Roberto Pereira D´Araujo
Leio no jornal Valor (5/12/2022) que o Supremo Tribunal Federal decide “manter trabalhador como pessoa jurídica”.
Cito parte da reportagem abaixo:
“Ganhou força no Supremo Tribunal Federal (STF) um movimento de empregadores para validar a contratação como pessoa jurídica (empresa) de trabalhadores que, normalmente, exercem atividades intelectuais e são considerados hipersuficientes. Os ministros aceitaram a tese de que essa prática é uma forma de terceirização lícita.”
“As decisões mais recentes envolvem advogados, médicos, corretores de imóveis e prestadores de serviços na área de tecnologia. Esses casos estão sendo levados ao STF por meio de reclamações contra decisões do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e da segunda instância.”
Na realidade, o número de profissões atingidas pela pejotização é muito maior. Além dos citados, jornalistas, artistas, engenheiros, professores e muitos outros viraram “empresas” contratadas como terceiros.
Evidentemente, a parte mais atingida é a previdência social. Como são consideradas “hipersuficientes”, os salários “pejotizados”, mais elevados, não colaboram com a formação de um fundo coletivo onde os mais velhos se aposentam. Pior, onde os mais pobres procuram assistência!
Essa estratégia já foi adotada antes, quando a Lei 12.618/12 estabeleceu que um novo servidor público contribuiria com 11% de seu salário para o Regime Próprio de Previdência Social até o limite de R$ 3.916,20 (teto vigente na época). Assim, um novo funcionário entrava pagando bem menos do que pagaria sobre o regime antigo. Se ele quiser se aposentar com salário maior, tem que contribuir para o FUNPRESP, um típico seguro individual, não contribuindo para financiar um velho colega.
Mas, o que isso tem a ver com a energia? Por incrível que pareça, adotamos a pejotização das usinas hidroelétricas ao, através da Lei 12.783/2013, basear o preço da energia de uma usina “amortizada”, como o custo de operação e manutenção da própria usina e não da usina na empresa. Uma visão contábil individualista do sistema. Uma pejotização.
Não soubemos compreender com sabedoria a fantástica singularidade do nosso sistema de velhas usinas. Nesse desperdiçado princípio, ao contrário da previdência, são as velhas usinas que podem colaborar com o surgimento de novas. A amortização desses ativos, dentro da contabilidade das empresas, encaradas sob um autofinanciamento planejado, é capaz de ampliar a oferta de energia.
Toda essa situação se encaixa na tendência de desconfiança e abandono do princípio do coletivo na sociedade que se observa desde 1995. Desconfia-se das estatais e, ao invés de moralizá-las, privatiza-se sem compreender que privatizar não é apenas vender empresas.
A pejotização generalizada também ocorreu no processo de privatização de empresas com usinas prontas sem exigir nenhum compromisso com a construção de novas usinas. Na década de 90, além de mais de 80 estatais privatizadas com financiamento do BNDES, a Eletrobras também foi posta à venda. Evidentemente, o capital tem seus próprios limites e, ao perceber que haveria uma verdadeira liquidação de usinas, os investidores se desinteressaram por novos desafios. Na realidade, o racionamento de 2001 ocorreu por conta do déficit de mais de 8.000 MW médios de oferta. Praticamente uma usina de Itaipu era esperada e não ocorreu. São Pedro não foi o culpado.
O mercado livre de energia, é também uma pejotização dos consumidores que se “individualizam” no consumo de um produto, o kWh. Em nenhum sistema elétrico o kWh pode ser individualizado. Afinal, temos uma rede que une o país de dimensões continentais, e por mais que o consumidor livre acredite estar consumindo energia de uma fonte vantajosa, ele não sabe de onde veem seus kWh.
Por que tudo esse tema é essencial quando se discute a transição de governo?
Na minha opinião, esse sistema gerou a necessidade de intervenções onde a Eletrobras foi usada para tentar corrigir os as trajetórias de elevação de tarifa, vantagens indevidas e baixo investimento observados nesse período.
Ao contrário do que é informado, em 2008 atingimos um ciclo de alto risco estrutural. Segundo os critérios vigentes, o consumo atingia os limites definidos pelas autoridades e aceitos pelo mercado. Por que não tivemos um momento de aperto energético? Porque temos uma hidrologia típica de país tropical que nos surpreendeu com três anos seguidos de recordes de chuva (2009 a 2011). O perigo estrutural foi camuflado por situações conjunturais. O mercado livre, totalmente pejotizado, capturou vantagens conjunturais por dez anos deixando de fora os consumidores cativos, ou não-pejotizados.
Entretanto, como o pensamento individualista sempre permaneceu dominante, para garantir o aproveitamento de potenciais conhecidos, a Eletrobras foi obrigada a formar parcerias com o setor privado onde ela é minoritária. Mais de 16 GW só foram construídos sob esse esquema.
Se a pretensão é reestatizar a Eletrobras, tirando o Brasil da vergonhosa situação de ser o único país de base hidroelétrica majoritariamente privado, é preciso estar atento aos defeitos da modelagem de mercado adotada, pois, foi ela que produziu as duas vítimas: O consumidor e a Eletrobras.
Ou mudamos esse sistema ou podemos repetir os erros do passado.
3 comentários para “A “pejotização” da energia”