Dívidas – Camuflando o abismo Adriano Benayon Como costuma ocorrer em anos eleitorais, a maquilagem das notícias econômicas está tendo reforço extra. Com o festival de ilusões que promovem, os an …

Dívidas – Camuflando o abismo




Adriano Benayon

Como costuma ocorrer em anos eleitorais, a maquilagem das notícias econômicas está tendo reforço extra. Com o festival de ilusões que promovem, os anestesistas de vampiro tentam exorcizar o fantasma da Argentina, onde a outrora supervalorizada moeda desceu tanto, que está abaixo do real. Ali prossegue a degradação econômica e social, e o incrível governo continua a pedir ao FMI mais do veneno que carcome as energias do país, há mais de 26 anos. De resto, veneno igual ao que nos intoxica. Convém não esquecer que, há 4 anos, até um pouco depois das eleições, prolongaram a sobrevida artificial do real, com altíssimo custo para o País.


O Banco Central divulgou como despesas de juros em 2001 a quantia de R$ 86,4 bilhões, em comparação com R$ 78 bilhões em 2000. Mas é muito mais. A dívida mobiliária interna (títulos públicos em poder do "mercado") chegou, no final de 2001, a R$ 660 bilhões. Desses, mais de R$ 180 bilhões são títulos indexados ao dólar. A taxa média de juros pagos nos títulos públicos superou 20% aa. Sobre um saldo médio anual da ordem de R$ 600 bilhões, já está aí despesa bem superior a R$ 120 bilhões. E isso se refere a só uma parte da dívida interna. Entre as demais partes, falta levar em conta outros R$ 180 bilhões correspondentes aos títulos do Tesouro em poder do Banco Central. A emissão deles implica acréscimo na base monetária, que também é parte da dívida interna total. Além disso, esquecem os saldos dos depósitos de poupança, do FGTS e do FAT, cujos recursos são usados para subsidiar as oligarquias estrangeira e local em detrimento dos trabalhadores, que é a quem eles pertencem.


Na dívida externa foi feita maquilagem especial em 2001, passando-se a computar como investimento direto (IDE) os empréstimos intra-companhia, i.e, da matriz à subsidiária das transnacionais. Essa mágica diminui a "dívida", mas não o passivo externo, em que se tem de incluir os IDEs. Isso afora omissões diversas. Tendo chegado a US$ 237 bilhões em 2000/2001, a dívida foi, graças a esses expedientes, contabilizada, em janeiro de 2002, como sendo de US$ 192,4 bilhões. No final de 1994 ela ainda pouco passava de U$ 100 bilhões. De qualquer forma, redução real na dívida externa em 2001 é impossível, uma vez que o saldo negativo de transações correntes praticamente se manteve igual, e houve queda no ingresso de "investimentos" diretos estrangeiros. Os próprios dados do BACEN indicam que não houve melhora nas contas externas. Ele agora subdivide os serviços em "serviços" e "rendas". Nestas entram os juros da dívida externa e mais os rendimentos, assumidos como tais, dos investimentos diretos estrangeiros (IDEs). O grosso dos rendimentos dos IDEs são remetidos pelas contas de "serviços" e comercial (nesta, por meio das transferências embutidas nos preços de importação e exportação). Ora, o saldo líquido negativo da conta de rendas atingiu um recorde em 2001, US$ 19,7 bilhões. Ademais, o déficit de serviços e rendas cresceu, em 2001, para US$ 27,5 bilhões, apesar da retração econômica e de a taxa de câmbio se ter depreciado.


Em suma, são cada vez maiores a vulnerabilidade e o círculo vicioso da dependência em relação ao que constitui exatamente a fonte da deterioração: a dependência em relação aos capitais estrangeiros, especialmente aos investimentos diretos. De resto, mais importante do que avaliar a dimensão e o crescimento da dívida é compreender de onde ela provém. O que acontece quando o déficit da conta corrente é "compensado" por saldo positivo na conta de capitais (empréstimos/financiamentos e por investimentos diretos)?


As transferências ao exterior determinam o Brasil a ter déficits crônicos nas transações correntes. Só nos últimos cinco anos eles acumulam US$ 137,1 bilhões de dólares. O déficit de transações é o saldo líquido dos recursos financeiros remetidos do Brasil para o exterior, de forma definitiva. Adeus para eles. Nunca mais se os verá, nem se terá título algum sobre eles.


Em relação aos capitais estrangeiros é o oposto que ocorre. O saldo positivo na conta de capitais significa que: a) no caso dos empréstimos/financiamentos, aumento de nossa dívida e, portanto, dos créditos de que bancos estrangeiros ficam sendo titulares; b) no caso dos investimentos diretos (IDEs), os bens de produção, imóveis, jazidas, etc. passam a ser de propriedade de empresas estrangeiras, e – o que é pior – na proporção de um grande múltiplo do capital registrado como investimento direto. Este monta a cerca de US$ 170 bilhões. Ao câmbio atual isso equivale a R$ 400 bilhões, ou seja, 35% do PIB.


