumidores residenciais e 7,9% para consumidores comerciais e industriais
Para consumidores de 11 distribuidoras -incluindo Eletropaulo (SP), Bandeirante (SP) e Light (RJ)- o aumento extra irá ficar na conta por mais tempo, chegando em alguns casos a nove meses além do que o inicialmente previsto. Essas concessionárias vendem energia para cerca de 11,5 milhões de clientes. Consumidores residenciais de baixa renda não pagam o aumento extra.
Inicialmente, o cálculo havia sido feito como se as distribuidoras tivessem perdido R$ 2,5 bilhões no MAE (Mercado Atacadista de Energia Elétrica), por causa do racionamento, que teve como efeito a elevação o preço da energia. Pelos números divulgados ontem pela Aneel, esse número foi corrigido para R$ 2,8 bilhões.
Além de recalcular o prejuízo que as distribuidoras tiveram no racionamento, a Aneel retirou temporariamente do valor a ser compensado com o aumento extra o montante que as empresas perderam com a alta do dólar (as distribuidoras compram energia em dólar da hidrelétrica de Itaipu) e com subsídio à geração termelétrica.
A compensação pela alta desses custos -denominados no setor como Parcela A- também foi acertada pelas distribuidoras com o governo no Acordo Geral do Setor, junto com a compensação pelos prejuízos do racionamento.
Nesse acordo, as empresas aceitaram empréstimos do BNDES de até R$ 7,5 bilhões para cobrir suas perdas com racionamento. Esse empréstimo será pago com o que as distribuidoras arrecadarem com o reajuste extra. Em troca, as empresas se comprometeram a não acionar o governo na Justiça por causa das perdas financeiras causadas pelo pelo racionamento.
A compensação pela alta do dólar na compra de energia será feita quando as empresas já tiverem sido ressarcidas dos prejuízos com o racionamento. A retirada desse valor -estimado em R$ 1,93 bilhão- do cálculo do ressarcimento fez com que o prazo para vigência do aumento extra caísse em 31 concessionárias.
Como essas perdas serão ressarcidas depois que o prejuízo com o racionamento for quitado, os prazos de vigência do aumento extra podem voltar a aumentar, tanto nas distribuidoras que tiveram redução no prazo quanto nas que tiveram aumento no prazo.
O continente da tristeza
RUBENS RICUPERO
“Apenas respirei sua atmosfera, batizei a América do Sul de Continente da Tristeza”. Tranqüilizem-se os que se espantarem com esse disparate, inspirado, creio, pelo fatalismo lacônico dos índios do Altiplano. O autor, hoje quase esquecido, foi Keyserling, que teve sua voga nos anos 30, mas escrevia muito despropósito. Embora o mesmo não se possa dizer de Lévi-Strauss, que, ao evocar os tempos vividos em nossos trópicos, também os chamou de tristes…
Seja como for, tudo isso era subjetivo, impressionístico. Quem exigir razões sólidas, objetivas, para a tristeza, não tem de procurar muito longe. Basta folhear o balanço preliminar das economias da América Latina e do Caribe 2003, publicado na véspera do Natal pela Cepal (Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina). Em termos absolutos, até que melhoramos um pouco. Após o encolhimento de 2002 (menos 0,4%), o PIB cresceu 1,5%. Quando se leva em conta o crescimento da população, contudo, constata-se que o produto per capita é ainda 1,5% inferior ao que era em 1997: em outras palavras, caminhamos para trás.
Houve também alguma melhora no financiamento externo. Não o suficiente, porém, para evitar que a região continuasse a transferir para o exterior mais dinheiro do que recebe. Em 2002, tinham sido US$ 40,2 bilhões, reduzidos, em 2003, a US$ 29 bilhões, correspondentes a quase 7% do valor das exportações. Foi o quinto ano seguido de transferência líquida de recursos para o estrangeiro. Durante o quinqüênio, a saída acumulada de capital equivale a 5% da riqueza produzida. O contra-senso continua: um continente anêmico doa sangue para que os abastados se refocilem nos déficits; gente que não tem onde cair morta financia a obesidade dos que se podem dar ao luxo de invadir países ou planejar custosas explorações de planetas.
