O desmanche do setor elétrico brasileiro

O Setor Elétrico Brasileiro (SEB) atravessa o momento mais difícil de sua longa trajetória iniciada no final do século XIX.

Neste momento, há um conjunto de elementos desestruturantes que ameaça esse setor essencial para o desenvolvimento econômico e para o bem-estar da sociedade brasileira.

Problemas estruturais

A agenda do setor elétrico no mundo hoje é definida a partir da transição energética, fruto da urgência do enfrentamento da crise climática. No caso desse setor específico, essa transição é sinônimo de descarbonização da matriz de geração de eletricidade, implicando em mudança radical da sua base de recursos naturais, com a retirada do seu pilar tradicional, que são os combustíveis fósseis.

Por outro lado, a agenda do SEB hoje é definida a partir do esgotamento do seu modelo hidroelétrico tradicional, que impõe a configuração de uma nova matriz de geração de eletricidade e, portanto, de uma nova base de recursos naturais. Essa mudança é fruto da perda do papel da energia hidráulica como pilar central de sustentação da base tradicional, resultante do esgotamento dos mecanismos clássicos de mitigação do risco hidrológico que advém da perda de capacidade de regularização dos reservatórios.

Esse esgotamento do modelo hidráulico coloca o SEB no jogo da transição para as novas renováveis (eólica e solar); dada a interdição estrutural à ampliação significativa da presença das térmicas na matriz elétrica brasileira imposta pelo novo paradigma setorial representado pela descarbonização implementado pelo setor no âmbito mundial.

Desse modo, o problema estrutural do SEB não é diferente daquele do resto do mundo. Ao fim e ao cabo é o mesmo: como acelerar a transição para as energias renováveis, gerando emprego, renda e retomada econômica. Esse é o problema central a ser resolvido pela política pública voltada para o setor elétrico brasileiro.

O reconhecimento da real natureza do problema estrutural do SEB coloca a transição brasileira no caudaloso curso da transição mundial. Porém, em condições extremamente favoráveis; graças à enorme capacidade de estocagem representada pelo vigoroso conjunto de reservatórios, de flexibilidade espacial, dada pelo extenso e robusto sistema de transmissão, e de flexibilidade de geração, dada pelas centrais hidrelétricas, as mais flexíveis das centrais.

Considerando que 50% desses ativos hoje se encontram sob o controle da estatal Eletrobras, a vantagem brasileira se amplia mediante a possibilidade de coordenação efetiva e direta do uso desses ativos em prol da redução dos custos da transição brasileira.

Portanto, mais do que um problema, a transição energética é uma grande oportunidade para o SEB estabelecer uma trajetória virtuosa de disponibilidade de energia abundante e barata para o desenvolvimento do país e para o bem-estar da sociedade.

Agenda fora de tempo e lugar

No entanto, a atual agenda de reformas do SEB, defendida por autoridades e agentes do mercado, se constitui essencialmente na transição para o mercado, que, em grandes traços, significa: a mercantilização da energia elétrica (a eletricidade seria uma mercadoria como outra qualquer) e a liberalização do mercado elétrico (o mercado elétrico seria um mercado como outro qualquer).

Por essa ótica, o principal problema do SEB seria a presença do Estado e a falta de concorrência. Em função disso, o remédio é a privatização da Eletrobras e a ampliação do mercado livre, de forma a abrir esse espaço econômico para o livre exercício da iniciativa privada, reduzindo a presença direta (privatização) e indireta (desregulamentação) do Estado nessa atividade. Essas prescrições foram traduzidas institucionalmente na MP da privatização da Eletrobras – recentemente aprovada pelo Congresso – e na chamada “modernização do setor elétrico brasileiro” – em tramitação na Câmara dos Deputados (PL 414), após ter sido aprovada pelo Senado.

A transição para o mercado não é uma novidade. Concebida e implementada a partir dos anos 1980s, em resposta à crise do setor elétrico no mundo nos 1970s, essa proposta de reestruturação do setor elétrico já conta com uma vasta experiência sobre seus erros e acertos aqui e no mundo.

Mercados elétricos são construções institucionais complexas. Construir mercados eficazes é um processo de tentativa e erro no qual esses mercados vão evoluindo com o tempo de forma complexa e incerta. Enfim, é um processo em aberto, sem garantias de sucesso ou padrões replicáveis. Cada caso é um caso. O sucesso de aqui e de agora não garante o sucesso de amanhã e de acolá.

A criação institucional de mercados elétricos exige a configuração de um extenso e complexo sistema de regras, normas e organizações que viabilize a operação e a expansão adequada desses mercados. Daí, os elevados custos institucionais para desenhar esses mercados e introduzir a concorrência nesses espaços econômicos. Além disso, resta a questão crucial sobre quem fica com os custos da transição para o mercado. Em geral, o último a chegar na festa da competição, é o consumidor cativo das distribuidoras.

A inadequação da proposta de transição para o mercado às características intrínsecas do SEB foi colocada desde o início da liberalização do mercado elétrico no Brasil. A necessidade de adaptações da receita liberal a essas características gerou um mercado competitivo peculiar. A contradição essencial de ter um sistema concebido e construído para funcionar como um sistema único, integrado, coordenado e otimizado centralmente, por um lado, e uma proposta de descentralização, fragmentação e exercício competitivo de uma autonomia individual, por outro, gerou uma equação impossível de ser resolvida sem o sacrifício de um dos lados.

