A importância das redes para o sucesso das estratégias de descarbonização do setor elétrico

Clarice Ferraz (*)

A crescente eletrificação do consumo de energia associada à necessidade de descarbonização do setor já provoca importantes mudanças nos negócios de empresas de energia ao redor do mundo.

A resposta à necessidade de descarbonização veio sobretudo pelo avanço das novas energias renováveis, através de geração distribuída. A integração desses novos recursos energéticos distribuídos (REDs), marcados pela intermitência de sua geração, traz uma série de novos desafios para o setor de transporte de eletricidade. Como em toda reestruturação, Burger et al. (2018) lembram que “os reguladores e formuladores de políticas devem reconsiderar cuidadosamente como a estrutura da indústria no âmbito da distribuição afeta o planejamento, a coordenação e a operação do sistema, bem como a concorrência, o desenvolvimento do mercado e a eficiência de custos”.

A revolução agora se dá a partir do setor de distribuição e vai a montante afetando os outros componentes do sistema elétrico, com destaque para a transmissão, setor que recebe pouca atenção. Na realidade, são diversas transformações ocorrendo de forma concomitante, o que aumenta sua complexidade e o risco associado às reformas.

O setor de distribuição, mais próximo do consumidor final, naturalmente, ganha mais visibilidade. Para integrar mais REDs, as redes precisam de novos medidores, de preferência inteligentes e capazes de reagir a problemas de intermitência, isolando determinado trecho da rede, por exemplo. Para realizar o dimensionamento de sua infraestrutura de distribuição, as distribuidoras precisam agora não apenas levar em consideração a carga de seus consumidores, mas também ter um sistema pronto para receber as injeções de potência realizadas pelos empreendimentos de micro e mini geração distribuída, conectadas à rede.

Basta pensar em como se transformou o perfil dos clientes comerciais ao instalarem sistemas fotovoltaicos em seus negócios. As redes de distribuição que os atendiam fornecendo eletricidade durante o horário comercial precisam agora ser capazes de receber a injeção de praticamente toda a carga que ele gera fora dos horários do funcionamento do comércio. Sabemos que uma rede deve ser dimensionada para atender a ponta do sistema e que essa ponta é inferior à soma do consumo de todos os consumidores, pois estes não possuem o mesmo perfil de carga, por terem necessidades diferentes em seus empreendimentos. Por outro lado, em dia de domingo de sol, quando esses estabelecimentos estiverem fechados, seus sistemas estarão gerando eletricidade e injetando tudo na rede de distribuição, simultaneamente. Em certos segmentos, já se faz necessária a instalação de novos transformadores ou mesmo subestações. À medida que a participação das REDs cresce, o problema se agrava. Assim, embora ainda longe de estar equacionada, a questão da distribuição ao menos tem visibilidade e é discutida. O que tem sido menos debatido é como as transformações no setor de distribuição têm afetado o setor de transmissão. Desse modo, analogamente à distribuição, as linhas também precisam se modernizar e ser capazes de lidar com um maior trânsito de elétrons e diferentes perfis de consumo e injeção. Para isso, é necessário aumento de investimento nas redes e nas “demais instalações de transmissão”.

Com efeito, diante do incremento da eletrificação, para garantir a segurança de abastecimento, os sistemas precisam de maior flexibilidade para lidar com os novos perfis de geração. Essa flexibilidade se dá, sobretudo, por meio de estoque e da integração de subsistemas para que, caso surja um problema em determinada região, possa-se recorrer a uma solução em outro subsistema ao qual ela esteja interconectada. A busca por estoques estratégicos, para os que não possuem grandes reservatórios hidrelétricos, se traduz na expansão da indústria de baterias. E vale lembrar que, apesar de grandes avanços, as baterias ainda se mostram como uma solução muito cara para estocagem de eletricidade. Em consequência, como solução para o aumento de flexibilidade os operadores de sistema reforçam os investimentos no setor de transmissão.

De acordo com o relatório The Coming Electrification of the North American Economy: Why We Need A Robust Transmission Grid, realizado pelo Brattle Group em parceria com o Group WIRES Group(1)(2019), bilhões de dólares deverão ser investidos nas redes de transmissão. O relatório aponta que o investimento em transmissão necessário para acomodar novos recursos renováveis, nos EUA, será de US$ 30 bilhões a US$ 90 bilhões, até 2030, e, até 2050, o investimento suplementar no setor deverá ser de US$ 200 a US$ 600 bilhões. Tais investimentos estão associados a um aumento do consumo de eletricidade de 5% a 15% até 2030, e de até 85% em 2050, como mostra a figura abaixo. Os autores do relatório afirmam que, sem os investimentos adequados em transmissão, a evolução da eletrificação com descarbonização do setor não irá ocorrer.

Figura 1. Incremento do investimento anual em transmissão relacionado ao aumento da eletrificação

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Source: Wires Group, 2019

O elevado nível de investimentos requerido se deve à necessidade de conectar mais fontes de geração de energias renováveis à rede e manter o sistema confiável face aos aumentos de consumo de ponta. Cabe ressaltar que o território americano está subdividido em três interconexões principais, que operam independentemente umas das outras com transferências de energia limitadas entre elas (U.S. EIA).

O estudo da WIRES (2019), entre vários outros realizados, aponta para a importância de agir proativamente no planejamento da infraestrutura necessária para a difusão da eletrificação do consumo de energia. Além da estimação dos investimentos necessários, ele mostra a preocupação dos atores em garantir a integridade e a robustez do sistema.