Ao longo da “semidécada perdida” (1997-2002), enquanto se contraía o produto e o ingresso de capitais autônomos descia à metade do quinqüênio anterior (1994-1998), a única coisa que aumentava eram as remessas de lucros, dividendos e juros, que saltaram de US$ 50,8 bilhões em 2002 a US$ 54,8 bilhões em 2003. Conforme diz o relatório, “o peso desse último déficit se converteu em traço estrutural da balança de pagamentos regional, o que evidencia não só o alto endividamento, mas também o pagamento de dividendos e lucros gerados pelas empresas estrangeiras instaladas na região”. Não se passou muito tempo para confirmar a razão dos que advertíamos acerca do risco da entrada maciça de capital estrangeiro concentrado na privatização de serviços públicos e bancários, setores incapazes de criar correntes adicionais de exportação. O resultado é o que se está vendo: mesmo em anos recessivos ou de estagnação, esses serviços garantem renda certa, transferida para fora às custas das divisas produzidas, basicamente, pelo saldo da agricultura.
Com efeito, a indústria, de maneira geral, não ajuda muito ou contribui para o déficit, pois, em boa parte da região, o espetáculo a que se assiste não é o do crescimento, mas o da desindustrialização precoce. A Unctad tem sido pioneira em denunciar o fenômeno, mas, hoje, outras entidades de pesquisa, às vezes privadas, aportam complementos importantes à descrição. Um desses estudos, por exemplo, notava que, no início dos anos 80, a América Latina ostentava, no mundo em desenvolvimento, o nível mais alto de valor agregado em manufaturas, cerca de US$ 246 bilhões, 60% a mais que toda a Ásia do Leste. Foi a primeira região a abraçar com fervor o Consenso de Washington e a liberalizar, de modo drástico, o comércio e o regime de investimentos, pondo fim, entre outras coisas, à substituição de importações. Os asiáticos revelaram-se muito mais coriáceos a aceitar esse conselhos. Segundo a doutrina dominante, a América Latina deveria, graças a essa ortodoxia, ter-se tornado mais eficiente que outras regiões.
Ora, o que de fato ocorreu foi que o continente estagnou na década de 1980. Suas exportações de manufaturas cresciam à média anual de 5,5%, enquanto o comércio mundial aumentava 8,7% e as exportações asiáticas de manufaturas se expandiam 15,4%. Em 2000, a Ásia do Leste já passara a representar quatro vezes mais que a América Latina em valor manufaturado agregado e três vezes mais em exportações. Na década de 1990, a América Latina aumentou em 1,3% sua participação no mercado mundial de produtos de baixa tecnologia e oriundos de recursos naturais e em insignificante 0,6% no de manufaturas de média e alta tecnologia. É quase covardia comparar essa pífia taxa com os 17% da Ásia. Nos produtos mais dinâmicos, a Ásia abocanha 28% das exportações mundiais -equivalente a 87% do exportado pelos países em desenvolvimento-, contra 3% da América Latina.
Mudar tal panorama não será fácil, pois a formação bruta de capital no continente permaneceu quase estagnada em 2003 e seu nível atual é 12,5% inferior ao atingido cinco anos atrás. É de conhecimento geral que a taxa de investimento brasileira foi uma das mais baixas de que se tem memória. “Os seis anos de crescimento negativo por habitante”, lamenta a Cepal, “causaram danos sociais que tardarão a serem revertidos. Em 2003, há 20 milhões de latino-americanos pobres a mais que em 1997. A taxa de desemprego cresceu dois pontos nesse período, ascendendo a 10,7%”, (no Brasil, sabem os leitores, é de quase 13%). Faltando pouco para completar dois séculos de vida independente, como acaba de fazer o Haiti, a América Latina se aproxima desse aniversário com a pobreza alcançando 44% de sua população.
Não nos faltam, portanto, razões para a tristeza. Pior que reconhecê-las é celebrar saldos comerciais conquistados graças a desemprego e estagnação, que não se traduzem no aumento das reservas, e sim na transferência de recursos ao exterior. No momento em que se aliviam as condições externas, o maior perigo é a complacência, não o realismo sóbrio diante do triste estado a que fomos reduzidos. Exilados junto aos rios de Babilônia, os hebreus penduraram as cítaras e choraram, resistindo aos opressores, que lhes exigiam alegria na tristeza. Não se trata da apagada e vil tristeza da cobiça, mas da que impele à ação para mudar, pois “os que semearam entre lágrimas ceifarão com alegria, os que partem chorando, com o saco de sementes, voltam cantando, carregados de espigas”.