Como esvaziar reservatórios com mercantilismo e privatizações defeituosas.

Roberto Pereira D’Araujo

Introdução:

Para mostrar evidências que justifiquem esse título, é preciso um pouco de paciência e interesse nos dados do setor. Não se trata de um artigo sob ótica política, a não ser que os números que serão apontados tenham esse viés. Nesse caso, pode ser contestado com outros números que mostrem o oposto.

A culpa do artigo longo não é do autor e sim dos conflitos entre o modelo mercantil e o singular sistema brasileiro. Afinal não são pequenos desajustes que levaram o Brasil a ter a segunda mais alta tarifa residencial do mundo como mostra a Agência Internacional de Energia em https://www.iea.org/reports/energy-prices-2020 .

Dado que o Brasil é um dos líderes da hidroeletricidade e, recentemente, aplicou uma forte intervenção nas tarifas das usinas antigas, impondo receitas até 10 vezes menores do que as anteriores, é assustadora a total ausência de reação da sociedade brasileira quanto a esse recorde.

Como pretendo mostrar, parte dessa complacência se deve ao imenso nível de desinformação sobre o setor.

Vamos aos números:

O primeiro dado importante é o do gráfico abaixo, que mostra a evolução da capacidade instalada no sistema elétrico brasileiro desde 1974.

As tradicionais hidroelétricas e térmicas dominam o cenário. Solar e Eólica só são percebidas no gráfico de 2013 em diante.

Mas, o que é possível constatar é que, a partir de 1996, o país aumentou bastante a dependência de usinas térmicas. A não ser o fato de que esse tipo de geração elétrica provoca emissões de gases, nada contra essa opção. Contudo, há detalhes que mostram a associação desse crescimento com outros fatores que estão longe de um plano bem estruturado.

Se analisarmos o incremento anual dessa capacidade, dois períodos mostram um grande avanço de instalações térmicas. O primeiro de 1996 a 2004 e o segundo de 2008 a 2017.

O gráfico abaixo mostra, em termos percentuais, o quanto de térmicas fez parte do aumento da oferta em cada ano.

Reparem que, no período vermelho, até 70% da capacidade adicionada em um ano se deveu a usinas térmicas. De 1998 até 2004, adicionamos mais de 12.000 MW de usinas térmicas. No período amarelo, de 2008 a 2017, adicionamos mais de 20.000 MW, uma capacidade equivalente a uma vez e meia Itaipu, também superando outras formas de geração.

O que são essas “explosões” de térmicas?

O período vermelho é coincidente com o do anúncio das privatizações das subsidiárias da Eletrobras, quando, adotando estratégia para valorizar as empresas para a venda, os investimentos das estatais foram contidos. Ao mesmo tempo, o setor privado, frente à oferta de usinas e linhas prontas, também não investiu. O resultado foi o Plano Prioritário de Termoelétricas, que, adotado com atraso, não conseguiu evitar o racionamento de 2001. Como se sabe, 2001 foi um ano seco médio, pois, no histórico existem mais de 15 anos piores. Além disso, desde 1996 já existiam estudos da Eletrobras apontando o aumento do risco.

Reparem que grande parte das usinas desse planos entraram em operação a partir de 2003, e, como a Eletrobras foi descontratada a partir desse ano para implantação do modelo de mercado, isso fez o Brasil contratar térmicas no lugar de hidroelétricas!

Como o consumo total se retraiu cerca de 15% a partir do fim de racionamento, essas térmicas foram muito pouco usadas. Quem gerava em seu lugar, apesar da perda de contratos, eram as usinas hidroelétricas da Eletrobras.

Segundo dados do ONS, de 2003 até 2006 a geração térmica (nuclear não considerada) não passou de 8% da geração total. Essa “oferta” térmica foi substituída no bizarro modelo brasileiro por geração hidroelétrica sem contrato, onde a parcela da Eletrobras era liquidada pelo PLD (R$/MWh) mostrado no gráfico abaixo. Como referência de preço, o setor residencial pagava cerca de R$ 280/MWh.

Evidentemente, com quatro anos onde o preço de liquidação médio girava no entorno de R$ 40/MWh, o mercado livre se expandiu rapidamente saltando de 5% para mais de 25% do consumo total.

Esse crescimento explosivo não foi acompanhado de expansão da oferta para esse mesmo mercado. Contratos de longo prazo não podem ser confundidos com expansão da oferta, pois eles podem se referir apenas a usinas existentes. Na realidade não houve a contratação de aumento da oferta no futuro.

Toda a expansão era contratada pelo mercado cativo das distribuidoras, que, numa rara contradição, perdiam consumidores para esse mesmo ambiente de mercado. Mais uma vez, agora em função de um mercantilismo com viés de preços baixos e ausência de regulamentação, houve uma expansão insuficiente da oferta.

O gráfico abaixo mostra que a carga total do sistema chegou a ultrapassar o nível de “garantia física” do sistema, o parâmetro básico de risco como definido pelas autoridades que arquitetaram essa estrutura mercantil.

Como é comum no sistema brasileiro, a variável hidrologia tropical mascarou essa deficiência com três anos seguidos de grandes afluências (2009, 2010, 2011).

Assim, repetindo o efeito, acontece o segundo “boom” de térmicas de cor amarela no gráfico. Além desse novo “espasmo”, dado o risco, a Eletrobras foi obrigada a oferecer parcerias com o setor privado e, contabilmente, foi implantado uma nova forma de contratação, a energia de reserva, que chegou a custar R$ 150 bilhões ao consumidor.