A proatividade nesse ponto é crucial e urgente. Investimentos em redes enfrentam sérios desafios. Entre estudos de planejamento, licenças, leilões e sua construção propriamente dita, novas linhas de transmissão podem levar mais de dez anos para entrar em funcionamento. A falta de endereçamento desse problema pode levar à incapacidade de atender às novas necessidades dos consumidores e até mesmo comprometer a segurança de todo o sistema. Desse modo, ao ritmo do crescimento da eletrificação e da participação de novos REDs, há urgência na melhoria das redes de transmissão.

O mencionado relatório da WIRES chama a atenção para a necessidade de expansão das redes e de integração das redes inter-regionais nos EUA – importantes para trazer flexibilidade ao sistema para que esse seja capaz de lidar com disrupções, comuns às renováveis intermitentes. Assim, não basta ter novas fontes de geração de eletricidade: a segurança do sistema passa a depender cada vez da integridade dos sistemas de transmissão e distribuição.

Com efeito, já em 2017, o The Rhodium Group publicou uma nota (2) a respeito do pedido do secretário de Energia dos EUA, Rick Perry, à Comissão Reguladora de Energia Federal (FERC) de intervenção nos mercados atacadistas para ajudar a manter funcionando as usinas termelétricas a carvão e as nucleares, que já não se mostravam competitivas face à geração de origem renovável (3). Os analistas do The Rhodium Group analisaram os dados de confiabilidade do DOE para avaliar a pertinência da preocupação do secretário Perry com a garantia do suprimento de combustível e encontraram que, de todas as grandes interrupções de energia, ocorridas entre 2012 e 2017, apenas 0,00007% haviam sido provocadas por problemas de abastecimento de combustível. A figura abaixo ilustra os demais resultados.

Figura 2: Causa de grandes distúrbios de eletricidade nos EUA

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Fonte: The Rhodium Group Analysis, 2017

A maior fonte de interrupções severas de abastecimento foi, de longe, provocada por eventos climáticos extremos(4), sem nenhuma relação com segurança de fornecimento de combustível ou adequação da geração. As interrupções ocorreram devido à vulnerabilidade das redes de transmissão e distribuição.

Diante da ocorrência de eventos climáticos extremos e do seu agravamento, a exemplo das chuvas e ventanias ocorridas no Rio de Janeiro e em Moçambique, é preciso trabalhar a resiliência da infraestrutura de transporte e de distribuição para garantir a segurança de abastecimento nos sistemas elétricos.

No Brasil, temos duas vantagens não negligenciáveis nessa corrida pela garantia de segurança e integridade do sistema elétrico. Possuímos grandes estoques estratégicos representados por nossos reservatórios hidrelétricos e um grande sistema de redes integradas, que formam o Sistema Integrado Nacional (SIN), com cobertura de 99% do consumo nacional. Sua preservação, modernização e expansão são essenciais para o sucesso da integração dos novos REDs e, consequentemente, para a garantia de segurança de abastecimento do País.

Referências

Burger, Jenkins, Batlle e Pérez-Arriaga (MIT, CEEPR WP 2018-007, 2018, disponível em https://www.iit.comillas.edu/docs/IIT-18-033A.pdf),

WIRES Group, 2019, The Coming Electrification of the North American Economy: Why We Need A Robust Transmission Grid, disponível em https://wiresgroup.com/new/wp-content/uploads/2019/03/Electrification_BrattleReport_WIRES_FINAL_03062019.pdf

The Rhodium Group Analysis, 2017, disponível em https://rhg.com/research/the-real-electricity-reliability-crisis-doe-nopr/

U.S. EIA (Energy Information Administration), U.S. electric system is made up of interconnections and balancing authorities, disponível em https://www.eia.gov/todayinenergy/detail.php?id=27152

Notas:

(1) O Wires Group representa atores do setor de transmissão. Relatório disponível em https://wiresgroup.com/new/wp-content/uploads/2019/03/Electrification_BrattleReport_WIRES_FINAL_03062019.pdf

(2) Houser, T., Larsen, J. e Marsters, P. “The Real Electricity Reliability Crisis”, 3/10/2017, disponível em https://rhg.com/research/the-real-electricity-reliability-crisis-doe-nopr/

(3) O secretário argumentava em favor das energias fósseis por elas “gerarem na base” e por isso “têm valor único para a confiabilidade da rede porque podem armazenar quantidades significativas de combustível no local”.

(4) Como exemplos recentes, temos os Incêndios florestais na Califórnia e em outros lugares da América do Norte. “A Califórnia tem se aquecido ao longo do século passado, resultando em árvores mais secas, arbustos e pastagens e levando a incêndios florestais mais freqüentes e prejudiciais. Os incêndios mais recentes mataram dezenas de pessoas, com potenciais passivos estimados em dezenas de bilhões de dólares. A Quarta Avaliação Nacional do Clima (The Fourth National Climate Assessment), publicada em novembro de 2018 pelo governo dos EUA, descobriu que o sistema energético do país será cada vez mais afetado por eventos climáticos extremos devido às mudanças climáticas, com cortes de energia cada vez mais freqüentes e duradouros.” https://www.utilitydive.com/news/extreme-weather-alert-how-utilities-are-adapting-to-a-changing-climate/549297/

(*) Professora da Escola de Química da UFRJ e membro do Grupo de Economia da Energia

OBS: Este texto foi publicado originalmente do Blog Infopetro

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