Integração de recursos distribuídos nos sistemas elétricos e suas possíveis rotas de expansão – Artigo

Por Diogo Lisbona Romeiro (*)

Os sistemas elétricos se encontram em profunda transformação. A difusão da geração distribuída, principalmente da solar fotovoltaica, e a propagação de novas tecnologias e aplicações como carros elétricos e estocagem distribuída despontam como soluções para descarbonização dos sistemas, contestam a centralização da rede unidirecional e posicionam os consumidores, antes passivos e coadjuvantes, em protagonistas polivalentes.

Estruturados em torno de cadeia verticalmente integrada – com transmissão e distribuição interligando a geração centralizada ao consumidor passivo final –, os sistemas elétricos assistem a proliferação de recursos de energia distribuídos (distributed energy resources – DER). Definidos como recursos instalados nos sistemas de distribuição (não necessariamente atrás dos medidores) capazes de prover serviços de eletricidade, os DER abrangem desde plantas de geração, resposta e gestão da demanda e estocagem de eletricidade a veículos elétricos, dispositivos de controle, medidores e aparelhos inteligentes. Embora alguns desses recursos não provejam essencialmente eletricidade, tornam-se DER frente à possibilidade de administração e gestão do consumo (carga) de modo remoto, autônomo e instantâneo, propiciada pelo desenvolvimento de tecnologias de informação e comunicação que transformam bens de consumo em serviços (PEREZ-ARRIAGA et al., 2016).

Neste contexto, com a redução significativa de custos dos painéis solares e a perspectiva de estocagem distribuída de eletricidade em escala comercial, a rota off-grid acena para a possibilidade de emancipação da rede, prometendo autonomia e autossuficiência. A geração distribuída assim compreendida, como contestação da rede e consequente libertação de seus custos e ônus, compõe o emaranhado de ideias e visões que circundam o horizonte de evolução dos sistemas elétricos.

A integração aos sistemas centralizados atuais dos recursos distribuídos e dos novos prosumers (consumidor-produtor) ou mesmo prosumages (consumidor-produtor-armazenador), nos termos de Green & Staffell (2017), é um dos principais desafios da indústria. Ao mesmo tempo em que a evolução do sistema é determinada pela penetração das novas tecnologias e atores, as rotas de expansão determinam as possibilidades e os graus de integração.

Paralelamente à rota off-grid, pode-se vislumbrar outros caminhos de expansão com maior ou menor grau de descentralização e interdependência. Frente à incerteza tecnológica e regulatória próprias de momentos de inflexão e às movimentações e disputas de grupos de interesse por detrás da economia-política do setor, é difícil antever rotas prováveis ou mesmo factíveis.

A estrutura atual centralizada é fruto de mesmo embate e incerteza que rondaram os primórdios da indústria no início do século passado. A batalha das correntes (contínua versus alternada) entre Edison e Tesla (Westinghouse) marcou o início da rota de expansão do setor, quando se cobrava embrionariamente pelo número de lâmpadas instaladas nas residências. A corrente alternada de Tesla, com suas vantagens para centralizar a geração e distribuir o fluxo em vários pontos, se impôs tecnologicamente, enquanto que Samuel Insull estruturou o modelo de negócio verticalmente integrado apoiado sob a cobrança volumétrica, impulsionando a indústria com ganhos crescentes de escala, escopo e rede (MUNSON, 2005).

Sob esta perspectiva, como grande parte dos DER (incluindo a solar fotovoltaica e a estocagem em baterias) proveem ou aceitam fluxos elétricos em corrente contínua, assim como os dispositivos de consumo em geral também a utilizam nos circuitos internos, a descentralização e a prevalência de recursos distribuídos poderiam representar uma reviravolta no padrão tecnológico da indústria – Tesla teria ganho a batalha, mas Edison a guerra.

