Setor elétrico brasileiro: Erros em sequência – Capítulo I

Roberto Pereira D’Araujo

  1. Uma verdadeira novela.

É longo, mas quem quiser realmente entender o que aconteceu com a energia elétrica brasileira, que já atingiu a 5a mais cara tarifa mundial, tem que ter paciência. A culpa não é do ILUMINA. A responsabilidade está espalhada por vários governos que não quiseram enfrentar os poderes que se formaram sob os erros e as omissões.

Como informado nas notícias abaixo, além dos outros problemas que ainda não foram resolvidos como o risco hidrológico, tarifa alta, bandeiras tarifárias e proliferação de encargos, a comercialização de energia, mais uma vez, leva um susto. No bizarro mercado livre brasileiro, ele dissemina crise para todos os consumidores, mas só aparece nas mídias quando ele causa confusão para si mesmo.

https://br.reuters.com/article/topNews/idBRKCN1Q01YA-OBRTP

https://br.reuters.com/article/businessNews/idBRKCN1PQ5ST-OBRBS

https://br.reuters.com/article/businessNews/idBRKCN1Q92WG-OBRBS

  1. Raquitismo da regulação:

Sempre é possível examinar um evento que, se ocorrer, causa prejuízos a muitas pessoas com análises específicas focadas em um episódio. Infelizmente esse parece ser o método das nossas agências reguladoras em diversas atividades. As análises superficiais e fiscalizações falhas fazem que a regulamentação chegue atrasada ao que se quer evitar.

O raquitismo do nosso estado regulador pode ser medido pelas recentes “tragédias” que atingem vários setores. Tudo indica que as empresas já incorporaram essas falhas de regulação nas suas estratégias.

O ILUMINA, por não estar envolvido com o dia a dia do ambiente do mercado de energia, é incapaz de analisar detalhes muito específicos. Contudo, o que podemos fazer é mostrar as deformidades estruturais desse mercado. Defeitos que estão na origem já provocaram uma série de conflitos. A prevalecer a fragmentação de responsabilidades e o alto grau de mimetismo de outra realidade física, uma nova onda de problemas virá por aí.

Metaforicamente, a “barragem” do mercado, que já desmoronou outras vezes, dá outros sinais de instabilidade e, mesmo assim, a essência do problema permanece intocada.

  1. Origens do mercado de energia no Brasil

Todos sabem que um mercado perfeito é raro, mas existe. A dinâmica básica é que, toda vez que há oferta insuficiente de um produto, o preço sobe. Na teoria, a demanda reage à elevação se reduzindo e o preço se estabiliza num novo patamar mais baixo de equilíbrio. O inverso ocorre quando há sobras de oferta. O preço cai, a demanda se aproveita, o preço sobe e se equilibra num novo nível. Como se sabe, não é raro ocorrer situações onde diferenças de poder econômico aniquilam essa teoria. Apesar disso, muitos acreditam piamente nesse sistema.

Infelizmente, a energia elétrica não é como a batata ou a cebola, que podem ser substituídos. É um insumo básico em qualquer economia e, se ela fosse obedecer a este idealismo teórico, transformaria a vida dos consumidores num verdadeiro inferno. Imagine ter uma instabilidade de preços na base das atividades econômicas. Ou não ter energia para comprar mesmo que o preço seja absurdo.

Aqui, nesse país tropical, justamente as mais importantes máquinas de produzir energia, as hidroelétricas, de um ano para o outro, podem receber afluências que dobram a energia associada. Ou seja, os mesmos equipamentos podem produzir o dobro de kWh do ano anterior. Evidentemente, podem também se reduzir pela metade! Imagine um produto cuja oferta varia desse modo sob a teoria do mercado perfeito. O gráfico abaixo deixa essa característica tropical totalmente inequívoca.

Série Histórica das Energias Naturais (afluências) dos 4 sistemas (sul, sudeste, nordeste e norte).

Outra característica brasileira que atrapalha a mítica teoria mercantil é que, historicamente, a cada ano, a demanda de energia elétrica se eleva a ponto de exigir algo como duas usinas novas como a de Itumbiara com 2082 MW. Que mecanismo teórico de mercado é capaz de se antecipar para que não haja um grande desequilíbrio da oferta?

Evidentemente, deixar ao mercado a contratação dessa oferta adicional é uma política que assume grandes riscos, pois, na teoria, ao sentir a escassez, o preço sobe, mas esse sinal já seria tardio para o reequilíbrio.

Usina de ITUMBIARA.

A sequência de problemas já registrados na implantação do mercado de eletricidade no Brasil na década de 90 chega a ser uma tragicomédia. O mimetismo, a fragmentação de atribuições e o ineditismo de tentar aplicar no Brasil uma receita que não estava totalmente testada nem na Inglaterra, representou assumir uma aventura arriscada.

Como relatado pelo Dr. Luiz Eduardo Barata no livro 20 Anos do Mercado Brasileiro de Energia Elétrica da CCEE, o início da implantação do mercado atacadista na década de 90 esteve repleto de improvisos. Abaixo, alguns trechos referentes ao período do racionamento:

O MAE (Mercado Atacadista de Energia) era apenas um ambiente virtual, gerenciado pela chamada Administradora de Serviços do Mercado Atacadista de Energia. A Asmae era a empresa privada constituída pelas empresas que atuavam na comercialização.”

“O sistema computacional a ser utilizado no processo de contabilização sequer estava concluído”

“Para efetivar a liquidação foram estabelecidas negociações com o Itaú e o BNDES. O Itaú foi o banco contratado para fazer a primeira grande liquidação do Mercado Atacadista, enquanto o BNDES foi o ente financiador, emprestando para os devedores.

“Vale recordar o momento da liquidação em meio ao recesso de fim de ano, no dia 30 de dezembro, que mais uma vez se caracterizou pela alta emoção. Marcado para ocorrer às dez horas, identificamos no final da manhã que a operação não havia sido realizada. Entramos, então, em contato com o BNDES, que informou que os valores devidos já haviam sido enviados pelo banco operador, o Banco do Brasil. O problema identificado foi que, em vez de enviar o dinheiro da liquidação para o Itaú em contas correntes especificamente constituídas para essa operação, o Banco do Brasil enviou os valores para as contas dos credores com os quais essas empresas tradicionalmente trabalhavam com o BNDES.”

Como ficará claro posteriormente, esses fatos já são uma deformidade, pois, ao contrário do senso comum, o mercado livre brasileiro não se utiliza de fontes energéticas e nem de fios diferentes do resto. Tudo o que acontece no mercado atacadista “ataca” os outros consumidores. Subsídios dados ao mercado livre são pagos pelos que não estão nesse nicho.

Também é possível ver que, já no seu nascimento, o “mercado” já precisava do BNDES, ou seja, dinheiro público. Se esse fosse o único evento nada mercantil, tudo estaria resolvido, mas, como veremos, o nosso mercado livre está na origem dos problemas.

No próximo capítulo, vamos ver que modelo se usou para garantir um “equilíbrio” entre oferta e demanda e perceber que ele contém a sua própria destruição.

Aguardem

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