No mundo real, o efeito indireto dessa preferência por usinas térmicas contratadas nesses dois momentos de crise pode ser visto no gráfico abaixo que mostra a energia reservada nos reservatórios do sistema (em azul) e a carga mensal média em vermelho.

O primeiro “espasmo” térmico foi absorvido pela queda de demanda pós racionamento. O segundo “espasmo”, coincide com o estranho comportamento do sistema que não consegue mais recuperar o volume de energia que conseguia antes de 2012. O consumo total hoje é apenas 10% superior ao do período 2012, portanto, não se trata de um aumento desproporcional da demanda, até porque temos uma crise econômica e efeitos do COVID-19.

O que está por trás:

Três fatores explicam essa mudança perigosa que pode nos trazer desagradáveis surpresas em 2021. O primeiro é óbvio, o segundo, surpreendente e o terceiro mostra que não aprendemos nada com o passado:

Primeiro Fator: A preocupante queda das energias naturais (afluências) nos sistemas.

 

Reparem que as afluências do sistema Nordeste (Rio S. Francisco) estão abaixo da média histórica em todo o período. Apesar dessa redução, as eólicas salvam o nordeste da redução dos níveis de reservatórios. O Sul tem grande variação, mas também cai de 160% para 58% a partir de 2015. O sistema Sudeste, onde está localizada a reserva principal do sistema, cai de 100% para 70%. O Norte tem comportamento parecido com o Sudeste. Portanto, os rios brasileiros são fonte de preocupação. Não se pode descartar a influência do desmatamento na Amazônia e uma mudança da intensidade de umidade carreada pelos chamados “rios voadores”.

Segundo Fator: O parque térmico que contratamos, ao contrário do que pensam alguns, esvaziam reservatórios ao invés de preservá-los. Entendam a razão:

O gráfico abaixo mostra, de forma aproximada, a distribuição de potência térmica x preço. Preço (CVU, R$/MWh) no eixo horizontal e potência disponível (MW) no vertical.

O primeiro patamar até R$ 100/MWh congrega aproximadamente 5.000 MW. Nesse grupo ficam, por exemplo, as usinas nucleares de Angra que estão permanentemente ligadas. Portanto, esse conjunto de usinas não participa muito da gestão variável da reserva.

O segundo patamar, de R$ 100 até R$ 200/MWh com aproximadamente mais 5.000 MW é o que se pode contar para administrar a reserva sem grande impacto no preço final. Mas, mesmo ali, usinas com inflexibilidade acabam por não exercer totalmente o papel variável de regulação da reserva.

O grupo de térmicas acima de R$ 300/MWh até R$ 1600/MWh (aproximadamente 12.000MW) faz parte daquela oferta de energia que, por ser cara, é frequentemente substituída pelas hidráulicas. Por esse motivo, a recuperação dos níveis mais conservadores dos reservatórios fica frequentemente sendo adiada e dependendo apenas da hidrologia.

Essas térmicas estão computadas na garantia física total e, portanto, a rigor, não se pode dizer que o déficit se aproxima. O que se pode afirmar é que o custo de operar esse sistema fica tão caro que deixa inequívoca a necessidade de novas usinas. O desequilíbrio oferta – demanda é evidente, pois operar fica mais caro do que expandir.

Adicione-se a esse cenário o fato de que o modelo, através de um mimetismo de sistemas térmicos, arbitrou quantidades fixas de energia (Garantia Física) para todas as usinas. As hidráulicas, sujeitas às variações da hidrologia que agora se mostram preocupantes, ainda arcam com um déficit de geração (Generating Scaling Fator – GSF) que lhe atribuem prejuízos que serão repassados aos consumidores.

Terceiro Fator: O terceiro motivo é uma imitação do primeiro. O país vive um repetido ambiente pré liquidação de usinas e linhas prontas e funcionando da Eletrobras. Mais uma vez se copia a sequência de erros. A Eletrobras reduz fortemente seus investimentos, o setor privado se retrai aguardando a oportunidade de adquirir ativos prontos e, apesar da forte redução de crescimento do consumo nos últimos 4 anos, podemos estar caminhando para uma nova crise de suprimento de energia em 2021.

Triste conclusão:

Muito além dos problemas políticos, sanitários, econômicos que estamos passando, é fácil perceber que a expansão de usinas térmicas, que encarece a energia brasileira e não ajuda a preservar a reserva, não surgiu de um plano bem estruturado, mas sim de “espasmos” originados em expectativas frustradas sobre o comportamento do “mercado”. Imagina-se um comportamento mercantil que substitua um planejamento de longo prazo e, vistos os resultados, a frustração exige soluções impensadas que encarecem e montam uma difícil trajetória que consiga recuperar as vantagens que já tivemos.

Além disso, estamos mergulhados num oceano de desinformação.

Os consumidores sequer sabem o que está por trás da sua alta tarifa, sequer sabem que já somos os vice campeões de energia cara no mundo, sequer sabem que a eletricidade no país já é dominada por grandes grupos privados, sequer sabem que o país não tem agências reguladoras capazes de lidar com as complexidades do sistema, sequer sabem do altíssimo grau de fragmentação de instituições, sequer sabem que o mercado livre alardeia ter economizado mais de duzentos bilhões de reais sem participar da expansão da oferta e capturando vantagens singulares do sistema e, embalados pela repetição de velhos chavões na grande mídia, culpam apenas as instituições tradicionais como a Eletrobras sem perceber que, além do próprio consumidor, a estatal é a grande vítima dessa tragicomédia.

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