Brasil revive crise energética e risco de apagão

No último dia 28 de junho, o Ministro de Minas e Energia, Almirante Bento Albuquerque, anunciou em cadeia nacional de televisão que o governo adotaria medidas para evitar um racionamento de energia, que nosso sistema elétrico é robusto e que se a sociedade colaborar, será possível atravessar sem maiores sobressaltos a grave crise hídrica pela qual passa o país. 

É evidente que a situação não está sob controle. Não é usual que um Ministro desta pasta venha em cadeia nacional comunicar aos brasileiros que tudo transcorre normalmente. 

No mesmo dia foi editada a Medida Provisória 1.055/21, criando a Câmara de Regras Excepcionais para a Gestão Hidroenergética (CREG). Se foi necessária a criação de um órgão para adotar regras excepcionais, fica claro que há uma crise e que haverá impactos negativos para a sociedade.  

Como agravante, no dia seguinte ao anúncio da MP 1.055, a ANEEL determinou um reajuste de 52% no valor da bandeira vermelha nível 2. A verdade é uma só: independentemente de não ter sido anunciado claramente pelo Ministro Bento Albuquerque, ou estar expresso na MP, o racionamento já começou. 

Tendo em vista a gravidade da crise, os sintomas são de que o governo escolheu lidar com ela de maneira gradual, escalando o rigor das medidas, de acordo com o desenvolver dos acontecimentos. Ou seja, ao invés de anunciar um plano detalhado para a sociedade, com cronogramas definidos, cenários possíveis e medidas de enfrentamento, o governo prefere agir de forma pouco transparente e estratégica, anunciando as medidas espaçadas, testando seus impactos e fazendo avaliações táticas. 

Analisemos agora as duas medidas do racionamento efetivamente adotadas nas últimas 24 horas: 

  1. Edição da MP 1.055/21: O CREG, órgão colegiado, coordenado pelo Ministro de Minas e Energia e tem por objetivo “estabelecer medidas emergenciais para a utilização dos recursos eletroenergético e para o enfrentamento da atual situação de escassez hídrica, a fim de garantir a continuidade e segurança do suprimento eletroenergético do país”. 

Ou seja, o racionamento começa pelo lado da oferta, nesse caso, de água. Como é sabido a água dos reservatórios de nossas hidrelétricas possui usos múltiplos, como irrigação, piscicultura, turismo, abastecimento animal e humano e geração de energia elétrica.  

Está explícito que, tendo em vista a crise hídrica e energética, será dada prioridade para o uso energético da água dos reservatórios. Isso, em um contexto de escassez, levará a inevitáveis conflitos, pois os demais usuários dos recursos hídricos, certamente sofrerão prejuízos que vão impactar nas mais diversas atividades econômicas, como a agricultura e o transporte aquaviário, por exemplo; 

  1. Reajuste nas bandeiras tarifárias: No dia 29/06 a ANEEL reajustou as bandeiras tarifárias, instrumento utilizado para sinalizar o risco hidrológico e endereçá-lo ao consumidor. No momento, o Brasil está submetido à bandeira Vermelha Nível 2 (o patamar mais elevado) e esta bandeira sofreu um reajuste de 52%. É o racionamento pela perspectiva da demanda. 

Ao reajustar o patamar da bandeira tarifária e sinalizar a possibilidade de fazê-lo novamente em breve, a ANEEL coloca no consumidor o custo da geração adicional de energia termelétrica (mais cara) e busca objetivamente inibir o consumo. 

Seriam essas medidas suficientes? 

A resposta a essa pergunta depende de algumas variáveis: 

  1. Hidrologia: Estamos ainda no início do período seco nas regiões Sudeste e Centro-Oeste (que concentram 70% da capacidade de armazenamento do país) e é muito pouco provável que haja chuvas suficientes para recuperar os reservatórios até o início previsto do período úmido, em novembro. Além disso, caso não haja chuvas bem acima da média histórica entre o fim de 2021 e o começo de 2022, há uma tendência forte de que a crise energética do próximo ano seja bem mais grave; 
  1. Crescimento econômico: No Brasil o crescimento econômico está sempre associado ao crescimento do consumo de energia elétrica, geralmente em um fator de 1 para 1,5. Ou seja, se a economia (PIB) crescer 5% esse ano, como preveem alguns economistas, podemos ter um crescimento do consumo da ordem de 7,5%. É importante ressaltar que no ano passado como um todo, apesar da economia ter desabado 4,1%, o consumo de energia recuou apenas 1%. Esse crescimento do consumo gerado pelo aquecimento da economia, impulsionado pela diminuição das restrições da pandemia, pode de fato gerar situações de risco de blackout por sobrecarga, principalmente nos horários de pico;

Figura 1: Variação de carga no segundo semestre de 2020.