Compreendendo os sistemas elétricos como sistemas técnico-social em transformação, Hojcková et al. (2018) observam que diferentes soluções alternativas emergem, competem e co-evoluem ao logo do tempo. A seleção de caminho resulta de processo de acumulação e alinhamento de componentes heterogêneos, cuja transição tecnológica ocorre em meio (e a despeito) de dependência de caminho (path dependence), inercia e aprisionamento de trajetórias (lock-in). Consequentemente, os novos sistemas nunca são independentes de estruturas preexistentes e o processo de inovação – mecanismo pelo qual essas estruturas se combinam e se transformam – não as substitui integral e definitivamente, verificando-se uma sobreposição de estruturas ao longo do tempo.

A partir desta perspectiva, Hojcková et al. (2018) vislumbram três cenários de transição distintos para sistemas completamente renováveis, com diferentes níveis de interconectividade entre os agentes (Figura 1): sistemas com consumidores dependentes (super-grid), interdependentes (smart-grid) ou independentes (off-grid). O cenário super-grid corresponde às características atuais, permanecendo a geração significativamente centralizada, ainda que renovável. No cenário smart-grid, o sistema seria composto principalmente por prosumers interconectados, abrindo espaço para elevada interação. Já no cenário off-grid, a estocagem distribuída tornaria o desligamento da rede atrativo, em processo conhecido por espiral da morte, quando o custo da rede aumenta diretamente com a taxa de abandono, reforçando a saída.

Figura 1 – Sistemas com diferentes tipos de interconectividade entre consumidores

Fonte: Hojcková et al. (2018)

A rota off-grid pode-se destacar em contexto de sistemas precários ou mesmo inexistentes, constituindo-se não uma solução provisória enquanto a rede não chega, mas permanente, como solução de longo prazo reconhecida e adequada. Já em contextos de sistemas elétricos maduros (desenvolvidos), a rota off-grid em geral está associada a (supostos) benefícios decorrentes do “empoderamento” dos consumidores, da descarbonização por inciativa e meios próprios e da autossuficiência. Porém, face à emergência de inúmeros recursos distribuídos e de todas as vantagens que a interconectividade traz aos usuários, o cenário de prosumages autônomos e independentes perde sentido mesmo para comunidades isoladas.

Investigando a “era dos prosumers”, Parag & Sovacool (2016) ponderam que a trajetória off-grid com agentes desconectados e autossuficientes deve permanecer restrita. As novas tecnologias e aplicações acenam para a interdependência das redes inteligentes, pela multiplicidade de serviços e utilidades que a interconectividade possibilita – pelas complementariedades e sinergias (com ganhos de escopo e rede), ampliando a eficiência das aplicações através de controles inteligentes e reações instantâneas aos sinais de preço.

A integração de DER direciona as trajetórias de expansão para soluções com maior grau de descentralização, mas essas rotas não implicam necessariamente em distribuição completa de recursos e independência de agentes. Pelo contrário, dificilmente o cenário com maior conectividade e complexidade que se avizinha prescindirá dos ganhos sistêmicos das redes preexistentes. Neste contexto, a rota de expansão se distanciaria de transição rumo à descentralização ou distribuição e se aproximaria de integração dos novos recursos e seus atributos às estruturas centralizadas, demandando adaptações dos sistemas e transformações das estruturas (físicas e virtuais) de coordenação.

Neste sentido, as definições de recursos distribuídos ou descentralizados, em geral empregadas de forma sinônima, deveriam se distinguir em relação à escala e à interconectividade dos agentes, ainda que ambos os recursos se localizem nas redes de distribuição. O desenvolvimento de recursos descentralizados, como micro-geração e estocagem, pode se beneficiar de ganhos não desprezíveis de escala (LOMBARDI & SCHWABE, 2017), favorecendo a integração de outros recursos nas redes, em contexto de proliferação de plataformas e aplicações que conciliam conectividade (internet das coisas – IoT) e compartilhamento (sharing economy).

Dentro da rota de expansão de redes inteligentes, apontada por Hojcková et al. (2018), Parag & Sovacool (2016) identificam diferentes possíveis modelos de integração de recursos e agentes às redes e respectivas estruturas de mercado (Figura 2): modelos com interconexão direta (peer-to-peer) entre os agentes (A), modelos com agentes integrados a micro-redes (microgrids) interconectadas (B) ou isoladas (C), e modelos com agentes agregados em comunidades interconectadas (D).

