Um modelo com defeito genético – Artigo – Valor

Roberto Pereira D’Araujo – Diretor do ILUMINA – Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético.

Porque esvaziamos os reservatórios? Consumimos muito? A atual hidrologia é uma tragédia? Porque as térmicas não ajudaram a preservar a reserva de água? Porque a energia brasileira é tão cara? Porque a redução intervencionista de 2012 de nada adiantou para conter as tarifas? Há apenas políticas equivocadas ou um defeito de concepção no modelo do setor? Essas perguntas têm respostas conflitantes.

O verão de 2014 foi um dos mais quentes e secos da história e atingiu duplamente o setor elétrico, pois gastamos mais energia com refrigeração e recebemos menos água nos rios. Mas, não se engane. Mesmo ocorrendo hidrologias mais favoráveis, nós já estaríamos no caminho dos gastos bilionários que estamos assistindo.

O sistema interligado brasileiro é composto de várias usinas que contam com grandes reservatórios. Quando se comparam setores elétricos, é comum distinguir a predominância hídrica na matriz, mas o aspecto que mais nos diferencia do resto do mundo é o volume dos nossos reservatórios. Isso tem uma grande influência no modo como se comercializa a energia. Aqui o agente que vende o kWh não é o mesmo agente que o gera, pois a lógica de gestão da reserva se sobrepõe à comercial. Toda essa singularidade exigiu uma adaptação complexa, subjetiva e instável. Seria impossível em pouco espaço explicar as intrincadas equações sobre as quais está assentado nosso sistema. Essa complexidade já é um péssimo sintoma, mas alguns efeitos do modelo já nos avisavam que havia algo errado há tempos.

O primeiro gráfico mostra a capacidade máxima de reservar energia em meses de consumo. A curva de baixo nos indica que de 2004 até 2012, como a carga cresceu e a reserva estagnou, reduzimos de 6 para 5 meses a nossa capacidade máxima de reservar energia. A curva superior mostra essa mesma grandeza, descontando da carga toda a geração não hidráulica. Seria a carga “vista” pelas hidráulicas. Como se pode perceber, as linhas de tendência das duas curvas são rigorosamente paralelas e declinantes. Isso significa que toda a geração complementar nesse período não agiu para conter essa redução gradativa da reserva estratégica. É como se a nossa caixa d’água estivesse se encurtando sem que façamos algo para estancar esse processo.

Alguns diriam que a solução é construir novos reservatórios, mas, se quiséssemos recuperar os 6 meses de carga que tínhamos em 2004, teríamos que aumentar 20% a nossa capacidade. Isso significa construir novas usinas com volume equivalente a todo o Rio S. Francisco. Se fosse possível, quando estivessem prontas, já teríamos que repetir a dose. Portanto, sem ser contra reservatórios, a estratégia não vai solucionar o problema.

 Será que a mais importante alteração estrutural era despercebida? Não! Ideologicamente, acreditando que o mercado pode decidir questões estratégicas e tendo que contratar a expansão que combinasse com a nossa singularidade, o governo fez leilões genéricos onde vencia a usina com o melhor índice custo benefício, ao invés de menor custo, outra complexidade matemática. Acreditou-se que, através desse “truque”, obteríamos as fontes mais convenientes para o sistema.

O resultado é que, na expansão contratada até 2012, 40% da “oferta” vem de usinas térmicas. Quase a metade são usinas a óleo combustível, 10% a gás natural em ciclo aberto, menos eficiente e, portanto, mais custosa. Até caras usinas a Diesel venceram esses leilões. Só recentemente realizaram leilões específicos para eólicas, por exemplo.

Como tanta geração térmica não ajudou a mudar essa preocupante tendência? A resposta está na formação de preços do modelo que permaneceu insensível ao declínio da reserva. Como muitas térmicas são caras, elas estão computadas na oferta, mas quem gera no lugar delas são as hidráulicas. A prova é que, no ano 2000, 83% das nossas usinas eram hidráulicas, em 2012, apenas 68%, mas elas permaneceram gerando 90% da energia por todo esse período! Na realidade, o parque térmico que temos exige mais das hidráulicas e não menos, como se poderia pensar. Essa é a razão estrutural do esvaziamento. A seca atual é séria, mas não inédita. Nosso consumo também não trouxe nenhuma surpresa.

De 1995 até 2012 a tarifa média subiu 80% em valores reais sem termos sequer um diagnóstico. Em 2011, antes da intervenção da MP579, cerca de 30% de uma conta média se referia à energia (kWh). Distribuição, transmissão, encargos e principalmente impostos compunham os outros 70%. Como apenas 20% das usinas estavam em final de concessão e nem toda energia vem de hidráulicas, era óbvio que a imposição de tarifas baixíssimas para as usinas resultaria em menos de 4% de redução com o efeito colateral da quebra da Eletrobras. Obviamente o alvo estava errado, mas o governo insistiu no erro.

Será que essa medida nada teve a ver com a atual situação de penúria energética? Se não tem, é preciso explicar a coincidência das usinas térmicas dobrando a sua geração só após setembro de 2012, data da MP579. O modelo só notou a necessidade tarde demais ou aguardava-se uma redução na tarifa para poder contar com energia mais cara na base? O quanto esse atraso gerou de esvaziamento de reservatórios? Há muito a explicar no DNA do modelo, além das questões conjunturais.

 

O cenário é patético. Além do possível racionamento, o prejuízo do setor elétrico já ultrapassa várias dezenas de bilhões de reais. Em combustível, estamos queimando recursos comparáveis aos investimentos nas usinas do Rio Madeira e assumindo dívidas bancárias de faturas bilionárias para não impactar a inflação. Empresas passaram a ser administradoras de mão de obra nas usinas que construíram apenas para criar uma tarifa artificial. A maior empresa geradora da América Latina vale 30% do que valia antes. Perante esse imbróglio, a confusão da Petrobras fica parecendo um mero detalhe.

 

 

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