 

 

  1. Condições operacionais das usinas: na NT-ONS DGL 0059/2021 o Operador Nacional do Sistema prevê que, mesmo tomando todas as medidas excepcionais por ele propostas sobre o uso das águas dos reservatórios e com o acionamento de todo o parque de geração termelétrica (20 GW), o país poderia chegar ao final de novembro de 2021 com uma sobra de potência de apenas 3,3 GW. Isso representaria uma folga de menos de 4% para o sistema, o que é muito pouco, levando-se em conta a necessidade de reserva girante e o risco real de uma eventual falha localizada levar a um blackout generalizado. Esse cenário, pouco confortável, considera que nossas usinas térmicas operem com o fator de capacidade conforme declarado. Entretanto, há evidências de que a real situação operacional dessas usinas não condiz com o informado pelos agentes de geração, além do mais, essas plantas não foram projetadas para operarem na base do sistema, por tanto tempo, de forma ininterrupta. Há um risco real de que ao longo do segundo semestre, várias máquinas fiquem indisponíveis.

Figura 2: Previsão de sobra de potência com a adoção das flexibilizações recomendadas pelo ONS.

 

Ao deparar-se com uma crise hídrica e energética de grande monta, como a atual, é inevitável que a sociedade busque comparações com o racionamento de 2001, popularmente conhecido como “apagão”. 

Há muitas semelhanças, mas também muitas diferenças, com aquele período. Vamos a algumas delas. 

Semelhanças:  

  1. Crise hídrica: Essa é a variável não controlada da crise. Entretanto, não é verdade que toda crise hídrica leve a uma crise energética. Entre 2013 e 2016 houve também severa crise hídrica que, porém, não redundou em crise energética a ponto de ser necessária a restrição do consumo; 
  1. Falta de investimentos: Em 1995 o governo FHC incluiu a Eletrobras no Plano Nacional de Desestatização. Dessa forma a maior empresa de energia elétrica do país ficou proibida de realizar novas inversões e os esperados investimentos da iniciativa privada não vieram. O resultado é que bastou uma seca um pouco mais severa para que o sistema entrasse em colapso. Da mesma forma, em 2016, o ex-Presidente Temer já assumiu o posto com a decisão tomada de privatizar a Eletrobras, esta passou de uma média de investimentos de mais de R$ 10 bilhões para pouco mais de R$ 3,0 bilhões anuais atualmente (apesar de ter plena capacidade de fazer investimentos). Mais uma vez a prioridade não é investir, mas privatizar. A iniciativa privada sozinha não foi capaz de garantir a nossa segurança energética. 

Diferenças:  

  1. Dependência da hidrologia: No período de 2003 a 2016 o Brasil reduziu sua dependência da hidroeletricidade, com a construção de centenas de parques eólicos (que respondem por cerca de 10% do nosso consumo) e termelétricas. Saímos de mais de 85% de energia hidrelétrica em nossa matriz para menos de 65%. Além disso o sistema de transmissão é muito mais robusto, sendo capaz de intercambiar a energia que hoje sobra no Norte, no Nordeste e no Sul para as regiões que se encontram deficitárias; 
  1. Margem para redução do consumo: Naquela época havia muito desperdício e ineficiência na indústria, no comércio, nos serviços e nas residências. Para as famílias bastou aposentar os freezers e trocar as lâmpadas incandescentes por fluorescentes para reduzir sensivelmente o consumo.  

Hoje, até pelo preço elevado da tarifa, as empresas e as famílias já fazem o uso mais racional possível da energia, praticamente não há mais onde cortar. O equipamento que mais tem contribuído para o aumento na carga é o ar-condicionado. As famílias, os shoppings, os escritórios vão desligar seus aparelhos? Conviver com o calor?  

Um racionamento com redução compulsória de consumo tende a ser muito mais traumático hoje do que há 20 anos; 