Figura 2 – Possíveis configurações de sistemas com penetração de DER

Fonte: Parag & Sovacool (2016).

Os autores observam que os diferentes sistemas possibilitam distintas configurações de mercados e possibilidades de remuneração dos recursos. Em sistemas e mercados com interconexão direta entre agentes (peer-to-peer), os fluxos fixos de produção, consumo e estocagem seriam determinados por plataformas virtuais, onde todos os serviços seriam remunerados. Neste cenário, a rede de distribuição receberia uma taxa pela gestão da rede e uma tarifa pelo serviço de distribuição, em função do tipo e montante do serviço e da distância entre provedores e consumidores. Ainda que possam se revelar factíveis, não é claro como garantir confiabilidade e modicidade a todos nesse sistema, aparentando ser a rota mais improvável dentre as configurações elencadas.

O desenvolvimento de micro-redes (microgrids) se apresenta como solução promissora para integrar os DER à estrutura atual centralizada e unidirecional. Concebidas no final dos anos 90, as micro-redes são estruturadas para administrar e integrar recursos (distribuídos) nas redes de distribuição de modo a maximizar a confiabilidade e a resiliência do sistema frente a interrupções originadas por desastres naturais, ataques físicos ou cibernéticos e falhas em cascata. A sua arquitetura permite administrar oferta e demanda de energia localmente em subseções da rede que podem ser isoladas automaticamente da rede principal, garantindo a provisão de serviços essenciais (HIRSCH et al., 2018).

Desta forma, ao invés de coordenar recursos distribuídos individualmente, pode-se agregá-los em micro-redes, que emergem nos sistemas de distribuição como fontes (de consumo, geração ou estocagem) capazes de interferir a carga residual de modo automático e instantâneo, respondendo a sinais de preço.

Micro-redes interligadas à rede principal ou isoladas geram incentivos distintos aos agentes. Enquanto que no cenário interligado há incentivos a gerar excesso de serviço, dada a possibilidade de provisão à rede principal e consequente remuneração, em contexto isolado os serviços devem ser adequadamente dimensionados ao nível da micro-rede.

Podem-se instituir diferentes âmbitos de mercados, que englobem apenas as micro-redes ou toda a rede de distribuição, ou ainda que segmentem os agentes e credencie acesso específico a mercados próprios (por exemplo, baixo ou médio-alta voltagem). Neste contexto, a instituição de mercados locais pode alterar a lógica e gestão das “construções inteligentes”, que atualmente se estruturam em módulos autossuficientes.

Em Nova York, o projeto piloto da Brooklyn Microgrid estruturou uma micro-rede física e virtual na qual consumidores e prosumers interconectados podem comercializar energia entre si diretamente através de uma blockchain privada (Romeiro, 2017). A micro-rede física ainda não possui autossuficiência, mas garante suprimento a consumidores prioritários em casos emergenciais de interrupção da rede principal, isolando a micro-rede da rede da distribuidora. A comercialização de energia ainda não determina os fluxos efetivos dentro da micro-rede, cujo consumo é suprido pela rede da distribuidora local. Assim, a comercialização via blockchain entre os participantes da micro-rede da Brooklyn Microgrid se traduz em comercialização de saldos de energia (basicamente solar) entre vizinhos interligados via blockchain, incentivando a produção distribuída local de energia renovável (MENGELKAMP et al., 2018).

Outra possibilidade de configuração dos sistemas pode envolver comunidades organizadas de prosumers ou prosumages (Figura 2, D), situando-se em termos de estrutura e escala entre as rotas de expansão anteriores. As comunidades agregariam os recursos locais em um pool, favorecendo a coordenação via agregadores, levando em conta necessidades específicas e potencialidades regionais, traduzindo-se em plantas de geração virtual interligadas à rede.