Embora nem de longe tenham contribuído para o crescimento da produção sequer na proporção de seu valor registrado, os investimentos diretos assumiram poder na economia, no mínimo, quatro vezes maior que esse valor, ou seja, algo em torno de 150% do PIB. A relação capital/produto histórica no Brasil é de 2,5. Portanto, 2,5 unidades de capital produzem anualmente 1 unidade de produto. Assim ao PIB de R$ 1,15 trilhão corresponde um capital de R$ 2,875 trilhões. Deste, provavelmente 60% ou mais já pertence a empresas transnacionais. Isso equivale a R$ 1,725 trilhão, quantia que é um múltiplo (4,3 vezes) dos R$ 400 bilhões do investimento direto registrado, que também inclui os "reinvestimentos".


Para entender por que o múltiplo é da ordem de 4 a 5, observe-se o seguinte. 1º. O modelo econômico põe em situação insustentável as empresas privadas brasileiras, e os donos delas as têm de vender por quase nada. 2º. Fabulosos patrimônios das empresas estatais são entregues por nada, e onerando ainda mais o País com financiamentos públicos a juros favorecidos, prêmios e isenções fiscais e toda sorte de subsídios, tudo pago pelo Povo brasileiro. O nome desse escândalo é "privatização". 3º As transnacionais que produzem no Brasil eliminam a concorrência, pois trazem capital físico e tecnologia amortizados pelas vendas em grandes mercados no exterior. Desfrutam de ganhos de oligopólio; com isso, além de transferir o grosso para fora do País, ainda sobra para reinvestir.


O recurso ao capital estrangeiro tem a característica de agravar o problema que esperam que ele solucione: o déficit nas transações correntes com o exterior. Pois, em 1º lugar, as despesas de juros crescem em função do aumento da dívida externa. Em 2º lugar – e mais importante – o déficit é, antes de tudo, gerado pelas transferências efetuadas pelas empresas transnacionais, as titulares do investimento direto. Elas utilizam para isso mais de dez contas diferentes do balanço de "serviços", além dos preços de transferência nas importações e exportações de bens. Remetem, assim, em favor de suas matrizes, os assombrosos ganhos decorrentes das posições de monopólio e oligopólio. É lógico, portanto, que o déficit de transações correntes cresça tanto mais quanto mais elas concentrem a produção e o poder sobre os mercados (dois efeitos do "investimento" direto).


Além de agravar-se sempre, a economia dá, de tempos em tempos, saltos para o abismo. Por exemplo, quando: a) a dívida se aproxima de uma proporção que faz temer pela capacidade de o País continuar a servi-la; b) o investimento direto estrangeiro se retrai. Ambos eventos fazem elevar ainda mais os juros reais internos e os externos, acelerando o crescimento das dívidas e tornando ainda menos sustentável a carga de juros que pesa sobre o País. Além disso, levam a desvalorizar a taxa de câmbio, o que, por sua vez, faz crescer o valor em reais da dívida externa bem como elevar a dívida interna por efeito da valorização dos títulos indexados ao dólar.


Tudo isso faz definhar as despesas não financeiras. O detrimento a elas é ilustrado por mais de mil casos. Entre esses, o dos velhos guardas de um órgão de saúde pública em Belém do Pará (SUCAM). Interpelados por não haverem percebido a existência de mosquitos transmissores da dengue (aedes aegypti), provenientes do Caribe, alegaram, com razão, que não os tinham distinguido, pois seu salário não lhes permite comprar óculos.


À medida que, como na Argentina, o colapso se aprofunda, recorre-se, de novo, ao FMI. Este então manda cortar mais despesas que não sejam as financeiras, e aumentar impostos. Tudo isso faz cair a renda e a produção, fazendo avultar ainda mais a desproporção desfavorável entre, de um lado, a capacidade econômica e, de outro, o tamanho das dívidas e seu serviço. Enquanto não se afasta o modelo existente, o círculo vicioso vai dando mais voltas. Na realidade, não é um círculo. É uma espiral, pois, a cada volta, a dimensão dos problemas cresce.


A análise demonstra que está por vir aqui o que sucede com o vizinho do Sul. Espanta-me que na Argentina ainda não se varreu do mapa o sistema político-econômico, cujos gestores se prostram em patética mea culpa aos pés do FMI e imploram por mais castigos contra o Povo, como se este tivesse causado as misérias produzidas por eles próprios. Essas decorrem da prática de idolatria, pois aqueles gestores adoram o dólar e os enganosos ingressos de "capital" estrangeiro.



* – Adriano Benayon, Doutor em Economia pela Universidade de Hamburgo, Alemanha. Autor de "Globalização versus Desenvolvimento"

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