  1. Usos múltiplos das águas: Os reservatórios hoje são de uso muito mais múltiplo do que há 20 anos. A irrigação avança cada vez mais na agricultura, que já responde por 70% do uso da água no país, sem falar da navegação na hidrovia Tietê-Paraná, no turismo e na piscicultura. Medidas restritivas no uso dos reservatórios terão impacto muito maior sobre vários setores da economia o que poderá levar à judicialização das decisões da CREG. Os agricultores estão preparados para reduzirem sua produção?  A sociedade está preparada para ver mortandade de peixes em lagoas marginais secas? 
  1. Liderança: Apesar de todos os erros cometidos no governo FHC, com sua política privatista e sua fé cega no mercado como agente de planejamento e expansão do sistema elétrico, ao menos na gestão da crise aquele governo demonstrou alguma competência. De imediato, ao perceber que a crise seria inevitável, suspendeu o processo de privatização da Eletrobras, já o inepto governo Bolsonaro, às vésperas da crise hídrica e energética, colocou como prioridade a privatização da Eletrobras e o fez da pior maneira possível, através de uma MP que desorganiza todo o planejamento energético nacional. FHC, no seu tempo, sabia que a Eletrobras seria indispensável para conduzir um novo ciclo de investimentos em um momento de incertezas em que a iniciativa privada dificilmente o faria. Já Bolsonaro e seu Ministro de Minas e Energia ignoram que foi a Eletrobras responsável pelos maiores investimentos recentes de geração hidrelétrica no Brasil como Belo Monte, Santo Antônio e Jirau.  Bolsonaro e Bento agem como se não houvesse amanhã e correm para se desfazer do único instrumento efetivo de intervenção do Estado quando se trata de executar investimentos. 

Como vimos anteriormente, não é correto atribuir a crise hídrica e energética atual às forças da natureza, por mais que as mudanças climáticas devam ser levadas em consideração. 

Dentre as principais causas da crise atual, para além da hidrologia, podemos destacar duas: 

  1. Falta de investimentos: Como dito anteriormente, os governos Temer / Bolsonaro tiveram como única política energética a liberalização do setor e a privatização e, tal qual no período FHC, o resultado foi investimentos muito abaixo do necessário para a garantia da segurança energética do país; 
  1. Erros na operação: Por falta de planejamento estratégico, o governo Bolsonaro atua de forma imprudente. 2020 foi o ano em que começou a pandemia da COVID-19 no Brasil e, de fato, entre os meses de abril e junho houve redução brusca no consumo de energia no país. Talvez para não onerar os consumidores, o ONS resolveu despachar muito mais energia hidrelétrica do que o de costume. Porém, no segundo semestre o consumo não só teve recuperação, como também cresceu em relação ao mesmo período do ano de 2019. No ano passado já estava claro que haveria escassez de água, mesmo assim, o ONS continuou esvaziando os reservatórios. O despacho das hidrelétricas continuou máximo, mesmo em meio ao período úmido bem abaixo da média, entre o fim do ano passado e o começo deste, despachando no máximo, até fevereiro. 

Dessa forma, os reservatórios das regiões Sudeste / Centro Oeste começaram o período seco, em junho, com 30% de sua capacidade, nível insuficiente para garantir segurança energética para o segundo semestre. 

Figura 3: Despacho energético até fevereiro de 2021.

 

A julgar pelas medidas anunciadas pelo MME, as perspectivas não são boas. A MP 1.055/21 que criou a CREG, diferentemente do que foi feito com o Comitê de Gestão de Crise de 2001, concentra em um órgão restrito, comandado pelo sabidamente incompetente Ministro Bento Albuquerque. Se na época de FHC, estavam presentes até mesmo a Secretaria de Comunicação Social do governo e o BNDES, na CREG, criada por Bolsonaro, não estão nem mesmo órgãos indispensáveis como o ONS, a ANEEL e a ANA. Nesses casos há sempre alto risco de controle de informação e falta de transparência. 

Outro ponto relevante a ser destacado, é que MP 1055/21 abre uma porta para a corrupção ao prever a contratação de energia de reserva por meio de “procedimento competitivo simplificado”, a ser regulamentado pelo MME. Acrescente-se que a Eletrobras já possui larga experiência no gerenciamento de crises semelhantes (em especial na Amazônia) e a legislação em vigor já possui todos os instrumentos necessários para contratações emergenciais desse tipo. 

Além de incorporar formalmente à CREG os órgãos do setor elétrico como ANEEL, ANA, ONS, EPE e a própria Eletrobras (que administra 52% da capacidade de armazenamento dos reservatórios brasileiros), o governo Bolsonaro deveria, imediatamente, não só sustar todo o processo de privatização da Eletrobras, como também vetar toda a absurda MP 1.031/21. 

Por fim, tendo em vista a severidade da crise hídrica e energética e as poucas perspectivas de ser superada, o governo deveria agir de forma transparente com a sociedade e expor com clareza os cenários possíveis, cronogramas viáveis e as respectivas medidas necessárias à sua superação. E já que a sociedade brasileira será chamada mais uma vez a pagar pelos erros e omissões do governo, o mínimo que este deveria fazer seria não tentar enganá-la.

 

Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras – AESEL. 

Nota Técnica n° 12 

Brasília, 30 de junho de 2021. 

 

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