Comunidades energéticas são particularmente importantes na Alemanha (MCKENNA, 2018), onde cera de 50% da capacidade de energia renovável é de propriedade indivíduos privados, e na Austrália (GUI & MACGILL, 2018). McKenna (2018) observa que uma das principais motivações dessas comunidades se origina do desejo de independência de mercados e sistemas centralizados, verificando propensão marginal a pagar maior para a energia gerada localmente do que importada. Porém alerta que a propriedade comunitária desses ativos não é sempre vantajosa, não se traduzindo necessariamente em benefícios locais. Ademais, a maior parte dessas regiões “autônomas” se apoia no sistema centralizado de energia para balancear sua demanda. Assim, o conceito de autonomia em geral restringe-se a horizontes temporais estendidos (anuais) e apenas a eletricidade, sem englobar, por exemplo, serviços ancilares (frequência e voltagem) e demanda por flexibilidade. Portanto, embora incentivos microeconômicos possam direcionar a expansão para soluções “autônomas”, efeitos macro agregados podem ser prejudiciais e não devem ser negligenciados.

Frente à penetração de recursos distribuídos e os incentivos crescentes a sua adoção, via competitividade e estímulos regulatórios, o grau ótimo de descentralização torna-se uma questão crucial. A expansão dos sistemas e a integração dos novos recursos se deparam com inúmeras rotas possíveis de expansão. A incerteza tecnológica e os interesses de grupos específicos compõem o emaranhado de visões e “soluções” para a transformação dos sistemas elétricos.

O espectro da rota off-grid paira sob o setor, face à perspectiva de inovações tecnológicas disruptivas para estocagem distribuída. Porém, as potencialidades das redes inteligentes sugerem que a interconectividade física e virtual dos agentes superará incentivos à desconexão e autonomia – possuir recursos distribuídos e desconectados da rede seria análogo a ter dispositivos eletrônicos sem internet. Neste horizonte, os ativos atuais deixariam de ser abandonados em processo de “espiral da morte”, tornando-se ativos extremamente estratégicos.

Mesmo frente às potencialidades das redes inteligentes e de seu desenvolvimento em ritmo acelerado, deve-se ter em mente que o processo de transformação tende a ser cumulativo e a rota de expansão apresenta dependência de caminho, o que sugere que a centralização e as fontes convencionais permanecerão no horizonte por um longo tempo.

Referências:

GREEN, R.; STAFFELL, I. (2017). “Prosumage” and the British Electricity Market. Economics of Energy & Environmental Policy, Vol. 6, No. 1.

GUI, E.; MACGILL, I. (2018). Typology of future clean energy communities: An exploratory structure, opportunities, and challenges. Energy Research & Social Science, 35: 94-107.

HIRSCH, A.; PARAG, Y.; GUERRERO, J. (2018). Microgrids: A review of technologies, key drivers, and outstanding issues. Renewable and Sustainable Energy Reviews, 90: 402-411.

HOJCKOVÁ, K.; SANDÉM, B.; AHLBORG, H. (2018). Three electricity futures: Monitoring the emergence of alternative system architectures. Futures, 98: 72-89.

LOMBARDI, P.; SCHWABE, F. (2017). Sharing economy as a new business model for energy storage systems. Applied Energy, 188: 485-496.

MCKENNA, R. (2018). The double-edged sword of decentralized energy autonomy. Energy Policy, 113: 747-750.

MENGELKAMP, E.; GÄRTTNER, J.; ROCK, K.; KESSLER, S.; ORSINI, L.; WEINHARDT, C. (2018). Designing microgrid energy markets: A case study: The Brooklyn Microgrid. Applied Energy, 210: 870-880.

MUNSON, R. (2005). From Edison to Enron: The Business of Power and What It Means for the Future of Electricity. Praeger.

PARAG, Y.; SOVACOOL, B. (2016). Electricity market design for the prosumer era. Perspective, Nature Energy.

PÉREZ-ARRIAGA, I. J. et al. (2016). Utility of the Future – An MIT Energy Initiative response to an industry in transition. MIT/Comillas.

(*) Doutorando do Instituto de Economia da UFRJ

Publicado originalmente no Blog Infopetro

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