O resultado foi a implosão do sistema por dentro a partir de inconsistências insustentáveis. Enfim, houve puxadinhos demais e pilares estruturantes de menos.

No entanto, o maior problema da atual agenda do setor elétrico é sua completa extemporaneidade em relação à agenda mundial do setor. Há claramente um descompasso entre objetivos (transição para o mercado e transição energética) e temporalidades (a primeira é uma agenda de trinta anos atrás e a segunda é uma agenda de agora). Considerando que existe uma grande convergência entre as agendas reais, tanto mundial quanto brasileira, essa extemporaneidade significa não só estar fora do seu tempo como também do seu próprio lugar.

Dessa maneira, o que se pode falar sobre a agenda do SEB proposta pelo governo e pelo mercado é que ela é: complexa, difícil, incerta, custosa, inadequada e, acima de tudo, completamente extemporânea.

Em suma, é uma agenda que não respeita as questões colocadas pelo seu tempo e lugar e que amplia as inconsistências, acirra os conflitos e afasta ainda mais o setor de sua real agenda de problemas e soluções.

Crise institucional e financeirização

À crucialidade dos problemas estruturais e aos equívocos de uma agenda fora de tempo e lugar, soma-se a dramática crise institucional vivida pelo país e a qual, evidentemente, as instituições do SEB não estão imunes.

Sem a presença da coordenação das instituições, a cacofonia natural de um setor complexo, como é o setor elétrico, transforma esse espaço econômico em uma imensa torre de Babel, na qual a prevalência de interesses individuais e de curto prazo implode o setor por dentro. Não existe a menor possibilidade de construir a necessária compatibilização de planos e ações dos agentes, que funda o equilíbrio técnico-econômico-institucional imprescindível para a operação e a expansão desse setor, a partir da lógica de balcão empregada pelo Estado brasileiro neste momento. Lógica esta explicitada de forma pedagógica na tramitação da MP da privatização da Eletrobras no Congresso Nacional com seus resultados desarticulados e desestruturantes.

A combinação da fragilização institucional com a hegemonia dos interesses financeiros, presente na atual política energética brasileira, simplesmente desmancha o SEB. A lógica curto-prazista e especulativa do mercado financeiro, em conjunto com a privatização e a desregulamentação, desorganiza o setor elétrico brasileiro, transformando a atual reestruturação em um desmanche seguido de butim; a bem de poucos e à custa de muitos.

A manutenção dessa política irresponsável de desmonte terá um final previsível. Ao fim, tem-se um SEB fragmentado, desconectado, regionalizado, sem as tradicionais economias de escala, escopo e diversidade, com explosão de custos e tarifas, quebrado e judicializado.

Crise hídrica

A pior seca dos últimos noventas anos tem o potencial de acelerar o desmanche do SEB. Enfrentar uma situação na qual é preciso mobilizar grandes volumes de recursos – técnicos, gerenciais, econômicos e político-institucionais – rapidamente coloca desafios de monta para qualquer setor elétrico no mundo. Porém, para um SEB desarticulado, institucionalmente detonado e em processo de desmanche, parece demasiado.

Não é pequena a capacidade de coordenação necessária para implementar a flexibilidade hidráulica (a priorização máxima do uso da água para a geração elétrica, em detrimento dos outros usos), a disponibilidade pronta e significativa de um grande parque heterogêneo (em termos técnico, econômico e institucional) de térmicas, o deslocamento do consumo industrial do pico da carga. Essas são ações necessárias para atravessar o período seco e chegar em novembro em condições de, pelo menos, torcer para que o período úmido seja muito, mas muito, generoso.

Não parece que o SEB neste momento tenha essa capacidade de coordenação. Isto implica que se tenha dúvidas justificadas sobre a sua capacidade de chegar em novembro incólume. Em chegando, é razoável duvidar de um período úmido diluviano. Assim, dependemos de uma capacidade que o SEB não tem demonstrado ter e de um volume de chuvas difícil de acontecer.

Diante disso, a possibilidade de decretação de um racionamento está efetivamente no horizonte. A pergunta que se faz é quando e em que condições.

Considerando os reconhecidamente elevados custos econômicos e políticos de um racionamento, a estratégia de postergar a sua decretação é tentadora, porém extremamente perigosa. O que está em jogo aqui é a possibilidade de termos uma crise administrada ou o caos. Dependendo de quanta água teremos nos reservatórios em abril do ano que vem para atravessar o novo período seco.

Porém, algo se pode afirmar com certeza: a forte elevação das tarifas elétricas. Segundo a agência reguladora (Aneel), apenas a operação das térmicas até novembro vai custar ao país 9 bilhões de Reais. Soma-se a isto o custo do deslocamento da indústria do pico e das contrapartidas pelo sequestro das águas pelo setor elétrico e tem-se uma conta salgada que vai cair no bolso dos consumidores; que já começou a pagar a conta da indenização para as distribuidoras em função das perdas da pandemia (conta Covid).

No entanto, não se deve pôr nos ombros de São Pedro as desditas do SEB. A política energética brasileira implementada a partir de 2016, de privatização e desregulamentação, acelerou o desmanche desse setor e contratou uma crise que a falta de chuvas só antecipou.

Apertem os cintos porque o piloto sumiu.

Obs: Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil

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