A medicina do talibã


O Relatório de Progresso n 2, do Comitê de Revitalização do Setor Elétrico, de inocente título burocrático, na realidade esconde um rosário de absurdos que levarão ao já combalido setor elétrico perder o que restava de interesse público. Com uma introdução teórica que lembra um livro básico de Microeconomia, passa por aspectos fundamentais da realidade brasileira como se fossem questiúnculas já resolvidas pelo academicismo liberal, e que, infelizmente, alguns setores, retrógrados naturalmente, insistem em debater.


A clássica e simplista visão de formação de preços baseada exclusivamente no equilíbrio entre oferta e demanda, é evocada para reafirmar que a energia elétrica é como uma mercadoria qualquer. O texto prega que tudo se resolverá ao se, implantar um ambiente de “feira-livre” onde os “feirantes” e “fregueses”, ao invés de comprar bananas, compram kWh. O texto tenta transmitir a sensação de inevitabilidade dessas reformas, citando a experiência de outros países nessa direção. Não explica, entretanto, porque nos Estados Unidos 90% dos geradores de energia ainda são regidos pelo velho e “ultrapassado” conceito de serviço público, e, justamente onde se implantou a “feira” (Califórnia), a população ficou sem energia.


Algumas consequências práticas dessa crença atávica e talibanesca nas forças do Deus Mercado aplicada ao setor elétrico, já foram sentidas pelo brasileiro. De 1995 a 2001, a tarifa subiu 138% contra uma inflação de 80%, tivamos racionamento, sobretaxa, apagão e o futuro é incerto. Mas parece que isso não é suficiente para evidenciar o “erro médico” e o Relatório de Progresso n 2, um simples “prontuário” na cama do doente recomenda a aplicação de doses cavalares do mesmo remédio.


É lógico que um certo disfarce também foi pensado, pois afinal de contas não se irá privatizar as empresas geradoras estatais, atendendo a pedidos, alguns inclusive, dos “retrógrados”. Foram-se os anéis, é verdade. Mas preservam-se os dedos! Está claro que o intocável nas intenções dos formuladores é manter o ambiente propício a grandes negócios mesmo que o consumidor corra mais riscos.


O mandamento n 1 desse ideário é a separação da transmissão e geração. Segundo esse “corão”, a transmissão deve ser neutra em relação ao produto vendido para poder viabilizar a concorrência entre geradores. De nada adianta argumentar que concorrência em ambiente de óbvio desequilíbrio entre oferta e demanda faz os preços subirem e portanto, se a real intenção fosse realmente proteger o consumidor, seria necessário garantir uma oferta superior a demanda. Também não adianta lembrar que quando se analisa a expansão da oferta em um sistema hídrico de grande porte com diversidade hidrológica, projetos de linhas são tão importantes qunto o de usinas, o que faz com que a “neutralidade” do sistema de transmissão no caso brasileiro seja bastante contestável. Também não adianta mostrar que esse segmento, isolado da geração e com a tarifa proposta é incapaz de se expanndir. Também não adianta lembrar que os Estados Unidos não separaram esses sistemas mesmo nos estados onde se implantou a concorrência. Lida-se com “talibãs” do mercado! E ainda por cima, surdos!


A proposta de cisão levanta fronteiras fictícias em um sistema com óbvias economias de escala, criando custos extras que não têm respaldo no mundo físico. Tudo isso para preservar a liberdade total para investidores faturarem em cima de um mercado de energia elétrica que cresce 5% ao ano no mínimo, e cuja única taxa de crescimento negativa em 80 anos, foi conseguida pelos sábios do governo FHC.


O mercado de energia elétrica brasileiro consome mais de 300 TWh. Essa energia, paga a uma tarifa média de US$ 70/ MWh, gera uma fortuna de US$ 21 bilhões. O setor residencial, principal vítima dos sábios, paga 41% desse total (US$ 8.6 bi) apesar de consumir apenas 26% da energia. São todos consumidores cativos. Nem na Inglaterra, onde a população é infinitamente mais informada, essa categoria foi beneficiada por queda de preços via concorrência. Nem precisa se imiscuir no lixo teórico e regulatório do Relatório de Progresso n2 para entender. De um lado quase metade do faturamento cativo e indefeso. As galinhas. De outro a liberdade de preços total (válida agora também no despacho das usinas. Pasmem!). As raposas. O que o relatório nº 2 fez foi fechar a porta do galinheiro. Com as raposas dentro. Óbvio!


É preciso reunir forças e resistir ao eminente esquartejamento de FURNAS e CHESF onde, nessa última, a usina de Xingó, entra na lista de privatizações como “troco” sem nenhuma justificativa. Essa questão é a última trincheira da sociedade brasileira na defesa de um setor tão essencial para o Brasil.

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